Devemos denunciar, sempre os abusos infligidos aos nossos velhinhos e aos mais vulneráveis.
Sem denúncia, não há justiça.
Levante a voz, por aqueles que não podem falar.
Denuncie!
De 23/02/2022
Maus tratos
Omissão Imprópria
Pessoa idosa
Constituem formas de maus tratos, relevantes para a tipificação contida no art. 152º A do Código Penal: qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fracturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas), que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos;
os maus-tratos psicológicos ou emocionais, que se materializam em condutas que causam dano psicológico, como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afectiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afecto, isolamento e marginalização;
a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos) que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como sejam, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de autonegligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano.
Este crime pode ser cometido por omissão imprópria, sempre que o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resultar do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado e este depende da existência de um específico dever emergente da lei, de contrato, ou de uma específica relação de facto que o obrigue a agir, para evitar o resultado, pois só assim haverá equivalência entre o desvalor da Acão e o desvalor da omissão que constitui o fundamento da punibilidade do omitente.
É o que acontece, quando idosos são acolhidos em instituições ou lares de acolhimento e de assistência, através de um contrato de prestação de serviços remunerado, pois esta relação negocial transfere para o proprietário e para a direção técnica e os cuidadores ao serviço da instituição ou do lar, o dever de garantes da saúde física, mental, psíquica, do bem-estar emocional, da satisfação das necessidades mais básicas inerentes à própria sobrevivência, como a alimentação, a higiene, a saúde, a toma de medicação adequada, a assistência médica e hospitalar que se mostrarem necessárias, além de outros deveres de cuidado e assistência, com aqueles que, pela sua idade avançada, são mais vulneráveis e estão dependentes de terceiros.
Comete o crime de maus tratos a idosos, a arguida que sendo proprietária e em simultâneo, administradora de um lar e prestadora de cuidados aos idosos que acolheu, por inacção e desinteresse, deixa de providenciar à vítima a alimentação e a assistência médica e de enfermagem adequadas ao estado clínico da mesma, a ponto de a deixar em estado de desnutrição e desidratação, provocando-lhe, ainda, o agravamento de uma úlcera de pressão, na zona sacro, de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido e com um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade.
Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em 30 de Setembro de 2021, no processo comum singular nº 1549/19.7T9SNT do Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, a arguida SMGA_____ foi absolvida do crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152°-A n° 1 do Código Penal.
O Mº. Pº. interpôs recurso da sentença, tendo formulado, para o efeito, as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público não pode conformar-se com a decisão do Tribunal a quo, pois face aos elementos de prova existentes nos autos, a decisão proferida deveria ter sido no sentido de condenação da arguida pela prática do referido ilícito, e não da sua absolvição.
2. O Ministério Publico entende ter sido incorretamente considerados provados os pontos 2) e 21) dos factos provados, pelos referidos factos não se extraírem da prova produzida nos autos.
3. O Ministério Publico entende ter sido incorretamente julgada e dada como não provada a factualidade constante das alíneas a), c), d), e), f), h), i), j) e l) dos factos não provados, já que os mesmos resultaram de toda a prova produzida nos autos.
4. No dia 24 de agosto de 2018 a ofendida apenas reagia a estímulos dolorosos, estava apirética e algaliada com ch14. N a verdade, da análise dos documentos juntos aos autos não subsistem dúvidas de que a ofendida MAR______ , deu entrada no Balcão de Urgência Geral a 24-08-2018, pelas 19:15h e que, poucas horas depois, às 01:44h, apenas reagia a estímulos dolorosos, estava apirética e foi algaliada com ch14, às 02:08h, conforme observação inserida no registo de urgência.
5. Resultou demonstrado, em audiência de julgamento, mormente dos depoimentos da filha e da nora da ofendida, e Mar…, respetivamente, que a ofendida apresentava nódoas negras na zona inferior das pernas, designadamente nos calcanhares.
6. Resulta da diversa documentação clinica relativa às idas da ofendida ao hospital, que a mesma se encontrava desnutrida, apresentando a “(...) pele e mucosas pouco coradas e desidratadas" bem como um “deficiente estado geral e nutricional". Tal consideração resulta não só dos documentos juntos aos autos, como também dos vários depoimentos produzidos em audiência, inclusive da arguida SMGA_____ , responsável pelo lar e pela alimentação dos utentes, a quem cabia zelar pelos seus cuidados básicos, dada a sua idade avançada e o seu estado de saúde muito debilitado.
7. Quando a arguida aceitou a admissão da ofendida naquele lar, tinha conhecimento do estado clínico da ofendida e sabia que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como alimentação da ofendida. Tal consideração resulta da prova realizada em audiência de julgamento, mormente do depoimento de ---___-. Na realidade, contando a ofendida MAR______ , com cerca de 80 anos de idade à data da sua integração no lar, é evidente que a arguida não podia deixar de saber que tinha na sua presença pessoa idosa e, nessa medida, extremamente frágil.
8. É contraintuitivo afirmar que sendo a arguida responsável pelo lar (facto provado 5), que tinha como funções, entre outras, administrar a medicação prescrita aos utentes, mudar pensos, alimentar e informar os médicos de qualquer alteração dos estado de saúde dos utentes (facto provado 15), não tivesse conhecimento do estado clínico da ofendida e que não soubesse que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como de alimentação.
9. A arguida, como responsável do lar, conhecendo a situação da ofendida, não lhe prestou os cuidados devidos, na medida em que não adequou a alimentação à situação clínica da ofendida deixando-a chegar a um ponto de “deficiente estado geral e nutricional” e não chamou médico/enfermeiro para mudar o penso da úlcera, nem recorreu ao médico que prestava serviços ocasionais ao lar para pedir que observasse a ofendida ou que a aconselhasse quanto ao procedimento a adotar, optando, ao invés, por esperar por dois a três meses antes de lhe proporcionar uma observação por médico ou enfermeiro, deixando assim agravar aquele ferimento.
10. A arguida agiu, ao longo de meses, indiferente aos reais cuidados que a ofendida necessitava e ao constante degradar do seu estado de saúde que, tendo sido percetível para as familiares que a visitavam, não é crível que o não fosse para a arguida.
11. A testemunha AM____ , enfermeira que trocou o penso à falecida no domicilio aquando do seu regresso do hospital, descreveu o estado em que a encontrou, fazendo alusão um quadro clínico muito grave, e “que quando fez o penso encontrou ferida não compatível com bons cuidados de saúde” e ainda que o estado da úlcera “era vergonhoso” e que “as ulceras de pressão não são um dado adquirido na geriatria se os profissionais de saúde souberem o que andam a fazer”.
12. Foi preciso deixar passar dois a três meses e chegar ao ponto de apresentar “(...) uma úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade” (ponto 7 dos factos provados), para, finalmente, a arguida considerar que a ofendida já era merecedora de ser observada por um médico.
13. Ao recusar a prestar cuidados de saúde à ofendida, a arguida sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da ofendida, bem como sabia que causava nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
14. A arguida sabia que a ausência de cuidados de saúde adequados e atempados era suscetível de ofender gravemente a saúde da ofendida, mas conformou-se com essa possibilidade e prosseguiu com a sua conduta, não providenciando pelos cuidados necessários à ofendida.
15. A arguida sabia que não possuía qualquer formação nem conhecimentos adequados e ainda assim entendeu que conseguia resolver a situação e curar a ferida que a ofendida apresentava sem recurso a ajuda médica.
16. Tal opção da arguida, recusando-se a prestar à ofendida a assistência que estava perfeitamente apta prestar, independentemente dos custos a ela inerentes atenta a posição da família, é demonstrativa desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida. Porque podia tê-lo feito e não quis.
17. A arguida tinha plena consciência que colocava em risco a saúde, a integridade física e a vida da ofendida ao proceder da maneira como procedeu e escolheu fazê-lo, mostrando desrespeito pela ofendida, que se encontrava aos seus cuidados, escolhendo conscientemente não lhe prestar a assistência que podia e devia prestar, a coberto de “(...) não querer preocupar a família".
18. A falta de cuidados adequados e atempados, obrigou a ofendida a passar por um doloroso evoluir da úlcera de pressão.
19. As declarações da arguida ao tribunal não deixam dúvidas de que a mesma sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei. A decisão de omitir a real condição de saúde da ofendida é sintomática da consciência que a arguida tinha da censurabilidade da sua conduta.
20. A arguida adotou perante o tribunal um constante discurso de desculpabilização e uma postura de vitimização.
21. Apesar de saber que a omissão de cuidados a alguém que estava aos seus cuidados era proibida e punida por lei, a arguida conformou-se com a omissão de cuidados atempados e adequados e com as consequências possíveis resultantes dessa omissão.
22. Sendo o crime de maus tratos um crime de resultado, o mesmo pode ser cometido por ação ou por omissão.
23. Resultando demonstrado, que a arguida não providenciou pelos cuidados atempados e adequados de que carecia a ofendida, (sendo que, quanto a estes cumpre realçar que, ao contrário do expendido na douta sentença em crise, não era necessário que fosse demonstrado nos autos que a ofendida foi sujeita, por parte da arguida, a um qualquer tratamento desumano ou cruel - como de facto não resulta dos autos - antes bastando, para o preenchimento do tipo, o não assegurar e o não providenciar pelos cuidados médicos de que a mesma patentemente necessitava), é por demais evidente que a arguida incorreu na prática do referido ilícito.
24. O bem-estar e a saúde (e a vida) da ofendida foram lesados pelas condutas omissivas da arguida, as quais revestem acentuada gravidade e especial censurabilidade, considerando o lapso temporal por que perduraram e as consequências que tiveram, tendo posto inequivocamente em causa o tratamento digno de que toda e qualquer pessoa é merecedora, ofendendo, por isso, também a sua dignidade pessoal.
25. É manifesto que a arguida incorreu na prática, em autoria material, do crime de maus tratos contra MAR______ , que se encontrava particularmente indefesa em face da sua idade e do seu estado de saúde, ilícito que lhe vinha imputado na acusação pública e que é punido nos termos do disposto no artigo 152°-A, n° 1, alínea a) do Código Penal e pelo qual a mesma deve ser, em conformidade, condenada.
26. Face ao exposto, impõe-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene a arguida pela prática do crime que lhe vem imputado, previsto e punível pelo artigo 152°-A n° 1, alínea a) do Código Penal.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão supra exposta.
Admitido o recurso, a arguida apresentou resposta, na qual concluiu o seguinte:
A. Alega o Recorrente que o Tribunal a quo não valorou, nem ponderou devidamente a prova produzida em julgamento, sendo que:
i. os factos descritos sobre o ponto 2) e ponto 21) não poderiam ter sido dados provados, nos termos em que o foram, por não terem suporte probatório e até por existir prova em contrário; ii. Que os pontos a), c), d), e), f), h), i), j) e l) dos factos não provados, deveriam ter sido dados como provados;
B. No que respeita aos pontos dados como provados 2) e 21), a recorrida concorda com a motivação do Ministério Público.
C. No demais, a Recorrida concorda, com a douta sentença proferida nos autos, uma vez que está de acordo com a prova produzida, tendo sido realizada uma adequada apreciação da matéria de facto, de harmonia com os princípios que norteiam a valoração da prova, nomeadamente princípios da imediação e livre apreciação, tendo sido feita correta aplicação do Direito ao caso concreto, estando devidamente fundamentada a decisão, pelo que se deverá manter na ordem jurídica.
Senão vejamos,
D. Entende o Recorrente que a al. a) dos factos não provados deveria ter sido considerado provado com base da documentação clínica dos autos.
E. Ora, não poderia o Tribunal considerar como provado que a ofendida no dia 24 de Agosto de 2018, quando deu entrada nas urgências já apenas reagia a estímulos dolorosos e foi algaliada, quando a prova é em sentido oposto: a ofendida quando deu entrada nas urgências e mesmo na primeira hora do dia seguinte reagia à mobilização (e não apenas a estímulos dolorosos) e só foi algaliada já depois, no dia 25 pelas 02.08 (não no dia 24 de Agosto), na sequência de não ter urinado cfr. registo da observação das 01.24 do dia 25/08/2018, de fls 87 e ss.
F. Portanto, deve manter-se como não provado que no dia 24/08/2018 a ofendida apenas reagia a estímulos dolorosos, estava apirética e algaliada com ch14. Adiante,
1. Bem andou o Tribunal ao dar não como provada a al. c), porquanto não poderia o Tribunal valorar o depoimento de testemunhas contra a prova resultante da documentação clínica de fls 87 e ss., referente ao primeiro internamento da ofendida, em que após avaliação médica, não foram verificadas quaisquer manchas nas pernas ou pulsos da ofendida.
2. Acresce que, contrariamente à interpretação do Recorrente, nunca as testemunhas se referiram a nódoas negras nos pulsos ou nas pernas, nem a qualquer mancha nos pulsos: a testemunha (passagem 8.30 do depoimento) apenas referiu ter visto “mancha roxa” na zona dos calcanhares, e a testemunha Maria …referiu não se tratarem de nódoas negras (passagem de 17.24 a 17.30).
G. No que respeita à al. d), entende o Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que a ofendida se encontrava desnutrida, por falta de hidratação - o que certamente resulta de lapso conceptual, pois a desnutrição deve-se à falta de nutrientes e não à falta de água.
H. Em qualquer caso, tratando-se a desidratação de um problema médico, julgamos que não é o suficiente ler-se que a pele está desidratada para se concluir necessariamente que a pessoa estava desidratada, pois qualquer diagnóstico deve ser feito pelo médico, com a análise do historial médico e quadro clínico, ainda para mais atendendo ao quadro clínico complexo da ofendida, a que acresce o facto de a desidratação da pele se pode dever a efeitos externos, que nada têm a ver com a ingestão de água (por exemplo, a exposição a sistemas de aquecimento, ar condicionado, temperaturas elevadas no verão, outras patologias, diarreia, etc.).
Vejamos,
I. A arguida explicou nas passagens 41.00 e seguintes do seu depoimento, que voltou a chamar o INEM para que a ofendida fosse transportada às urgências no dia 28/08/2018, tendo igualmente relatado que nessa ocasião se encontrava desidratada devido a um episódio de diarreia; no diário clínico, de 29/08/2018, pelas 00.06, a fls 82, o médico constata a desidratação da pele e mucosas “por falta de colaboração não percebo se doente se encontra orientada ou não”, e no diário clínico de fls 75 referente a 11/09/2018, pelas 21,58, quando a ofendida já se encontrava aos cuidados dos familiares (visto que após a alta hospital do dia 7/09/2018 já não mais regressou ao lar, de acordo com as declarações da filha, a testemunha A…, nos minutos 12:50 a 13.00), o hospital constatou que ofendida tinha a pele e mucosas desidratadas.
J. Portanto, ponderava a informação clinica, e considerando ainda que após a alta hospitalar onde recebeu cuidados de hidratação e enquanto se encontrava aos cuidados dos seus familiares, a ofendida também apresentava a pele desidratada, não podemos concluir que a desidratação da ofendida se devia à falta de ingestão de água no lar ou à falta de cuidados em geral, por outro lado, a desidratação constatada no dia 28 foi explicada pela arguida com o episódio de diarreia da ofendida que entre outros, motivou novamente a sua deslocação às urgências.
K. Entende também o Recorrente que a al. d) deveria ter sido dado como provada, por se ter observado no dia 28/08/2018, pelas 17.20, que a ofendida apresentava um deficiente estado nutricional.
L. A desnutrição caracteriza-se pela falta de um ou mais nutrientes e pode ter muitas causas, que não passam apenas pela alimentação, pode dever-se a um distúrbio alimentar, ou ao facto de a pessoa estar doente e ter uma necessidade calórica excessivamente elevada ou não ser possível a sua alimentação em termos normais.
M. Aliás, é a própria filha da ofendida a testemunha que explica, nas passagens 13.34 a 13.40, que o médico que estava a tratar a ofendida havia explicado que o processo de regeneração da ferida (escara) implicava o consumo pelo organismo de todos nutrientes do corpo.
N. Ora, se verificarmos a informação clínica: o hospital constatou o estado nutricional no dia 28 de Agosto, isto é, dois dias depois de a ofendida ter tido alta do Hospital, para tratar da escara, sendo certo que na primeira admissão não verificou nada de anormal, a respeito do estado nutricional da ofendida, também não encontramos na documentação clínica qualquer explicação da causa de tal estado no dia 28, mas considerando a explicação médica fornecida pela filha da ofendida, o estado nutricional poderia dever-se ao processo de cura da escara.
O. Pois, no que respeita à alimentação, a arguida SMGA_____ explicou ao Tribunal, como era feita a alimentação no lar, nas passagens 20.58 até 22.04 da gravação, esclarecendo que tinha uma empresa de catering que fornecia os almoços e jantares, com sobremesa e que as outras refeições (pequeno almoço, lanche a meio da manhã, lanche da tarde e ceia) eram preparados no lar, e no caso especifico da ofendida, relatou ao Tribunal [nas passagens 22.05 até 23.04 da gravação], que a mesma se alimentava sozinha e que quando deixou de comer sozinha, era alimentada pela arguida e pelas funcionárias do lar.
P. Em instâncias, a arguida referiu ainda que a ofendida se alimentava bem, e que na primeira deslocação ao hospital não havia sido referenciado qualquer problema de nutrição e que se esse problema foi verificado, no segundo internamento, não sabia qual era a razão, mas que não se devia à alimentação [passagens 51.50 a 52.30]
Q. Tudo ponderado, tendo ainda em consideração que a testemunha referiu nas passagens 16.26-17.00 do seu depoimento, que o lar tinha boas condições, apesar de ter pouco pessoal, e tendo igualmente em conta o princípio da presunção da inocência, a prova dos autos não permite concluir, sem margem para dúvidas, que a ofendida estava desidratada e desnutrida devido à falta de cuidados de alimentação e hidratação no lar, e que deveriam ter sido proporcionados pela arguida, ora Recorrida, enquanto responsável pelo lar, tal como pretende efetivamente a Recorrente que fique provado, nomeadamente em articulação com as alíneas e) e f).
R. Portanto, muito bem andou o Tribunal a quo ao não ter dado como provada a al. d), desmerecendo qualquer censura ou reparo.
S. No que respeita à al. e), os cuidados que a ofendida necessitava e que estão aí concretizados, não eram diferentes dos cuidados que os outros utentes precisavam, por outro lado, os problemas da ofendida de visão e de mobilidade não tinham qualquer relevância para o caso, nem para se estabelecer um nexo de causalidade com o agravamento do estado de saúde ou com a morte da ofendida, pelo que por ser completamente irrelevante, não merece qualquer censura a motivação de facto do Tribunal que considerou que esta aliena não deveria integrar o lote dos factos provados, com relevo para a boa decisão da causa.
T. Também não se extrai da prova produzida, nomeadamente pelas declarações da arguida, às quais o Tribunal conferiu, e bem, credibilidade, que não tenham sido prestados cuidados adequados para tratar da ferida da ofendida, e que em virtude dessa falta de cuidados o estado inflamatório se tenha agravado, pelo que o Tribunal bem andou ao dar como não provadas as alíneas F), H), I), J) e L).
U. Quanto à questão da alimentação, já ficou alegado supra, que as causas do deficit nutricional não ficaram demonstradas, pelo que não se pode concluir que tenham tido como causa a falta de cuidados de alimentação por parte da arguida, quando existe até prova em contrário.
V. No que respeita ao penso, após a alta hospitalar, no dia 26/08/2018, a arguida recebeu indicação para mudar o penso de forma alternada, o que fez para tratar da ofendida e o que já havia realizado para tratar de outros doentes com escaras, ao longo da sua profissão, tendo conseguido tratar sempre.
W. Aliás, já antes do primeiro internamento, era a arguida quem providenciava por fazer os pensos à ofendida, para tratamento da ferida, que só no dia 24 de Agosto de 2018, teve a certeza que se tratava de uma úlcera de pressão - foi quando decidiu levar a ofendida ao Hospital.
X. Não nos parece que se possa extrair a ilação de que a arguida não prestou os cuidados devidos à ofendida, quando ficou provado que mudava os pensos, por outro lado também não ficou demonstrado que a mudança dos pensos não era bem feita e que se fosse um enfermeiro a realizar, a ferida teria ficado curada.
Y. Pelo que neste ponto, o recurso deve improceder.
Z. Aderimos integralmente à fundamentação do Tribunal a quo, o qual não merece qualquer censura ou reparo, devendo manter-se na ordem jurídica nos seus exatos termos, com exceção da factualidade dada como provada nos pontos 2) e 21).
AA. Face à improcedência quase total do recurso da matéria de facto (dos pontos a),
c), d), e), f), h), i), j) e l) dos factos não provados), da qual depende necessariamente o recurso sobre a matéria de Direito, mormente dos factos não provados da al. f), fica prejudicado o recurso de Direito, uma vez que mantendo- se a factualidade dada como não provada, não importará qualquer alteração na decisão e fundamentação jurídicas.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser concedido parcial provimento ao recurso, e em consequência deve ser alterada a redação dos pontos 2) e 21) da matéria de facto, dados como provados.
No demais, deverá o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se os termos da decisão recorrida.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso, com fundamento nos argumentos de factos e de direito aduzidos no mesmo.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência prevista nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DO ÂMBITO DO RECURSO E DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito.
Umas e outras definem, pois, o objeto do recurso (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República
Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061 e Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma; Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto, as questões a tratar são as seguintes:
Em primeiro lugar saber se houve erro de julgamento, na fixação da matéria de facto e se:
a. os factos descritos sobre o ponto 2) e ponto 21) não poderiam ter sido dados provados, nos termos em que o foram, por não terem suporte probatório e até por existir prova em contrário;
b. os pontos a), c), d), e), f), h), i), j) e l) dos factos não provados, deveriam ter sido dados como provados.
Em segundo lugar se houve erro de direito e, em consequência, se se encontram verificados dos os elementos constitutivos do tipo legal e crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152°-A n° 1 do Código Penal.
Em caso afirmativo, eventual escolha e determinação concreta da pena.
2.2. DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria provada e não provada e a forma como o Tribunal a quo fundamentou a mesma (transcrição parcial):
1) A ofendida, MAR______ tinha 82 anos em Setembro de 2018.
2) A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento “...” Unipessoal, Lda em data não concretamente apurada.
3) Aquela instituição tinha como objeto social a atividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem.
4) Aquele lar, primeiramente, situava-se na Rua … , Ramada, mas em 8 de Março de 2018, mudaram as suas instalações para a Rua … , Queluz.
5) A responsável pelo lar era a arguida, SMGA_____
6) No dia 25 de Agosto de 2018 a arguida comunicou à família da ofendida que esta se ia deslocar ao Hospital para fazer uma T.A.C., quando, na verdade, a ofendida tinha dado entrada nas urgências daquele hospital, pelas 19:15 do dia 24 de Agosto de 2018.
7) Quando a ofendida deu entrada no Hospital Amadora-Sintra, no dia 24 de Agosto, apresentava-se prostrada, com saída de urina com cheiro fétido, bem com apresentava uma úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade.
8) No entanto, a ofendida apenas saiu daquele hospital no dia 26 de Agosto de 2018, pelas 00:06.
9) O estado de saúde da ofendida agravou-se, tendo regressado ao Hospital Doutor Fernando da Fonseca, no dia 28 de Agosto de 2018, pelas 15:53, onde se apurou que a ofendida mantinha uma úlcera exsudado seroso e fétido e tecido necrosado.
10) Foi determinado o internamento da ofendida por apresentar provável infeção urinária, ulcera de pressão na região sagrada e hipernatremia e desidratação. Foi determinado o internamento da ofendida
11) Iniciou-se tratamento, por antibiótico, à ofendida, por provável infeção cutânea da úlcera de pressão sagrada.
12) À data da alta clínica, que ocorreu no dia 5 de Setembro de 2018, a ofendida apresentava úlcera na região sagrada, com cerca de 5x8cms de diâmetro e 3cms de profundidade, com tecido desvitalizado no bordo externo, mas sem exsudado purulento e sem eritema peri lesiona e úlcera de decúbito superficial na região do ombro esquerdo, com cerca de 1 cm de diâmetro, sem exsudado e sem eritema.
13) Para tratamento daquelas úlceras, no hospital sugeriu-se mudança de pensos em dias alternados, posicionamentos alternados e colchão anti-escaras.
14) A ofendida veio a falecer no dia 14 de Setembro de 2018, pelas 11:45, na residência sita na Rua …, Amadora.
15) À arguida, no exercício da sua catividade laboral e enquanto responsável daquele lar, cabiam, entre outras, as seguintes funções, que devia desempenhar diariamente e ainda sempre que fosse necessário: administrar a medicação prescrita aos utentes do lar aí internados; lava-los; mudar-lhes as fraldas (caso as usassem); mudar pensos, adesivos e efetuar curativos em feridas; alimentar (à colher ou através de sonda) os doentes que não conseguissem, devido às doenças, alimentar-se sem ajuda; mudar os lençóis; escrever no livro “notas do enfermeiro”, todas as informações relativas a cada doente; informar os médicos e os enfermeiros de qualquer alteração do estado de saúde dos utentes e ainda prestar assistência, em caso de emergência, aos doentes que dela necessitassem, pessoalmente ou chamando o médico de serviço, quando necessário.
16) Apesar de aquele lar necessitar de preencher determinados requisitos, para poder prestar o serviço que havia sido contratado pela ofendida, apurou-se, após inspeção feita pela segurança social, que aquele lar não tinha licença de funcionamento, não tinha pessoal suficiente para o seu funcionamento, bem como não tinha profissionais qualificados para a prestação de cuidados médicos.
17) A arguida tem um filho de vinte anos.
18) A arguida abandonou o ensino escolar aos dezassete anos, quando frequentava o oitavo ano de escolaridade.
19) A arguida trabalhou como empregada fabril, na área das limpezas e como empregada de balcão.
20) A arguida iniciou a catividade de constituir um lar de idosos em 2009/2010.
21) A arguida trabalha como auxiliar num lar de idosos auferindo mensalmente a quantia de €750,00.
22) A arguida não tem antecedentes criminais.
3. Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente não se logrou apurar que:
a) Que a arguida no dia 24 de Agosto de 2018 apenas reagia a estímulos dolorosos,
estava apirética e algaliada com ch14.
b) Que no dia 25 de Agosto a arguida pediu à filha da ofendida para não ir visitar a
ofendida no lar, pois esta tinha regressado do aludido exame, com um pouco de febre.
c) Que no dia 26 de Agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar,
apresentando nódoas negras na zona inferior das pernas e nos pulsos.
d) Que a ofendida encontrava-se desnutrida.
e) Que quando a arguida aceitou a admissão da ofendida naquele lar, tinha conhecimento do estado clínico da ofendida e sabia que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como alimentação da ofendida.
f) Que a arguida, como responsável daquele lar, conhecendo a situação da ofendida, não lhe prestou os cuidados devidos, nomeadamente, não adequou a alimentação à situação clínica da ofendida, não chamou o médico/enfermeiro para mudar o penso da úlcera, que a ofendida tinha, deixando assim agravar aquele ferimento.
g) Que após a ofendida ter regressado ao lar, no dia 26 de Agosto de 2018, a arguida continuou a não providenciar por uma alimentação adequada à ofendida, não determinou que se procedesse à limpeza da ferida da ofendida, não lhe mudou o penso, nem a colocou numa cama com colchão adequado, de forma a permitir a cicatrização daquele ferimento.
h) Que agiu a arguida sabendo que iria provocar danos físicos e psicológicos à
ofendida, como consequência necessária das suas condutas.
i) Que ao recusar a prestar aqueles cuidados de saúde, sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da ofendida, bem sabia que causava nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
j) Que a arguida agiu com desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida, não lhe aliviando a dor, recusando-se a prestar-lhe a assistência para a qual estava perfeitamente apta a realizar.
l) Que mais sabia que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
8.O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, tendo desconsiderado todas as afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, analisando dialeticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmonizá-los entre si de acordo com os princípios da experiência comum, sem critérios pré-definidores de valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei diversamente o disponha.
A arguida não contesta que era a responsável do lar e que em 2018 cuidava da ofendida, MAR______ ; também refere que esta desenvolveu uma úlcera de pressão na zona sacra e que, para o efeito, cuidou de lhe lavar a ferida, colocar compressas de vaselina, hidrogel e aplicar penso e creme, sendo que só quando esta piorou, sensivelmente dois meses depois em Agosto de 2018, levou a ofendida ao Hospital, porquanto a úlcera começou a deitar um exsudado purulento. Mais declara que não informou a família das verdadeiras causas do transporte da ofendida ao hospital porque, nas suas palavras, não quis preocupá-los, mas que em momento algum lhes disse que iria levar a ofendida a realizar um T.A.C. Quanto ao segundo internamento, declara que a ofendida piorou, já depois de ser vista no lar pela família, sendo que voltou a enviá-la para o hospital, nunca mais tendo a ofendida regressado ao lar. Confirmou que tinha as funções de administrar a medicação prescrita aos utentes do lar, lavá-los, mudar-lhes as fraldas, mudar pensos, adesivos e efectuar curativos em feridas, alimentar os doentes, mudar lençóis. Também admitiu que o lar não preenchia todas as orientações da Segurança Social, pois que não tinha licença de funcionamento, pessoal suficiente ou profissionais qualificados para a prestação de cuidados médicos ou de enfermagem. Nega a arguida, no entanto, que tenha prestado cuidados desadequados à ofendida, pois que, no seu entender, fez o que pôde, sendo que, quando não mais conseguiu, encaminhou a ofendida ao Hospital.
A prova direta e concreta resume-se, no essencial, à documentação clínica das idas ao Hospital da ofendida em 24 de Agosto de 2018 e 28 de Agosto de 2018 de fls. 67 a 99, nela se descrevendo que a ofendida apresentava úlcera de pressão de grau IV com infecção, estava prostrado e demonstrava sinais de desidratação. Tudo culminado, a ofendida tinha úlcera na região sagrada, com cerca de 5x8cms de diâmetro e 3cms de profundidade, com tecido desvitalizado no bordo externo, mas sem exsudado purulento e sem eritema peri lesiona e úlcera de decúbito superficial na região do ombro esquerdo, com cerca de 1 cm de diâmetro, sem exsudado e sem eritema.
A…, filha da ofendida, e M…, nora da ofendida, relatam um quadro de normalidade até este dia: que visitavam a ofendida uma vez por semana, nunca se tendo deparado com qualquer falta de condições, nem com um tratamento desadequado a esta. Declara, no entanto, a primeira, ao contrário do que refere a arguida, que esta última lhe disse que iria levar a sua mãe para um T.A.C., mas sobre a úlcera nada soube até ao segundo internamento, quando M… lhe comunicou o que lhe foi dito pelo médico, ou seja, que já havia ocorrido um primeiro encaminhamento hospitalar da ofendida por conta de uma úlcera de pressão.
Porém, nenhuma destas testemunhas é capaz de nos responder às perguntas que verdadeiramente importam: como veio a ocorrer aquela úlcera de pressão, que cuidados deveriam ter sido ministrados e se foi a conduta da arguida que provocou tanto a úlcera como a sua degeneração até aquele grau. No limite, e de forma até contraintuitiva, as familiares da ofendida vêm atestar da qualidade do serviço prestado pela arguida à ofendida, sendo que, ao visitarem a ofendida todas as semanas, nunca se depararam com nenhum problema, inclusive de desnutrição ou desidratação.
Também Ac…, respetivamente, médico e “coach de enfermagem” que prestavam serviços ocasionais ao lar, sem nenhum vínculo contratual, são incapazes de se recordar da ofendida, não atestando se lhe prestaram algum cuidado, medicamento ou tratamento por conta desta úlcera.
AM____ , enfermeira que assistiu a ofendida nos seus últimos dias, relatou em Tribunal que uma úlcera de pressão de grau IV como aquela, apenas poderia ocorrer por força da colocação da ofendida sempre na mesma posição e na ausência de proteína na alimentação desta. Porém, e aqui reside a distinção clara entre uma testemunha e um perito, a testemunha não observou a ofendida, limitou-se a fazer um penso nos últimos dias, pelo que não é possível valorar o seu depoimento nesta parte, já que não responde à questão: o que concretamente provocou aquela úlcera e não as suas causas genéricas. Podem existir suposições e presunções a este respeito, aliadas à falta de condições físicas e de pessoal do lar, as quais, como se viu, não foram também atestadas por nenhuma testemunha, mas apenas pela arguida. Mas a assumir que estamos perante uma falta de cuidados adequados ou atempados à ofendida, podemos concluir que existe prova de uma atuação incorreta por parte da arguida? Não foi trazida qualquer prova no sentido de sustentar esta conclusão: de que o que foi administrado pela arguida não o foi devida ou atempadamente; tudo o que sabemos é da existência de uma ferida, que a certa altura infecto e que, nessa sequência, a arguida remeteu a ofendida ao Hospital. Podemos conjecturar o que se passou no entremeio, mas nada sabemos de concreto. Conclui-se também que o tratamento adequado seria a mudança de pensos em dias alternados, posicionamentos alternados e colchão anti- escaras, o que a arguida refere que realizou e inexiste prova que sustente o oposto. É certo que a acusação pública conclui com o falecimento da ofendida, procurando, de forma indireta, cremos, imputar um resultado morte à arguida (fls. 53). Mas não existe nenhum nexo de causalidade entre a atuação da arguida e esse resultado. Assim como nada foi trazido aos autos que nos mostre que a ofendida foi sujeita, por parte da arguida, a um qualquer tratamento desumano ou cruel. É certo que a ofendida veio a morrer e não se diminuem as dores que terá sofrido também por conta desta infeção, mas não foi trazido nada aos autos que comprove uma conduta dolosamente cruel e grave no tratamento da arguida para com a ofendida: o que o crime exige. Aliás, existe uma informação médica nos autos a fls. 226, no qual o senhor médico conclui que “a negligência é conceptualmente englobada no conceito de maus tratos”. Não sendo o mais correto dos enquadramentos jurídicos, pois que é essencial o conhecimento do carácter cruel e desumano dos atos praticados, é o mais certeiro possível no enquadramento fáctico: adiantaremos melhor esta questão em sede de direito, mas, no limite, o que existiria aqui seria uma conduta negligente por parte da arguida.
Assim sendo, no que respeita à matéria de facto dada como não provada, o Tribunal, tendo em conta alguma dúvida inerente a essa prova da qual não conseguiu tirar ilações seguras e perante a ausência de prova cabal quanto à mesma, ou perante a contradição com os factos que se mostram provados, foi levado a julgá-la nesses moldes.
As condições pessoais da Arguida foram pela própria relatadas e corroboradas pelo relatório elaborado pela DGRSP e na medida do dado como provado lograram convencer o Tribunal.
Relativamente aos antecedentes criminais da arguida, o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da atividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque, além de não importar um novo julgamento da causa, está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, a mesma «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e se considera incorretamente julgado» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art. 412º., pág. 1144).
No que se refere à especificação das provas concretas, o ónus previsto no art. 412º do CPP «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art. 412º., pág. 1144).
Este ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, apresenta, pois, uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada uma das declarações e depoimentos gravados.
Assim, se a acta contiver essa referência, a indicação dos excertos em que se funda a impugnação faz-se incluindo a referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º (nº 4 do artigo 412º do C.P.P.).
Mas, se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (Acs. da Relação de Évora, de 28.05.2013, proc. 94/08.0GGODM.E1 e da Relação de Lisboa de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Em qualquer das duas hipóteses, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exatos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, se o recorrente não individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado, não pode considerar-se cumprido o ónus de impugnação especificada exigido pelo art. 412º nºs 3 als. a) e b) e nº 4 do CPP.
Tal forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma exceção, desvirtuando completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que se traduz num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso.
Além disso, transferiria para o tribunal de recurso a incumbência de encontrar e selecionar, segundo o seu próprio critério, as específicas passagens das gravações que melhor se adequassem aos interesses do recorrente, ou seja, de fazer conjeturas sobre quais seriam os fundamentos do recurso, o que não é aceitável, porque o tribunal não pode, nem deve substituir-se ao recorrente, no exercício de direitos processuais que só a este incumbem, nos termos da lei, nem deve tentar perscrutar ou interpretar a sua vontade, interferindo, por essa via, com a própria inteligibilidade e concludência das motivações do recurso, logo, com a definição do seu objeto.
É, igualmente, inadmissível, à luz dos princípios da imediação e oralidade da audiência de discussão e julgamento, da livre apreciação da prova e da segurança jurídica, partindo da constatação de que o contacto que o Tribunal de recurso tem com as provas é, por regra e quase exclusivamente, feito através da gravação, sem a força da imediação e do exercício sistemático do contraditório que são característicos da prova produzida no julgamento.
Essa modificação será, assim, tão só a que resultar do filtro da documentação da prova, segundo a especificação do recorrente, por referência ao conteúdo da acta, com indicação expressa e precisa dos trechos dos depoimentos ou declarações em que alicerça a sua divergência (art. 412º nº4 do CPP), ou, pelo menos, mediante «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente» (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série, nº 77 de 18 de abril de 2012).
«É em face dessa prova que, em sede de recurso se vai aferir da observância dos juízos de racionalidade, de lógica e de experiência e se estes confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos, cuja veracidade cumpria demonstrar. Caso esteja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não estiver, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância» (Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253).
Trata-se, em suma, de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efetivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da livre apreciação da prova e in dúbio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos.
Se dessa comparação resultar que o Tribunal não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detetado.
Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objeto de sindicância pelo Tribunal da Relação.
Porém, se a convicção ainda puder ser objetivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso. Neste caso, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual.
Assim, a convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se constatar que decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efetivamente produzida no processo, deveria necessariamente ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e in dúbio pro reo, assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
«A censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção
(…)”.
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respetivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de 10.09.2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012; Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005 Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da
Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393 e ainda, os Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, proc. 729/17.4GBVVD.G1, da Relação de Lisboa de 2.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
«Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspetos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto; «Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
«Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.03.2021, processo 179/19.8JDLSB.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
O regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, traduz-se num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância e não pode, nem deve ser subvertido numa repetição da audiência de discussão e julgamento realizada em primeira instância.
A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório da audiência de discussão e julgamento, que postulam a excecionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a conceção do recurso como um remédio jurídico e não como um outro julgamento (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in
www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-122005, Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Coletivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
O recorrente cumpriu cabalmente o ónus de impugnação especificada, quer no tocante à menção dos precisos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quer nos meios de prova e respetivos segmentos dos quais, na sua visão da prova, se impunha a decisão oposta à que o Tribunal tomou.
Por isso, se deixa consignado que se procedeu à audição integral da prova produzida em audiência.
Quanto ao ponto 2 dos factos provados.
Na sentença recorrida, este ponto tem a seguinte redação:
2) A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento “...” Unipessoal, Lda. em data não concretamente apurada.
O Mº. Pº. opõe a esta indefinição temporal da entrada da ofendida nesta instituição, que o que resulta da prova produzida, concretamente das declarações da arguida SMGA_____ e do depoimento da testemunha M…, que expressamente mencionaram este facto, nos segmentos indicados nas motivações do recurso, foi que essa entrada teve lugar em data não concretamente apurada, mas do ano de 2017.
Ouvidos estes excertos - minuto 10:02 a 10:18 das declarações da arguida prestadas no dia 09.09.2021, consignadas em acta como tendo início às 09h32m45s e termo às 10h34m41s e o excerto daquele depoimento constante do minuto 14:43 prestado no dia 09.09.2021, consignado em acta como tendo início às 11h02m18s e termo às 11h24m08s, resulta que:
A arguida admite como possível que tenha sido em Setembro de 2017 que Ma…
integrou o lar/instituição de acolhimento “...” - Unipessoal, Lda, embora não tenha conseguido precisar a data em que tal ocorreu;
A testemunha M… declarou que MAR______ faleceu um ano depois de ter dado entrada no lar ... -Unipessoal, Lda. e que essa entrada ocorreu em 2017, pois morreu em 2018.
A testemunha M… era nora da ofendida que se deslocava, pelo menos, semanalmente àquela instituição para visitar a sogra e a sua própria mãe que também ali se encontrava acolhida, no período temporal mencionado na acusação, sendo ela quem levava a sua mãe às consultas médicas, razões porque frequentava aquele lar e contactava amiudadas vezes com a arguida, circunstâncias que a própria também referiu.
Considerando a razão de ciência desta testemunha e a coerência de versões apresentadas nestes dois meios de prova quanto a tal circunstância, a mesma terá de ser integrada na matéria de facto provada, pelo que o ponto 2) tem de ser alterado e passar a ter a seguinte redação:
2) A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento “...” Unipessoal, Lda, em data não concretamente apurada do ano de 2017.
No que concerne ao facto dado como provado em 21), o mesmo tem a seguinte redação:
A arguida trabalha como auxiliar num lar de idosos auferindo mensalmente a quantia de € 750,00.
Esta circunstância consta do relatório social com a referência Citius 19347440, junto aos autos em 13 de Agosto de 2021 (cfr. p. 4 do mesmo relatório), pelo que, estando alicerçado em prova não impugnada, não existe erro de julgamento, improcedendo o recurso nesta parte.
Quanto à produção de prova que determina a consideração como provados dos pontos
a), c), d), e), f), h), i), j) e l) que na sentença recorrida foram considerados não provados:
O facto dado como não provado em a) é o seguinte:
a) Que a arguida no dia 24 de agosto de 2018 apenas reagia a estímulos dolorosos,
estava apirética e algaliada com ch14.
Como muito bem salienta o Mº. Pº., a referência a «arguida», naquele ponto é um lapso de escrita e deve, como tal, ser corrigido, porque se refere à ofendida MAR______ .
E esse é o primeiro reparo a efetuar, quanto a este ponto.
Da motivação da convicção do Tribunal, quanto aos factos provados e não provados não se descortina, no texto da sentença recorrida, qual a razão pela qual este facto não foi dado como provado, quando, na realidade, o mesmo consta expressa e claramente do Diário Clínico - Urgência, relativamente ao episódio com inicio no dia 24-08-2018, às 19:15h, que a ofendida MAR______ , poucas horas depois de ter dado entrada nas urgências (às 01:44h), se apresentava prostrada e apenas reagia a estímulos dolorosos. Da mesma forma é feito constar que a ofendida se encontrava apirética e que foi “(...) algaliada com CH14, com saída de urina com cheiro fétido e concentrada” (às 02:08h) que consta de fls. 88, 89 e 90 dos autos.
Este documento não foi impugnado por ninguém, foi requisitado ao estabelecimento hospitalar onde, segundo a própria versão apresentada pela arguida em audiência, a ofendida MAR______ foi assistida, naquele dia 24 de Agosto de 2018, sendo certo que, como resulta do texto do documento, aquelas informações resultam de observações feitas por médicos e enfermeiros que prestaram a assistência hospitalar em causa.
O seu conteúdo, não merece qualquer dúvida porque nem sequer foram produzidos outros meios de prova aptos a infirmar ou neutralizar o estado físico, anímico e clínico de MAR______ , naquelas circunstâncias de tempo e lugar.
Pelo contrário, a própria arguida explicou os motivos que a levaram a decidir levar a ofendida ao Hospital, admitindo, ao minuto 27:50 das suas declarações que um dos motivos pelos quais decidiu levar a ofendida ao Hospital – além de a úlcera de pressão não estar a melhorar, «a ferida não estava bonita e dois dias antes estava a deitar um exsudado o que significa que poderia estar a haver uma infeção», a ofendida «poderia estar um pouco prostrada» - os quais dão total consistência ao conteúdo de tal Diário Clínico a que se soma o sentido coincidente da nota de Nota de Alta/Transferência (cfr. fls. 97 a 99) na parte em que refere que nas observações iniciais a ofendida apresentava-se «prostrada, reativa aos estímulos dolorosos. (...). Deficiente estado geral e nutricional (...) Pele e mucosas desidratadas e descoradas”.
De resto, é a própria Mma. Juíza que, a propósito dos motivos da sua convicção sobre a decisão de facto que tomou, refere que «a prova direta e concreta resume-se, no essencial, à documentação clínica das idas ao Hospital da ofendida em 24 de Agosto de 2018 e 28 de Agosto de 2018 de fls. 67 a 99, nela se descrevendo que a ofendida apresentava úlcera de pressão de grau IV com infeção, estava prostrado e demonstrava sinais de desidratação (…)», o que embora não correspondendo integralmente ao que resultou da discussão da causa em audiência segundo a gravação da prova, revela, no entanto, que foi o próprio Tribunal a aceitar como correta e credível a informação acerca do estado de saúde da ofendida que consta desses documentos.
Assim sendo, a Mma. Juiz ao considerar tal facto como não provado decidiu ao contrário do que devia, pois a prova documental que permite a sua consideração como provado não oferece qualquer incerteza e não há para além dela, outras provas de sinal contrário ou diverso.
Há, pois, erro de julgamento e o ponto a) dos factos não provados passará a integrar a
matéria de facto provada.
Quanto à alínea c), o seu conteúdo é o seguinte:
c) Que no dia 26 de Agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar,
apresentando nódoas negras na zona inferior das pernas e nos pulsos.
O Mº. Pº. alicerça a sua discordância da consideração deste facto como não provado, essencialmente, nos depoimentos testemunhais prestados por e M…, que são, a primeira, filha da ofendida e a segunda sua nora, sendo que ambas visitavam a ofendida MAR______ , no lar explorado pela arguida com uma periodicidade semanal.
Os depoimentos destas testemunhas estão registados na gravação digital do dia 09-092021, consignados em acta como tendo início às 10h34m42s e termo às 11h02m17s e início às 11h02m18s e termo às 11h24m08s, respetivamente.
relatou, nas passagens correspondentes aos minutos 8:30 e 19:25 que na segunda-feira seguinte ao primeiro episódio de urgência e internamento hospitalares (o dos dias 24 e 25 de Agosto de 2018), quando chegaram ao lar para irem levar iogurtes proteicos à sua mãe, em virtude de a ter visto muito debilitada e a sua cunhada, a testemunha M… quis ver as pernas e os pés da ofendida, porque começaram a aparecer-lhe manchas sobretudo nos calcanhares que «eram o início das escaras», a arguida impediu-as, dizendo que a ofendida estava bem e que aquele cheiro fétido que a sua mãe então apresentava, era por estar algaliada.
Por seu turno, quanto à testemunha Ma…, ouvidos os excertos deste depoimento a que o Mº. Pº. alude, nas motivações do recurso, efetivamente, (cf. passagens constantes dos minutos 06:10, 06:44, 12:57 e 17:15, do seu depoimento) deles resultam as afirmações atribuídas à testemunha pelo recorrente, concretamente, confirmou que, numa segunda feira seguinte ao primeiro internamento hospitalar da sogra, viu manchas negras nos calcanhares da mesma e ficou muito alarmada porque associou aquelas manchas ao surgimento de escaras e tentou inspecionar outras partes do corpo da sogra, mas a arguida demoveu-a de o fazer, dizendo que a senhora estava bem, só um pouco cansada. Também se recorda de que a sogra tinha um cheiro, mau e muito intenso e que a arguida o atribuiu à algália.
Acrescentou que marcou de imediato uma consulta médica para a sogra, mas que, entretanto, nem se concretizou, porque a sogra foi internada pela segunda vez, tendo sido, só aquando deste internamento que toda a família soube da existência de uma úlcera de pressão na região sacro de MAR______ e que havia estado hospitalizada dois ou três dias antes por causa daquela escara, por informação prestada pelo médico que observou a ofendida MAR______ .
Assistiu à desbridação da ferida da sua sogra e percebeu que se tratava de uma úlcera muito grave.
Neste contexto probatório e não havendo qualquer motivo para retirar credibilidade a estes depoimentos, posto que assentes em algo que as duas testemunhas viram no corpo da ofendida, importa que, de acordo com os princípios da livre apreciação da prova previstos no art. 127º do CPP considerar provado que no dia 26 de Agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar, apresentando nódoas negras na zona dos calcanhares (e não também na zona inferior das pernas e dos pulsos, porque dos depoimentos destas duas testemunhas apenas resulta terem visto as nódoas negras nos calcanhares da ofendida e não foi produzido qualquer outro meio de prova acerca destas circunstâncias);
Quanto ao facto não provado em d) o mesmo refere que a ofendida encontrava-se desnutrida.
Como refere e bem o recorrente, este facto resulta inequívoco de fls. 88 do Diário Clínico - Urgência, do episódio com inicio no dia 24.08.2018, às 19:15h, em resultado do qual a ofendida MAR______ foi internada no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, EPE, nos dias 24 e 25 de Agosto de 2028.
Com efeito, na entrada desse diário efetuada pelas 01h24m, está escrito o seguinte:
«Utente prostrada. Reactiva à mobilização. Pele e mucosas pouco coradas e desidratadas».
Também o Diário Clínico - Urgência, do episódio de urgência hospitalar com inicio no dia 28.08.2018, às 15:53h, fls. 79 e 80, diz acerca da ofendida MAR______ , que a mesma apresentava, quando foi observada pelas 16:42h, «a pele e mucosas pouco coradas e desidratadas».
Do mesmo Diário Clínico referente ao mesmo dia, mas à observação feita à ofendida pelas 17h20m, a fls. 81, é repetida a menção a que «a pele e mucosas se apresentavam pouco coradas e desidratadas» e anotado que a ofendida apresentava um «deficiente estado geral e nutricional».
Segundo, tal Diário Clínico, desta feita referente à observação feita à ofendida MAR______ , no dia 29.08.2021, pelas 00:06h, a fls. 82, a mesma tinha para além de úlceras de pressão na região sagrada com exsudado seroso fétido e tecidos desvitalizado», pele e mucosas descoradas e desidratadas»
Ainda deste Diário Clínico, a fls. 82, relativamente à observação feita à ofendida no referido dia 29.08.2021, quando eram 20h03m, consta «Problemas: Desidratação e Escaras de Decúbito», de que sofria a ofendida.
O estado de desnutrição da ofendida, nas referidas datas é, pois, evidente, porquanto resulta da observação clínica a que foi sujeita nos dias 24, 25, 28 e 29 de Agosto de 2018, no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca EPE, tal como documentado nas informações clínicas a que se referem aquelas fls. 79 a 82, as quais, como já se referiu a propósito da al. a) dos factos não provados, não merecem qualquer dúvida acerca da fidedignidade entre o respetivo texto e o quadro real de saúde e estado anímico e psíquico da ofendida, de resto, confirmado pela própria arguida e pelas testemunhas e M….
Efetivamente, a própria arguida referiu que a determinada altura a ofendida MAR______ deixou de conseguir comer as refeições pela própria mão, pelo que dependia de terceiros para providenciar a sua alimentação, sendo ela e as suas funcionárias quem davam de comer à ofendida e, quando confrontada pela Sra. Procuradora Adjunta, com o estado de desnutrição e desidratação assinalado nas observações clínicas realizadas em 24-25 de Agosto de 2018 e em 28-29 de Agosto de 2018, a que se referem as informações clínicas de fls. 67 a 99, respondeu que esse quadro talvez se devesse a uma infeção urinária que lhe havia sido diagnosticada também no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca EPE (minutos 22:08 e 50:47 das declarações prestadas em audiência no dia 9.09.2021).
A desnutrição da ofendida resulta corroborada nos depoimentos das testemunhas e M…, nos excertos em que aludem à aquisição de iogurtes proteicos que foram entregar ao lar para serem consumidos pela ofendida, precisamente porque a mesma estava muito prostrada e cada vez mais debilitada e combalida e recusava comer (minuto 07:32 do depoimento de e minutos 07:10 e 16:03 do depoimento de M…).
A prova produzida impõe, por tudo isto, a consideração como demonstrado do facto descrito no ponto d) do elenco dos factos não provados, pelo que também nesta parte existe erro de julgamento.
As alíneas e), f), g), h), i), j) e l), referem-se à consciência da ilicitude da conduta, à consumação do crime de maus tratos por omissão e aos elementos intelectual e volitivo do dolo que vinham imputados à arguida na acusação.
A propósito da consideração destes factos como não provados, a sentença limita-se a dizer que (transcrição parcial):
«Assim sendo, no que respeita à matéria de facto dada como não provada, o Tribunal, tendo em conta alguma dúvida inerente a essa prova da qual não conseguiu tirar ilações seguras e perante a ausência de prova cabal quanto à mesma, ou perante a contradição com os factos que se mostram provados, foi levado a julgá-la nesses moldes».
Todavia:
Que a arguida SMGA_____ sabia do estado clínico da ofendida M…
e das suas necessidades resulta, desde logo, por presunção judicial resultante da aplicação das regras de experiência comum e de critérios de lógica à idade da mesma ofendida quando foi acolhida como provado no ponto 1) e ao próprio contexto contratual em que a mesma ofendida foi acolhida no Lar ... Unipessoal, Lda, como resulta ilustrado, respetivamente, e nos pontos 3 a 5 e 15 da matéria de facto provada
A arguida é que era a responsável pela gestão desta empresa, de cuja exploração lucrativa fazia modo de vida, pelo que, segundo o que é de esperar segundo critérios de normalidade do que são os «usos do comércio» a que este tipo de atividade de prestação de serviços de assistência a pessoas idosas, nem ela poderia deixar de tomar conhecimento das condições físicas, psíquicas e estado geral de saúde das pessoas que admite para serem acolhidas no Lar, até porque teria necessariamente de saber da eventual existência de restrições alimentares, do tipo de medicação e periodicidade diária em que a mesma deveria ser ministrada, etc.
De resto, a própria arguida, ao longo das suas declarações em audiência de discussão e julgamento, prestadas no dia 9 de Setembro de 2021, revelou sempre saber muito bem qual o estado físico e de saúde da ofendida, sendo particularmente revelador o excerto correspondente ao minuto 24:06 em que refere «a Dona A… já não era uma senhora autónoma».
Nem outra conclusão seria compreensível, de acordo com o mais elementar senso comum.
Por outro lado, o depoimento da testemunha M…, nora da ofendida corrobora esta conclusão, pois a referida testemunha explicou que a arguida tomou conhecimento dos diversos problemas de saúde da ofendida, designadamente os problemas de mobilidade e de visão (cf. passagem constante do minuto 14:55, do seu depoimento).
Depois, considerando que a senhora já tinha 80 anos quando foi admitida naquele Lar, bem como o objeto social deste que era precisamente o de cuidar de pessoas idosas, só por uma total inconsideração, irreflexão e falta de pensamento crítico da arguida é que esta não teria como saber e não sabia que tinha perante si uma pessoa a precisar de cuidados de saúde, higiene, alimentação e todos os necessários à satisfação das suas necessidades e ao desenvolvimento da sua personalidade, pois foi precisamente para essa finalidade que M….
ali ingressou e esse era também o objeto social da empresa “...” Unipessoal, Lda. cuja atividade era a de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem, como descrito nos pontos 2) e 3) da matéria de factos provada.
Por isso, como refere e muito bem o recorrente:
«É até contraintuitivo afirmar que sendo a arguida a responsável pelo lar (facto provado 5), que tinha como funções, entre outras, administrar a medicação prescrita aos utentes, mudar pensos, alimentar e informar os médicos de qualquer alteração dos estado de saúde dos utentes (facto provado 15), não tivesse conhecimento do estado clínico da ofendida e que não soubesse que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como de alimentação.»
No que se refere às alíneas f) e g) dos factos não provados, o seu conteúdo é o que mais incisivamente se refere à consumação do crime de maus tratos por omissão e é o seguinte:
f) Que a arguida, como responsável daquele lar, conhecendo a situação da ofendida, não lhe prestou os cuidados devidos, nomeadamente, não adequou a alimentação à situação clínica da ofendida, não chamou o médico/enfermeiro para mudar o penso da úlcera, que a ofendida tinha, deixando assim agravar aquele ferimento.
g) Que após a ofendida ter regressado ao lar, no dia 26 de Agosto de 2018, a arguida continuou a não providenciar por uma alimentação adequada à ofendida, não determinou que se procedesse à limpeza da ferida da ofendida, não lhe mudou o penso, nem a colocou numa cama com colchão adequado, de forma a permitir a cicatrização daquele ferimento.
Resultou, desde logo, das declarações da arguida, que não havia médico contratado para prestar a devida assistência aos utentes, nem enfermeiros, porque havia dificuldades económicas, nem auxiliares de Acão médica (cujo número mínimo legalmente exigido nem sequer sabia, como o minuto 20:04 das suas declarações evidencia) porque as mensalidades pagas pelos idosos eram baixas, pelo que, quando alguém adoecia, chamava «médicos particulares».
Isto mesmo, foi também confirmado pelas testemunhas A… e B…, respetivamente, médico e “coach de enfermagem” que prestavam serviços ocasionais ao lar, sem nenhum vínculo contratual.
Como refere o recorrente, é muito sintomático que o médico A…, que prestava serviços ocasionais e esporádicos no lar, nunca tenha tratado ou observado a ofendida MAR______ (excerto do minuto 04:36, do seu depoimento), nem nunca lhe tenha sido pedida ajuda ou conselho pela arguida SMGA_____ quanto aos cuidados médicos ou de enfermagem a prestar à ofendida em virtude da lesão que apresentava (excerto do minuto 08:47, do seu depoimento), o que revela a desvalorização que a arguida fez, da gravidade do estado de evolução daquela úlcera de pressão.
Também o depoimento prestado pela testemunha F… que chegou a ser diretora técnica de um lar de idosos que a arguida explorou em Odivelas, tendo sido contratada pela arguida ajuda a perceber e reforça a falta de condições adequadas do lar explorado pela arguida para prestar cuidados de saúde, alimentação, higiene e bem estar aos idosos ali acolhidos e a pouca ou nenhuma sensibilidade da arguida para a necessidade de alterar esse estado de coisas, como defluí da circunstância de nem sequer existir um diretor técnico tendo sido esta testemunha quem, como amiga da arguida, lhe deu alguma ajuda, quanto aos requisitos legais para a abertura do lar em Queluz (aquele em que ocorreram os factos objeto deste processo), mas onde só esteve uma ou duas vezes.
Segundo a mesma arguida, também não dispunha de auxiliares em número suficiente para o número de utentes. Só tinha seis auxiliares «normais» (dos que não são auxiliares de ação médica), porque, adiantou, havia muita falta de pessoal.
São particularmente elucidativas as afirmações da arguida de que, primeiro, a ofendida comia como todos os outros utentes, que demorava muito tempo a comer e que a partir de determinada altura deixou de conseguir comer sozinha, a de que, entre o momento em que se apercebeu dos primeiros sinais de úlcera de pressão na zona sacro do corpo da ofendida MAR______ , até ao dia 24 de Agosto de 2018, quando ocorreu o primeiro episódio de urgência e internamento hospitalar decorreram dois a três meses em que ia aplicando pomadas e fazendo pensos numa escara que descambou numa úlcera de pressão de grau IV, ou seja, no último estádio de evolução possível e que foi fazendo o penso, a cada dois dias, julgando que conseguia, ela própria, tratar uma úlcera com aquelas dimensões e gravidade e apenas levou a ofendida ao hospital, dois dias depois de se ter apercebido que a ferida deitava líquido, «não estava bonita» e tinha «um bocadinho de cheiro» (excertos constantes dos minutos 22:13, 27:13, 55:37 das declarações que prestou ao Tribunal).
Ora, estas expressões de que a ferida deitava líquido, «não estava bonita» e tinha «um bocadinho de cheiro», face ao que consta das informações clínicas de fls. 67 a 99 dos autos e ao facto provado em 7., só podem ser interpretadas como um eufemismo para a «úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade» que a ofendida apresentava no dia 24 de Agosto de 2018, quando deu entrada no Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca EPE.
Acresce que segundo a descrição da testemunha AM____ esta ferida evidenciava ausência de cuidados de saúde e má alimentação, porque a úlcera apresentada pela ofendida, além de grandes dimensões e rompimento dos músculos com perda irreversível dos tecidos, tinha exposição óssea.
Esclareceu, ainda, como surge e se desenvolve todo o processo de formação de uma úlcera de pressão com as características daquela que a ofendida MAR______ apresentava: desde o grau I, traduzido numa maceração da pele, uma mancha vermelha que não desparece ao fim de uma/duas horas depois de pressionada, o grau II ou flitena que se manifesta numa bolha que rebenta com líquido transparente, o grau III que é uma ferida emergente após o rebentamento da bolha e atinge os músculos, sendo por vezes necessário para evitar a criação de tecidos necrosados, ministrar medicação antibiótica e em situações mais graves, recorrer a tratamento hospitalar com desbridamento para evitar a proliferação dos tecidos necrosados e permitir a regeneração dos tecidos, até ao grau IV que corresponde àquele em que estava a úlcera de pressão na zona sacro do corpo da ofendida em Agosto de 2018, que apresenta falta de carne e exposição óssea.
Também esclareceu que a falta de proteínas sobretudo, carne, peixe e ovos, na alimentação e falta de mudança de posicionamento do corpo de duas em duas ou de três em três horas e em diferentes posições por forma a assegurar períodos de seis horas sem pressão sobre a zona do corpo afetada são as principais causas para o surgimento de escaras.
A propósito deste depoimento, a motivação da decisão de facto da sentença recorrida refere que importa fazer «a distinção clara entre uma testemunha e um perito, a testemunha não observou a ofendida, limitou-se a fazer um penso nos últimos dias, pelo que não é possível valorar o seu depoimento nesta parte, já que não responde à questão: o que concretamente provocou aquela úlcera e não as suas causas genéricas.».
Ora, a verdade é que esta testemunha é enfermeira de profissão, faz parte de uma associação na área da prevenção e tratamento das úlceras de pressão, sabe do que fala, quando fala acerca de escaras e do seu processo evolutivo e não há nenhuma razão, em face ao seu conhecimento direto dos factos, por ter observado e feito um curativo àquela úlcera e da forma desinteressada como depôs, para não valorar o seu depoimento.
Esta testemunha examinou a ferida na zona do decúbito da ofendida e pôde constatar a sua gravidade e o risco de evoluir para uma septicémia e possível morte, tendo disso dado conhecimento ao neto da ofendida que foi a pessoa que a chamou para fazer novo penso à ferida da avó, logo depois de a mesma ter tido alta hospitalar do segundo episódio de urgência e internamento nos dias 28-29 de Agosto de 2018.
São também muito elucidativos os depoimentos das testemunhas A… e M…, nos relatos coincidentes entre si e com a versão apresentada pela arguida sobre toda a sucessão de acontecimentos relacionados com a condução da sua mãe e sogra ao Hospital Professor Doutro Fernando Fonseca, EPE nos dias 24 e 25 de Agosto de 2018, com o segundo episódio de urgência e internamento hospitalar entre os dias 28 de Agosto de 2018 e 5 de Setembro seguinte e os motivos desses internamentos e assistência hospitalar.
Por fim, os Diários Clínicos de fls. 67 a 99 são inequívocos, quanto ao estado de desnutrição e desidratação da ofendida, bem como à evolução da úlcera de decúbito que a ofendida apresentava e à falta de cuidados de enfermagem adequados ao tratamento desta úlcera, de que são reflexo os factos provados em 7) a 12), dos quais resulta, em síntese que quando a ofendida deu entrada no Hospital Amadora-Sintra, no dia 24 de Agosto, apresentava-se prostrada, com saída de urina com cheiro fétido, bem com apresentava uma úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade e regressou ao Hospital Doutor Fernando da Fonseca, no dia 28 de Agosto de 2018, pelas 15:53, porque o seu estado de saúde se agravou, sendo que se apurou que a ofendida mantinha uma úlcera exsudado seroso e fétido e tecido necrosado, tendo sido determinado o seu internamento por apresentar provável infecção urinária, úlcera de pressão na região sagrada e hipernatremia e desidratação e à data da sua da alta clínica, que ocorreu no dia 5 de Setembro de 2018, a ofendida apresentava úlcera na região sagrada, com cerca de 5x8cms de diâmetro e 3cms de profundidade, com tecido desvitalizado no bordo externo, mas sem exsudado purulento e sem eritema peri lesional e úlcera de decúbito superficial na região do ombro esquerdo, com cerca de 1 cm de diâmetro, sem exsudado e sem eritema.
Ora, se a ofendida estava aos cuidados de um lar de idosos por cuja gestão a arguida era a única responsável, como provado em 2), 3), 5) e 15) da matéria de facto provada e sabendo-se, porque se trata de factos de conhecimento geral decorrentes de um grau mínimo de experiência de vida e da vulgarização e massificação de certos ensinamentos básicos da ciência médica ao alcance de todos nós, que nem uma úlcera de pressão, nem os estados de desnutrição e de desidratação são fenómenos súbitos ou de emergência espontânea, ou de um dia para o outro, antes constituem condições físicas que são o culminar de um processo mais ou menos prolongado no tempo e que são fortemente indicadores da qualidade (ou falta dela) dos cuidados de alimentação, higiene, saúde e bem estar físico prestados à pessoa que os apresenta, tem igualmente de se concluir pela total contradição entre a prova produzida e a consideração como não provados dos factos descritos sob as alíneas f) e g) que resultam, efectivamente, demonstrados, porque a arguida é que tinha o dever de providenciar pela prestação dos necessários cuidados de saúde, alimentação, higiene e conforto adequados a prevenir quer os estados de desidratação e desnutrição que a ofendida apresentava, quer a progressão do que começou por ser uma maceração da pele, para degenerar numa úlcera de pressão de grandes dimensões e profundidade num máximo estádio de evolução até expor o osso, ao invés de ter deixado passar entre dois a três meses, segundo o que a própria arguida afirmou, sem providenciar pelos necessários cuidados de enfermagem e médicos que se mostrassem necessários.
Por fim os factos não provados nas alíneas h), i), j) e l), referem-se aos elementos intelectual e volitivo do dolo e à consciência da ilicitude e têm a seguinte redacção:
h) Que agiu a arguida sabendo que iria provocar danos físicos e psicológicos à
ofendida, como consequência necessária das suas condutas.
i) Que ao recusar a prestar aqueles cuidados de saúde, sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da ofendida, bem sabia que causava nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
j) Que a arguida agiu com desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida, não lhe aliviando a dor, recusando-se a prestar-lhe a assistência para a qual estava perfeitamente apta a realizar.
l) Que mais sabia que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
Ora, depois de tudo quanto ficou expresso sobre a insustentabilidade lógica da sentença recorrida na consideração como não provados dos factos a que se referem as alíneas a) a g) da matéria de facto não provada, para concluir que os mesmos resultam demonstrados e do que resulta descrito nos pontos 1) a 15) da matéria de facto provada, ouvidas as declarações da arguida, que se apresentou como uma pessoa dotada de inteligência, conhecimento e liberdade, portanto, em relação à qual nenhuma dúvida se suscita sobre a sua imputabilidade, acrescendo a circunstância, por ela própria relatada de que durante cerca de dez anos explorou lares de idosos e trabalhou nas mais variadas tarefas de prestação de cuidados específica desta população só por uma muito extraordinária e de todo em todo improvável coincidência é que poderiam não ser considerados provados estes factos exarados nestas alíneas h) a l).
Relembra-se que o dolo é um fenómeno psicológico que, situando-se na vida interior de cada um, só é observável diretamente por quem o experiencia. Da sua natureza subjetiva, nasce a sua insusceptibilidade de apreensão directa por terceiros.
Assim como acontece em geral com os actos interiores ou factos internos, respeitantes à vida psíquica, que raramente se provam directamente, porque não são externamente observáveis, também a demonstração da existência do dolo é frequentemente feita por inferência ou dedução lógica, partindo dos factos conhecidos que são os modos de execução dos tipos de crime, associados à capacidade de discernimento e à liberdade de vontade do autor desses factos e demais circunstâncias que contextualizam a prática do crime.
E, assim se prova o dolo, com base em prova indirecta, tão válida quanto seria, caso o arguido tivesse confessado integralmente e sem reservas os factos.
«A prova do dolo faz-se, normalmente, de forma indirecta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência, pelo que, na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente.» (Ac. da Relação de Lisboa de 15.12.2015, processo 200/15.9PBOER.L1-5. No mesmo sentido Ac. da Relação do Porto de 18.03.2015, processo 400/13.6PDPRT.P1, de 31.10.20218, proc. 423/16.3PBVLG.P1, da Relação de Lisboa de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação do Porto de 10.11.2021, proc. 229/19.8GCVFR.P1in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido Ragués i Vallés, El dolo y su prueba en el proceso penal, pág. 243).
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do silêncio do arguido e das presunções judiciais e tendo presente o artigo 6º da CEDH no seu acórdão de 20.03.2001 (Caso Telfner c. Áustria), também considerou que «as presunções legais (de culpa) e o juízo que se faça do silêncio do arguido não são, em regra e só por si, incompatíveis com a presunção de inocência».
Do mesmo modo, o Tribunal Constitucional vem decidindo, o artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º nº 1 da Constituição ( Ac. Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, e Ac. do TC nº 521/2018 de 17 Out. 2018, Processo 321/2018 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20180521.html).
Por último, importa, tecer as seguintes considerações:
Um Juiz não pode resumir a sua atividade de valoração e análise crítica da prova a considerar os factos provados apenas quando exista confissão integral e sem reservas do arguido e, quando ela não aconteça e apenas porque o arguido nega a autoria dos factos pelos quais se encontra acusado ou tenta encontrar algum tipo de explicação para certos desfechos, considerar esses factos não provados.
Não que as declarações de um arguido não possam, por si só, no confronto com os demais meios de prova, fundamentar a sua própria absolvição.
Num sistema, como o processual penal português, de livre apreciação da prova, não tem qualquer eficácia jurídica o aforismo “testis unus testis nullus”, pelo que, um único depoimento, mesmo sendo o da própria vítima, pode ilidir a presunção de inocência e fundamentar uma condenação, do mesmo modo que as declarações do arguido por si só, isoladamente consideradas, podem fundamentar a sua absolvição.
«É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjetiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objetivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187)» (Ac. da Relação de Guimarães de 07.12.2018, processo 40/17.0PBCHV.G1, in http://www.dgsi.pt).
Mas o que é imperativo, é que esse único testemunho ou essas únicas declarações se mostrem verosímeis, plausíveis, consistentes com regras de experiência e senso comum e da lógica humana, para além de toda a dúvida razoável e, no confronto com todos os outros meios de prova, se possa concluir que esse único meio de prova é credível e os demais não merecem a mesma confiabilidade, quanto à sua capacidade de reproduzir aquilo que realmente aconteceu.
Ou seja, é preciso que esse meio de prova isolado gere uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou ao contrário, crie uma certeza que afaste a dúvida, em suma, que alicerce de forma consistente ou impeça de forma igualmente consistente a convicção do tribunal.
Se não for o caso, como não foi, no caso vertente, é imperioso ter uma visão global e globalizante da prova, fazer correlações e comparações críticas entre os diversos meios de prova produzidos e colocar a informação obtida, através de todos e cada um deles, sob o crivo da razoabilidade e da lógica humanas, das regras de bom senso e de experiência comum, de certos conhecimentos científicos que, de tão massificados, já integram o património cultural de uma comunidade, porque isso é que é o que corresponde ao exame crítico das provas e ao exercício da livre convicção do julgador.
«O julgador, em vez de se encontrar ligado a normas prefixadas e abstratas sobre a apreciação da prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia e às máximas da experiência» (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, p. 298).
Ora, as regras da experiência são critérios gerais, índices corrigíveis, que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, que servem para produzir prova de primeira aparência, baseadas na experiência de vida, argumentos que ajudam a explicar o caso particular por referência ao que é normal acontecer, em situações semelhantes, embora sem excluir que o caso particular não se reconduza ao caso típico.
As regras de experiência comum são «definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto «sub judice», assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 300).
«As regras de experiência, os critérios gerais não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar ?» (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra, 1968, pp 47-48).
«As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efectuar a generalização. «Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária» Santos Cabral, em Prova Indiciária e as novas formas de criminalidade, Julgar n.º 17, http://julgar.pt/prova-indiciaria-e-as-novas-formas-decriminalidade/. No mesmo sentido, Paulo de Sousa Mendes, A Prova Penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002 e, particularmente, 1011).
O princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do CPP, pese embora dê ao Juiz alguma margem de liberdade, não pode resultar de opiniões, crenças, impressões ou outras razões meramente subjectivas, porque tem como contrapartida, ser um instrumento de descoberta da verdade material, portanto, visa a reconstituição dos factos da forma mais fidedigna possível à sua realidade histórica.
A livre convicção é um mecanismo de descoberta da verdade, mas não é a afirmação infundada da verdade.
A apreciação da prova é livre, porém, não pode ser arbitrária. Tem de alicerçar-se num processo lógico-racional, de que resultem objectivados, à luz das máximas de experiência, do senso comum, de razoabilidade e dos conhecimentos técnicos e científicos, os motivos pelos quais o Tribunal valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro qualquer.
Trata-se de uma «liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3)
«A liberdade de que aqui se fala não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionisto-emocional que se furte, num incondicional subjetivismo, à fundamentação e à comunicação. Trata-se antes de uma liberdade para a objetividade – não aquela que permita uma “intime conviction”, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objetividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, i. é, uma verdade que transcenda a pura subjetividade e que se comunique e imponha aos outros» (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, págs. 50-51).
O princípio da verdade material é um princípio com dignidade constitucional, sendo certo que a justiça material baseada na verdade dos factos é um direito indisponível. «(...) No processo penal, vigora o princípio da liberdade de prova, no sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua prova ligada à utilização de um certo meio de prova préestabelecido pela lei. E recorda-se que também a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.
É que o Estado, como titular que é do «jus puniendi», está interessado em que os culpados de atos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir os verdadeiros culpados» (Ac. do Tribunal Constitucional nº 578/98. No mesmo sentido, Acs. do TC nº 137/2012 e 198/2004, in http://www.tribunalconstitucional.pt e Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, 229/30).
Por isso mesmo envolve um esforço intelectual e de raciocínio crítico na interpretação da informação que todos os meios de prova produzidos são aptos a produzir de forma global e globalizante e é também por isso que a fixação dos factos tem de ser acompanhada de fundamentação sobre os motivos da convicção do julgador.
Envolve um esforço de razoabilidade.
É que essa fundamentação não serve apenas, nem o propósito de legitimação democrática da decisão judicial, nos termos consagrados nos arts. 205º da CRP e 97º, 374º e 379º do CPP, nem só a possibilidade de sindicância da decisão em sede de recurso, seja em revista alargada (art. 410º do CPP), seja em impugnação ampla (art. 412º do CPP).
Ela é um instrumento de autocontrole do arbítrio do próprio Juiz ou Coletivo de Juízes que assistiu à discussão da causa em julgamento, na fixação dos factos, na medida em que é na fonte da informação, na sua credibilidade que está o derradeiro teste ao acerto da consideração de um determinado facto como provado ou como não provado. E isto tanto em relação aos meios de prova não catalogados, quanto aos meios de prova cuja força probatória está pré-estabelecida legalmente (v.g., confissão integral e sem reservas, prova pericial e documentos autênticos e autenticados).
É o que determina a fronteira entre prudente arbítrio e arbitrariedade.
«A exigência de motivação responde, assim, a uma finalidade do controle do discurso, neste caso probatório, do juiz com o objetivo de garantir até ao limite de possível a racionalidade da sua decisão, dentro dos limites da racionalidade legal. Um controle que não só visa uma procedência externa como também pode determinar o próprio juiz, implicando-o e comprometendo-o na decisão evitando uma aceitação acrítica como convicção de algumas das perigosas sugestões assentes unicamente numa certeza subjectiva» (Ac. do STJ de 23.02.2011, proc. 241/08.2GAMTR.P1.S2, in http://www.dgsi.pt).
Por fim, cumpre referir que, enquanto que as presunções judiciais são meios de prova, o princípio in dúbio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contemplado no art. 32º nº 2 da Constituição, é um princípio de prova.
Ambos são mecanismos de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime.
O primeiro pressupõe que a dúvida se mantenha insanável, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas e resolve a dúvida cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido.
A segunda, através da inferência lógico-dedutiva, a partir de indícios ou factos circunstanciais ou colaterais ao objeto do processo resolve essa dúvida contra o arguido, superando a aplicação do in dubio pro reo, pois permite afirmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, para além de qualquer dúvida razoável ( Euclides Dâmaso Simões, em «Prova indiciária», na Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 203 e ss., José Santos Cabral em «Prova indiciária e as novas formas de criminalidade», na Revista Julgar, n.º 17, 2012, pág. 13, Marta Sofia Neto Morais Pinto, em «A prova indiciária no processo penal, na Revista do Ministério Público, n.º 128, out.-dez. 2011, pp. 185-222).
A adequada concatenação entre os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo e o da admissibilidade da prova indireta, através de presunções judiciais em Direito
Penal, implica que as dúvidas acerca da demonstração de determinados factos, sejam resolvidas em benefício do arguido, conduzindo à sua absolvição, mas a questão da existência da dúvida e consequente aplicação deste princípio só pode colocar-se depois de esgotado todo o iter probatório, ou seja, quando o «non liquet« persiste, mesmo depois de analisadas todas as provas diretas e de concluído todo o esforço lógico-dedutivo inerente ao apuramento dos factos através de presunções judiciais.
E esse esforço de indagação, para além da primeira aparência criada pelas declarações da arguida, e de análise conjugada e crítica de todos os meios de prova disponíveis é que não emerge na sentença recorrida, que parece baralhar e confundir o comportamento omissivo da arguida na prestação de cuidados básicos e essenciais de saúde, higiene, alimentação, bem estar físico e emocional à ofendida MAR______ com a causa da morte desta senhora em 14 de Setembro de 2018.
Ora, a arguida não está acusada da prática de um crime de homicídio.
O crime que lhe foi imputado foi o de maus tratos p. e p. pelo art. 152º A do CP, alicerçando-se a acusação no incumprimento de um dever geral de assistência à vítima a que a arguida estava contratualmente vinculada, por explorar um lar de idosos e ter aceitado, em contrapartida de uma remuneração mensal, acolher e cuidar desta senhora, depois concretizado em vários deveres de prestação de cuidados de alimentação, higiene e saúde.
Num contexto como este, nem se percebe como é que a sentença depois de ter assumido e bem que os documentos clínicos de fls. 67 a 99 eram tão credíveis ao ponto de serem os únicos meios de prova directa (o que nem sequer corresponde totalmente ao acervo probatório produzido, neste processo), não só não retira deles toda a informação útil que os mesmos são aptos a providenciar, como ainda decide contra o conteúdo expresso de tais documentos, por exemplo, no que concerne ao estado de desidratação e desnutrição da ofendida MAR______ constatado por médicos e enfermeiros que assistiram esta senhora num período temporal em que a mesma se encontrava confiada aos cuidados da arguida e em que esta era a única responsável pela gestão e funcionamento do lar onde a senhora residia, factos, de resto, corroborados pela própria arguida SMGA_____ bem como pelos depoimentos das testemunhas AM____ , e M… que são, de resto, os meios de prova essenciais para a solução do caso.
No que se refere ao primeiro dos mencionados depoimentos, o Tribunal optou por desvalorizá-lo, com alusões à falta de qualidade de perita da testemunha, em alternativa àquilo que teria sido o mais óbvio e consentâneo com as regras de experiência e senso comum, que era ter ponderado este depoimento, por tão elucidativo, quer do estado grave e irreversível da úlcera de pressão sofrida pela vítima, quer para contextualizar em conjugação com algumas afirmações proferidas pela própria arguida, que aquela úlcera progrediu até a um estádio de grau IV porque não foram prestados os necessários cuidados de alimentação e mudança de posicionamento frequente da vítima, para evitar essa progressão e que aquele estado de desenvolvimento de tecidos necrosados e exposição óssea durou tempo, já que foi a própria quem declarou que passaram entre dois a três meses entre a constatação da ferida e a condução da ofendida ao Hospital para receber tratamento adequado à mesma.
Mais arbitrária ainda se revela a desconsideração dos depoimentos das testemunhas e M…, respetivamente, filha e nora da vítima que prestaram depoimentos esclarecedores do estado de saúde de MAR______ e de toda a sucessão de eventos desde o dia 24 de Agosto de 2018, até à morte desta senhora, em 14 de Setembro de 2018, com a explicação de que «nenhuma destas testemunhas é capaz de nos responder às perguntas que verdadeiramente importam: como veio a ocorrer aquela úlcera de pressão, que cuidados deveriam ter sido ministrados e se foi a conduta da arguida que provocou tanto a úlcera como a sua degeneração até aquele grau. No limite, e de forma até contraintuitiva, as familiares da ofendida vêm atestar da qualidade do serviço prestado pela arguida à ofendida, sendo que, ao visitarem a ofendida todas as semanas, nunca se depararam com nenhum problema, inclusive de desnutrição ou desidratação».
Ora este conjunto de afirmações exaradas na motivação da decisão de facto revela que, contra tudo quanto foi dito e esclarecido pelas duas testemunhas em apreço e até de forma coincidente com a versão dos factos apresentada pela arguida, o Tribunal ignorou que a arguida começou por ocultar a estas duas testemunhas e a toda a família que a ofendida já havia estado internada no Hospital Fernando Fonseca EPE nos dias 24 e 25 de Agosto de 2018, que a arguida sempre ocultou até quando lhe foi possível que a ofendida tinha uma úlcera por pressão na zona sacro desde dois a três meses antes daquele dia 24 de Agosto de 2018 e reconheceu que nunca lhe prestou a assistência necessária pois nem tinha enfermeiros a trabalhar ao seu serviço, nem conhecimentos de enfermagem para o efeito e também nunca antes do dia 24 de Agosto de 2018 lhe ocorreu conduzir a vítima ao Hospital para receber o tratamento médico adequado, como ela própria respondeu a perguntas da Mma. Juíza, sendo certo que a família só veio a saber da existência da úlcera no segundo internamento ocorrido em 28 de Agosto de 2018 e, ainda assim, porque tal foi noticiado pelo médico que observou e
assistiu a ofendida.
Do mesmo modo não se compreende a dúvida acerca do que possa ter causado a úlcera de pressão de grau IV e o estado de desidratação e desnutrição, seja à luz dos conhecimentos de cultura geral que a medicina e a observação empírica revelam, pois que é consabido que as úlceras de pressão, ou escaras, são um problema de saúde pública e um indicador da qualidade dos cuidados prestados, que assola sobretudo a população mais idosa e mais propensa, por fragilidades de saúde, a longos períodos de acamamento ou imobilização, bem como a desidratação e a desnutrição, sobretudo, ao ponto de ser mencionado no Diário Clínico elaborado pelo médico de medicina geral que a observou no dia 28 de Agosto de 2018 «Prostrada reactiva aos estímulos dolorosos. Não colaborante e não emite discurso. Deficiente estado geral e nutricional. Rigidez dos membros superiores e inferiores. Eupneica. Pele e mucosas desidratadas e descoradas» (fls. 81).
Desde logo porque o que importa, ao contrário do que foi escrito na motivação da decisão de facto da sentença recorrida nem sequer é saber «como veio a ocorrer aquela úlcera de pressão», mas sim, depois de detectada a mesma e foi detectada entre dois a três meses antes, segundo o que a própria arguida relatou ao tribunal, o que é que a arguida deveria ter feito e não fez.
E a estas duas questões as respostas já estavam dadas pelos factos que a própria Mma. Juíza havia considerado provados e que são os que constam dos pontos 2), 3), 5) e 15) e era a partir deles que podia e devia ter concluído que a degeneração da úlcera até ao grau IV e os estados de desidratação e de desnutrição só à arguida são imputáveis, pois era sob a sua responsabilidade que esta senhora se encontrava e dependente dos cuidados de saúde, alimentação, higiene e bem-estar físico e psicológico, que ela, arguida, estava contratualmente obrigada a prestar-lhe, desde vários meses antes, pois que igualmente se provou que o ingresso de MAR______ no lar/instituição de acolhimento ..., Unipessoal Lda. ocorreu em data não concretamente apurada, mas do ano de 2017.
Assim sendo, por tudo quando fica exposto e atento o preceituado no art. 424º do CPP, impõe-se a alteração da decisão de facto, por forma a incluir na matéria de facto provada a matéria de facto provada, as als. a), c), d), e), f), h), i), j) e l) que na sentença recorrida foram considerados não provados, bem como a introduzir no ponto 2) dos factos provados o ano de 2017.
A decisão da matéria de facto passa, consequentemente, a ser a seguinte:
1) A ofendida, MAR______ tinha 82 anos em Setembro de 2018.
2) A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento “...” Unipessoal, Lda, em data não concretamente apurada do ano de 2017.
3) Aquela instituição tinha como objeto social a atividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem.
4) Aquele lar, primeiramente, situava-se na Rua … , Ramada, mas em 8 de Março de 2018, mudaram as suas instalações para a Rua … , Queluz.
5) A responsável pelo lar era a arguida, SMGA_____
6) No dia 25 de Agosto de 2018 a arguida comunicou à família da ofendida que esta se ia deslocar ao Hospital para fazer uma T.A.C., quando, na verdade, a ofendida tinha dado entrada nas urgências daquele hospital, pelas 19:15 do dia 24 de Agosto de 2018.
7) No entanto, a ofendida apenas saiu daquele hospital no dia 26 de Agosto de 2018, pelas 00:06.
8) Quando a ofendida deu entrada no Hospital Amadora-Sintra, no dia 24 de Agosto, apresentava-se prostrada, com saída de urina com cheiro fétido, bem com apresentava uma úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade.
9) Nesse dia 24 de agosto de 2018, a ofendida apenas reagia a estímulos dolorosos, estava apirética e algaliada com ch14.
10) No dia 26 de agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar, apresentando nódoas negras na zona dos calcanhares.
11) O estado de saúde da ofendida agravou-se, tendo regressado ao Hospital Doutor Fernando da Fonseca, no dia 28 de Agosto de 2018, pelas 15:53, onde se apurou que a ofendida mantinha uma úlcera exsudado seroso e fétido e tecido necrosado.
12) Foi determinado o internamento da ofendida por apresentar provável infeção urinária, ulcera de pressão na região sagrada e hipernatremia e desidratação. Foi determinado o internamento da ofendida
13) Iniciou-se tratamento, por antibiótico, à ofendida, por provável infeção cutânea da úlcera de pressão sagrada.
14) À data da alta clínica, que ocorreu no dia 5 de Setembro de 2018, a ofendida apresentava úlcera na região sagrada, com cerca de 5x8cms de diâmetro e 3cms de profundidade, com tecido desvitalizado no bordo externo, mas sem exsudado purulento e sem eritema peri lesional e úlcera de decúbito superficial na região do ombro esquerdo, com cerca de 1 cm de diâmetro, sem exsudado e sem eritema.
15) Para tratamento daquelas úlceras, no hospital sugeriu-se mudança de pensos em dias alternados, posicionamentos alternados e colchão anti-escaras.
16) A ofendida encontrava-se desnutrida.
17) À arguida, no exercício da sua atividade laboral e enquanto responsável daquele lar, cabiam, entre outras, as seguintes funções, que devia desempenhar diariamente e ainda sempre que fosse necessário: administrar a medicação prescrita aos utentes do lar aí internados; lava-los; mudar-lhes as fraldas (caso as usassem); mudar pensos, adesivos e efetuar curativos em feridas; alimentar (à colher ou através de sonda) os doentes que não conseguissem, devido às doenças, alimentar-se sem ajuda; mudar os lençóis; escrever no livro “notas do enfermeiro”, todas as informações relativas a cada doente; informar os médicos e os enfermeiros de qualquer alteração do estado de saúde dos utentes e ainda prestar assistência, em caso de emergência, aos doentes que dela necessitassem, pessoalmente ou chamando o médico de serviço, quando necessário.
18) Apesar de aquele lar necessitar de preencher determinados requisitos, para poder prestar o serviço que havia sido contratado pela ofendida, apurou-se, após inspecção feita pela segurança social, que aquele lar não tinha licença de funcionamento, não tinha pessoal suficiente para o seu funcionamento, bem como não tinha profissionais qualificados para a prestação de cuidados médicos.
19) Quando a arguida aceitou a admissão da ofendida naquele lar, tinha conhecimento do estado clínico da ofendida e sabia que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como alimentação da ofendida.
20) A arguida, como responsável daquele lar, conhecendo a situação da ofendida, não lhe prestou os cuidados devidos, nomeadamente, não adequou a alimentação à situação clínica da ofendida, não chamou o médico/enfermeiro para mudar o penso da úlcera, que a ofendida tinha, deixando assim agravar aquele ferimento.
21) A arguida agiu sabendo que iria provocar danos físicos e psicológicos à ofendida, como consequência necessária das suas condutas.
22) Ao recusar a prestar aqueles cuidados de saúde, sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da ofendida, bem sabia que causava nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
23) A arguida agiu com desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida, não lhe aliviando a dor, recusando-se a prestar-lhe a assistência para a qual estava perfeitamente apta a realizar.
24) Mais sabia que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
25) A ofendida veio a falecer no dia 14 de Setembro de 2018, pelas 11:45, na residência sita na Rua …, Amadora.
26) A arguida tem um filho de vinte anos.
27) A arguida abandonou o ensino escolar aos dezassete anos, quando frequentava o oitavo ano de escolaridade.
28) A arguida trabalhou como empregada fabril, na área das limpezas e como empregada de balcão.
29) A arguida iniciou a actividade de constituir um lar de idosos em 2009/2010.
30) A arguida trabalha como auxiliar num lar de idosos auferindo mensalmente a quantia de €750,00.
31) A arguida não tem antecedentes criminais.
Factos não provados:
Que, no dia 26 de Agosto de 2028, a ofendida apresentasse nódoas negras nos pulsos.
Quanto ao erro de direito referente ao enquadramento jurídico-penal dos factos como crime de maus tratos.
O artigo 152º-A do Código Penal, sob a epígrafe «maus tratos», pune com uma pena de prisão cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, um e cinco anos «quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez: a) lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) a empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) a sobrecarregar com trabalhos excessivos.
Esta incriminação resulta da autonomização do crime de violência doméstica relativamente ao de maus tratos que constava antes da revisão do CP de 2007 do art. 152º Código Penal, segundo a redacção que lhe foi introduzida pelo D. L. 48/95, de 15.03., entretanto, modificada pelas Leis 65/98, de 02.09, e 7/2000, de 27.05, o qual tutelava diferentes formas de violência no seio da família, da educação e do trabalho.
«Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa» (ponto 8. Da exposição de motivos inserta na Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojecto da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, que procedeu a tal tipificação autonomizada).
Ainda que o bem jurídico saúde coincida com o tutelado pelo crime de ofensa à integridade física, na medida em que «em causa estará então em ambos os casos, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental.» (Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar nº12 (especial), ASJP, Lisboa, Set.- Dez. 2010, p. 13 e ss.), trata-se de assegurar a integridade da saúde física e mental de pessoas mais vulneráveis, o seu bem-estar físico, psíquico e emocional (A. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 299; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, artigos 152º e 152ºA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 438 e Paula Ribeiro de Faria Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, 2ª ed., artigo 143º, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 299; Gomes Canotilho e Viral Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, artigo 25º, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 453).
Por isso, o bem jurídico protegido é a saúde entendida como um bem jurídico complexo suficientemente amplo e nas suas múltiplas dimensões para se identificar com a integridade do ser humano, em todas as suas componentes física, psíquica, mental e moral a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, nos mesmos termos em que se encontra protegida no art. 25º da CRP.
Tal como acentuado, na exposição de motivos inserta na Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojecto da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, do qual resultou este art. 152º A do CP, a razão de ser desta incriminação é o fortalecimento da defesa dos bens jurídicos visados com a incriminação, especialmente, «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas».
O referido preceito visa, pois, a prevenção, combate e repressão de frequentes e quase sempre subtis formas de violência física, psíquica e sexual dirigidas contra pessoas com menor capacidade de reacção ou defesa, tidas como mais frágeis ou vulneráveis a partir de certos índices, como a idade, doença, ou condição física ou psíquica ou gravidez e quando envolvidas num contexto relacional muito específico com o agressor: trata-se de relações de poderes/deveres de cuidado, de guarda, de direção ou educação, ou de natureza laboral que criam, pela sua própria existência, um certo ascendente natural ou posição mais privilegiada ou preponderante do agressor em relação ao agredido.
O vínculo de dependência existencial da vítima em relação ao autor do crime já não se funda na coabitação, nas relações familiares ou de namoro e afins como na violência doméstica, mas numa ligação institucional: o art. 152ºA, «(…) tem por objeto os maus tratos praticados nas escolas, hospitais, nas creches ou infantários, em lares de idosos ou instituições ou famílias de acolhimento de crianças, bem como os maus tratos cometidos na própria casa de habitação (por exemplo contra a empregada doméstica ou “baby-sitter”) ou na empresa, não deixando de fora, ainda e por exemplo, as pessoas que assumam, espontânea e gratuitamente, o encargo de tomar conta de “pessoas particularmente indefesas”, nomeadamente crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência» (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 536).
É, aliás, essencialmente, neste vínculo que o crime de maus tratos se distingue do de violência doméstica.
Assim, vítima ou sujeito passivo só pode ser uma pessoa que, simultaneamente, preencha dois requisitos positivos - o de que se encontre em relação de subordinação existencial ou laboral com o agente, ou seja que a vítima esteja ao cuidado, à guarda ou sob a responsabilidade da direção ou educação do agente ou a trabalhar ao seu serviço; o de que seja menor ou particularmente indefesa em razão da idade (avançada), de deficiência, da doença ou da gravidez - e um outro negativo - o de que não exista entre o agente e a vítima uma relação de coabitação -, pois nesse caso estará em causa um crime de violência doméstica, nos termos da al. d) do nº1 do art. 152º.
Os modos de acção típica são muito diversificados em sintonia com a amplitude e complexidade do bem jurídico, estando enumerados exemplificativamente os comportamentos susceptíveis de qualificação como maus tratos físicos ou psíquicos, ao invés de uma enumeração taxativa, que não esgotaria todo o espectro de actos potencialmente lesivos do bem jurídico visado proteger com a incriminação do art. 152º A do CP.
O crime consuma-se tanto com as condutas integradoras de ofensas à integridade física simples (os maus tratos físicos), ou seja todas as agressões que envolvam alguma perturbação no corpo e saúde da vítima, como com os maus tratos psíquicos, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam ou não a actos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., englobando quaisquer comportamentos que ofendam a integridade moral ou o sentimento de dignidade da vítima, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros e compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional puníveis, em si mesmas, ou não, como crimes de injúria e difamação, de ameaça ou de coacção.
Como exemplos de maus tratos psíquicos são, normalmente, indicados os «insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras», entre outros (Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar nº12 (especial), ASJP, Lisboa, Set.- Dez. 2010, p. 19. No mesmo sentido, Fernando Silva, Direito Penal Especial: Os crimes contra as pessoas: crimes contra a vida, crimes contra a vida intra-uterina, crimes contra a integridade física, Quis Juris, Lisboa, 2011, p. 315 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, artigos 152º e 152ºA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 465).
As privações da liberdade consistem em comportamentos destinados a impedir a deslocação da vítima, forçando-a a permanecer num determinado local, comprometendo, assim, o seu bem-estar e a sua liberdade de decisão quanto a deslocar-se de um local para outro ou de permanecer num determinado espaço, quer preencha, quer não crimes de rapto ou de sequestro.
As ofensas sexuais reportam-se às condutas sexuais punidas por tipos de crime autónomos no âmbito do Capítulo V do CP, cujas penas não ultrapassem a dos crimes em causa, ou seja, cinco anos, senão, aplicar-se-á o tipo legal mais grave, por força da cláusula de subsidiariedade expressa contida na parte final do art. 152º A nº1.
O crime de maus tratos proíbe também o tratamento cruel, que não se traduz, necessariamente, na imposição de lesões físicas, mas pode incluir outros tipos de comportamentos que impliquem um desgaste constante na vítima, devendo caracterizar-se pela sua adequação à inflição de sofrimento físico ou psicológico com uma certa tónica de reiteração ou permanência.
Este tipo proíbe ainda a sujeição a actividades desumanas, perigosas ou proibidas, que assim deverão ser qualificadas por referência às características e fragilidades específicas de cada vítima que, respectivamente, as humilhem ou degradem, ou com utilização de meios particularmente perigosos, ou na colocação da vítima em situações, também elas, especialmente perigosas, ou que correspondam à prática de factos ilícitos.
Por fim, entre as modalidades de maus tratos também se contam os trabalhos excessivos. A excessividade dos maus tratos afere-se também atendendo às características da vítima e ao tipo de trabalhos concretamente impostos.
Segundo o critério do resultado material, tanto podem ser classificados como crimes de resultado – quando a execução típica se traduz em maus tratos físicos ou em privações da liberdade - como de mera actividade – no caso de a conduta integradora do tipo constituir provocações, ameaças ou o emprego em actividades perigosas, desumanas ou proibidas - sendo que, nos primeiros o resultado é elemento do tipo de crime e nos segundos, apenas constitui motivo da incriminação.
De acordo com o critério da intensidade da lesão do bem jurídico, estes crimes também podem ser crimes de dano, por exemplo no caso de ofensas sexuais ou corporais e das privações de liberdade, ou crimes de perigo, nas situações em que ocorram ameaças ou humilhações ou o emprego em actividades perigosas. Nos primeiros, a efectiva lesão do bem jurídico é elemento do tipo legal, enquanto nos segundos o tipo legal apenas exige a colocação em perigo do bem jurídico.
Trata-se de um crime específico que será impróprio quando as condutas integradoras do crime de maus tratos, isolada e autonomamente consideradas, já constituam crime (v.g. os maus tratos físicos que traduzirão sempre ofensas à integridade física e certas modalidades de maus tratos psíquicos reconduzem-se aos crimes de injúria, ameaça, difamação, coacção sequestro), na medida em a qualidade do autor do facto ou o dever que sobre ele impende, não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar.
Se as condutas não configurarem, em si mesmas consideradas, qualquer outro ilícito penal, como tal previsto na parte especial do CP, o crime de maus tratos será, então, um crime específico próprio pois, nestes casos, como quando se submete a vítima a actividades perigosas, a trabalhos excessivos, a certas formas de crueldade, é a qualidade do agente que constituí o motivo da incriminação (neste sentido, Ricardo Bragança de Matos, Dos Maus Tratos a Cônjuge à Violência Doméstica: Um Passo na Tutela da Vítima, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, nº 107, pág. 97 e Augusto Silva Dias, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª edição, AAFDL, 2007, pág. 111; Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, artigos 152º e 152ºA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 469 e Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA, Coimbra Editora, Coimbra, 2012p. 513 e 535).
No que especificamente concerne aos idosos, a Organização Mundial de Saúde define maus tratos como um acto único ou repetido, ou ainda, ausência de acção apropriada que cause dano, sofrimento ou angústia e que ocorra no contexto e desenvolvimento de um relacionamento de confiança que atenta contra a sua vida, ou é lesiva da sua integridade física ou psíquica, da sua liberdade, segurança económica ou compromete o desenvolvimento da sua personalidade (Action on Elder Abuse (AEA, 1993) e adotada pela Organização Mundial de Saúde - WHO/INPEA. Missing voices: views of older persons on elder abuse. Geneva: WHO; 2002, https://apps.who.int/iris/handle/10665/67371)
Assim, dentro destes limites e com estas características, podem enumerar-se como formas de maus tratos a idosos: qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fracturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas, que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos; os maus-tratos psicológicos ou emocionais, materializam-se em condutas que causam dano psicológico como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afectiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afecto, isolamento e marginalização; a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos) que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como seja, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de auto-negligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano (cfr., Hirsch CH, Stratton S, Loewy R., The primary care of elder mistreatment. WEST J MED 1999 Jun; 170 (6): 353-8; Fernández-Alonso MC, Herrero-Velázquez S. Maltrato en el anciano: posibilidades de intervención desde la atención primaria (I). Aten Primaria 2006 Ene; 37 (1):56-9; Howard M. Fillit, Kenneth Rockwood, John B Young, Brocklehurst's Textbook of Geriatric Medicine and Gerontology E-Book pp 943 e 944 https://www.us.elsevierhealth.com/ e Briony Dow e Melanie Joosten Entendendo o abuso de idosos: uma perspectiva de direitos sociais, Janeiro de 2012, Psicogeriatria Internacional 24(6): 853-5 DOI: 10.1017/S1041610211002584 https://www.cambridge.org/core).
Em princípio, a estrutura objectiva do tipo implica a reiteração pois que a lesão do bem jurídico complexo saúde envolverá uma pluralidade de condutas da mesma ou de diferentes espécies repetidas por um período mais ou menos prolongado, embora com a expressão de «modo reiterado ou não» se admita que certas condutas isoladas, desde que dotadas de gravidade bastante, podem também operar a consumação dos maus tratos.
A imputação subjectiva do tipo, pese embora, as diferentes modalidades que pode revestir (crime de resultado, quando a forma de acção típica são os maus tratos físicos; crime de mera actividade, quando a modalidade de execução do tipo se reconduz à imposição de trabalhos excessivos; crime de dano, quando dos maus tratos físicos resultam lesões corporais; crime de perigo, nas formas de execução previstas nas als. b) e c) do nº 1 do art. 152º A), tem o seu fundamento exclusivo no dolo em qualquer das suas modalidades que, justamente, por causa, das diferentes formas que a consumação do crime de maus tratos pode revestir, tem conteúdo variável.
Implica, desde logo, sempre, o conhecimento da existência dos deveres inerentes, à assunção da relação laboral, ou do vínculo de protecção-subordinação, do estado de menoridade, deficiência, velhice, doença ou gravidez da vítima.
Na vertente de maus tratos físicos, o dolo abrange o resultado, qual seja, a consciência e a vontade de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido ou do perigo de afectação do normal desenvolvimento da criança aos cuidados do agente ou de criação de prejuízos para a saúde da vítima.
O art. 10º do CP equipara, em geral, a omissão à acção, nos crimes de resultado, estabelecendo que, quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como também a omissão adequada a evitá-lo. São os crimes comissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, nisso se distinguindo dos crimes omissivos puros que se caracterizam pela simples abstenção de agir e são crimes de mera actividade.
A punibilidade do omitente depende da existência de um específico dever jurídico que o obrigue a agir, para evitar o resultado. Só há equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão, porque o agente tem uma posição de garante da não produção do resultado, à luz de um dever jurídico de agir que constituí o fundamento da punição e sem o qual a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um.
O facto típico materializa-se na «criação de um risco de verificação de um resultado típico» que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da acção esperada e exigível por referência àquilo que segundo a descrição típica é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a acção devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Dto Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928).
O dever jurídico de garante da não ocorrência do resultado antijurídico pode resultar directamente da Lei (dever legal especial), de um contrato, de situações de criação de perigo e/ou relações familiares íntimas de solidariedade e confiança que importem a aceitação de facto de deveres cuja execução importe ingerência/apoio entre o omitente e o titular do bem jurídico que suporte o dever de agir, numa posição de protecção ou de uma posição de controlo (Johannes Wessels, Direito Penal, Parte Geral 1976, pág. 157 e ss; Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, verbo, pág. 49 e ss; Pinto de Albuquerque Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, artigo 10º, p. 72-73).
Analisados todos os elementos do tipo de crime de maus tratos, importa verificar se os factos demonstrados preenchem este tipo legal de crime.
A primeira constatação a fazer é a de que entre a arguida e a ofendida existia uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas da segunda que data não apurada de 2017, quando tinha 80 anos, ingressou no lar/instituição de acolhimento ...-Unipessoal, Lda., cujo objecto social era a actividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem e por cuja gestão a arguida, SMGA_____ era a única responsável.
Como demonstrado no antigo ponto 15) e actual 17), da matéria de facto provada, no exercício da sua actividade laboral e enquanto responsável daquele lar, a arguida tinha a seu cargo, entre outras, as seguintes funções, que devia desempenhar diariamente e ainda sempre que fosse necessário: administrar a medicação prescrita aos utentes do lar aí internados; lava-los; mudar-lhes as fraldas (caso as usassem); mudar pensos, adesivos e efectuar curativos em feridas; alimentar (à colher ou através de sonda) os doentes que não conseguissem, devido às doenças, alimentar-se sem ajuda; mudar os lençóis; escrever no livro “notas do enfermeiro”, todas as informações relativas a cada doente; informar os médicos e os enfermeiros de qualquer alteração do estado de saúde dos utentes e ainda prestar assistência, em caso de emergência, aos doentes que dela necessitassem, pessoalmente ou chamando o médico de serviço, quando necessário.
Está assim configurada a sua posição de garante da saúde física, mental, psíquica e bem-estar emocional da ofendida MAR______ e, além dela, também o especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a arguida estava contratualmente obrigada e a situação de vulnerabilidade e dependência fruto da idade avançada da vítima, que integra o nº 1 do art. 152º A do CP.
Os factos provados sob os pontos 8) a 16) nenhuma dúvida oferecem que a arguida podendo e devendo assegurar a alimentação e assistência médica e de enfermagem adequadas ao seu estado clínico, por falta de cuidados e de assistência quer na alimentação quer nos cuidados de saúde, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável pelo agravamento da úlcera de pressão e pelo estado de desnutrição e desidratação em que MAR______ se encontrava, quando deu entrada pela primeira vez, no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca EPE, em 24 de Agosto de 2018.
Na medida em que, como descrito nos pontos 19) a 24, agiu com dolo, na modalidade de dolo necessário, ao actuar conforme referido, deve ser condenada pela prática do crime de maus tratos de que vem acusada.
E nesta sequência e em cumprimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016, segundo o qual, «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a Relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.» (Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22), impõe-se proceder à escolha e determinação concreta da pena, dentro da moldura abstracta prevista para o crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º A nº 1 do CP – pena de prisão cujos limites mínimo e máximo são um ano e cinco anos.
Nos termos do art. 40º nº 1 do CP, é função da pena, salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes e, na medida do possível, assegurar a reintegração do agente na sociedade, consagrando a prevenção geral e a prevenção especial como fundamentos legitimadores da aplicação das penas e acrescentando, no seu nº 2, que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Este art. 40º veio, pois, concretizar no âmbito do Direito Penal e em matéria de escolha e dosimetria das penas, os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, consagrados no artigo 18º nº 2 da CRP.
Por seu turno, o art. 71º nº 1 do CP impõe que a determinação da pena seja realizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Com efeito, «o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena» (Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194).
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva, nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, AAFDL, pág. 25).
A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.
E é a culpa apreciada em concreto, de acordo com a teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas.
Assim, em primeiro lugar, a medida da pena será fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva).
De seguida, dentro desta moldura, a medida concreta da pena será doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
Por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena.
«A culpa do infrator apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (condito sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção» (Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322).
Culpa e prevenção são, por conseguinte, os dois limites a observar no processo de escolha e determinação concreta da medida da pena e prosseguindo a necessidade de assegurar este equilíbrio, entre a medida ótima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade e a medida concreta da pena abaixo da qual «já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar» (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229).
O art. 71º do Código Penal enumera as circunstâncias que contribuem para agravar ou atenuar a responsabilidade, a que o Tribunal deverá atender, para tal efeito.
Dispõe este preceito, no nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 do mesmo artigo enumera, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender, dispondo o nº 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, em correspondência com o artigo 375º nº 1 do CPP, que impõe que a sentença condenatória especifique os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Nessa enumeração exemplificativa vislumbram-se critérios, tanto associados à prevenção geral, como é o caso da natureza e do grau de ilicitude do facto (que impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como relacionados com exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Com efeito, esses critérios referem-se, uns, à execução do facto – als. a), b), c) e e), parte final, como é o caso do grau de ilicitude do facto, do modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência e os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; outros, à personalidade do agente, como sejam as suas condições de vida e a sua preparação ou falta dela, para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – als. d) e f) – e, outros, ainda, à conduta anterior e posterior ao facto – al. e) - especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
Mas estas circunstâncias a que se refere o mencionado nº 2 do art. 71º, são aquelas que não integram os elementos constitutivos do tipo, sob pena de violação do princípio do «ne bis in idem».
No entanto, tais circunstâncias, na parte em que a sua intensidade concreta ultrapasse os limites necessários que a lei considera no tipo incriminador para a determinação da moldura penal abstracta, devem ser consideradas na fixação concreta dessa moldura.
Estas circunstâncias devem ser, ainda, valoradas de acordo com a teoria da margem da liberdade.
Quanto às circunstâncias agravantes a ponderar, importa salientar que, pese embora, no que concerne ao grau de culpa da arguida, a intensidade dolosa, na modalidade de dolo necessário se trata do tipo de dolo intermédio entre as modalidades enunciadas no art. 14º do Código Penal, o grau de violação dos deveres impostos tem sentido marcadamente agravante, atenta a situação de especial vulnerabilidade da vítima e a relação contratual ao abrigo da qual a arguida assumiu a obrigação de prestar todos os cuidados necessários não só à sobrevivência e satisfação das necessidades básicas, mas à manutenção da sua dignidade inerente à sua condição humana e às especiais necessidades decorrentes da sua avançada idade.
Vir dizer, como fez a arguida em audiência, para tentar explicar o inexplicável, que as mensalidades pagas pelos idosos eram baixas e por vezes não pagavam, quando tinha total soberania para determinar o montante da contrapartida monetária que pretendia receber, pois foi ela quem começou por se dedicar de forma livre e voluntária a uma atividade lucrativa, e em cujo contexto desconsiderou de forma absolutamente censurável o cuidado e a protecção que deveria dispensar à ofendida (como a todos os idosos a quem se incumbiu de cuidar) é, no mínimo, desconcertante.
Se não tinha qualquer qualificação científica ou técnica seja em geriatria, em gerontologia ou em cuidados básicos de enfermagem, mas queria, ainda assim, ter um negócio de prestação de serviços de assistência e cuidados de saúde e outros a pessoas idosas, mais concretamente, a atividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem que era o objecto social da empresa ... Unipessoal, Lda. que geria em 2017 e 2018, a arguida tinha de ter criado todas as condições logísticas, físicas, equipamentos adequados, recursos materiais e humanos, com recrutamento de técnicos especializados para prestar um serviço com padrões mínimos de qualidade e fazer repercutir, então, como em qualquer actividade lucrativa, o investimento realizado, nos montantes das mensalidades que iria cobrar aos utentes.
É preciso não esquecer que as pessoas a quem pretendia servir têm especiais necessidades por efeito da sua idade avançada, problemas de saúde associados, muitas vezes, solidão e desamparo de quem está a viver a recta final da sua vida e nem sempre conta com o afeto e atenção da sua família. São pessoas com carências a vários níveis, porque dependentes de terceiras pessoas, até para as necessidades mais elementares à sua sobrevivência, mas que nem por isso perderam dignidade ou direitos. Por isso mesmo, é que merecem especial atenção, proteção e, acima de tudo, respeito.
Em contextos como aquele em que a ofendida MAR______ se encontrava em 2017 quando ingressou no lar de idosos explorado pela arguida e, infelizmente muitas pessoas idosas como ela, o que menos precisam é de serem expostos a tratamentos cruéis, degradantes, maus tratos físicos, psíquicos, infligidos por quem se responsabiliza por lhes prestar cuidados e assistência, convertendo-se, contra todas as expectativas, em seus agressores, ao invés de as protegerem e lhes assegurarem, ao menos, a satisfação das necessidades de alimentação, higiene e saúde mais básicas que foi o que faltou, no caso vertente, à ofendida.
Já lhes basta a velhice, a solidão, a doença e as fragilidades associadas à idade avançada com que têm de lidar diariamente. O que deveria merecer solidariedade e compaixão, ao invés do menosprezo a que a arguida votou a ofendida.
Por isso que o que jamais se pode aceitar como explicação, ou tentativa de explicação para comportamentos tão graves como o que a arguida assumiu perante esta senhora MAR______ é que «fez o que pode» porque as mensalidades pagas pelos utentes eram baixas ou porque nem sempre pagavam a tempo e horas, o que revela um profundo desrespeito por valores tão básicos ao convívio social como o respeito que é devido a todas as pessoas e à sua dignidade humana, independentemente da sua idade, condição física ou psíquica ou recurso económicos.
Como diz e muito bem o Mº. Pº., no seu recurso, a arguida nem sequer fez o que pôde, pela simples razão de que não fez nada.
E podia e devia tê-lo feito, até ao abrigo de um simples dever de auxílio, se, mesmo sem ter tido o cuidado de instalar um lar de idosos devidamente apetrechado, em vez de só ter providenciado por assistência médica e de enfermagem à ofendida naquele dia 24 de Agosto de 2018, o tivesse feito, dois ou três meses antes, logo que se apercebeu dos primeiros sinais da ocorrência da úlcera de pressão, segundo o que a própria arguida relatou ao tribunal.
O mesmo tem de dizer-se do estado de desidratação e desnutrição em que esta senhora se encontrava quando foi assistida no hospital o que revela uma total desconsideração pela satisfação das necessidades mais essenciais à própria sobrevivência da vítima.
O modo de execução é, aliás, revelador de eficácia e determinação e enorme a ilicitude da conduta, atendendo, quer à natureza dos bens jurídicos tutelados, quer ao facto de a arguida ter praticado as condutas integradoras do ilícito em apreço, durante vários meses, indiferente ao sofrimento físico e muito provavelmente psíquico e emocional que causou a MAR______ quando foi precisamente para o oposto disso que admitiu o ingresso da mesma na instituição de acolhimento para idosos ... Unipessoal, Lda. que geria como uma actividade lucrativa.
Somam-se, com carácter agravante, as exigências de prevenção geral, que são muito fortes, em face da enorme proliferação de crimes de natureza idêntica, pelo alarme social que estes crimes provocam, quer em função dos danos irreversíveis que provocam, de que muitas vezes resulta a morte das vítimas, quer em virtude da censurabilidade dos comportamentos que os integram, também do ponto de vista ético, por atentarem contra valores absolutamente fundamentais de coesão social, de solidariedade e respeito aos mais velhos, de dignificação da sua condição e da sua não discriminação em função da sua idade ou condição física e psíquica, que são valores constitucionais inspiradores dos direitos humanos fundamentais e do Estado de Direito Democrático em que vivemos.
A APAV recebeu mais de 10 mil queixas por crimes e violência contra idosos entre 2013 e 2020, tendo atingido em 2020 o número mais alto de processos abertos, maioritariamente por crimes de violência doméstica.
De acordo com a informação estatística divulgada pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), a propósito do Dia Internacional da Pessoa Idosa, dos 10.307 processos abertos nesta série estatística sobre crimes e violência contra idosos, 1814 foram abertos em 2020, o número mais elevado num único ano desde 2013, batendo o máximo do ano anterior (2019), em que foram abertos 1615 processos.
Daqueles 1814 processos, 579 referem-se a maus tratos físicos e 702 a maus tratos psicológicos, o que diz bem da dimensão preocupante deste fenómeno
(https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2020.pdf).
Com carácter abonatório, apenas o facto de a arguida não ter antecedentes criminais, de se dedicar ao trabalho, estando inserida social e familiarmente.
Sopesados todos estes factores, mostra-se adequada a graduação da pena de prisão em dois anos e seis meses.
De acordo com os princípios gerais, consagrados nos art. 18º nº 2 da CRP, da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, a que o art. 40º do CP deu concretização, constitui princípio fundamental do sistema punitivo do Código Penal, o da preferência fundamentada pela aplicação das penas não privativas da liberdade, consideradas mais eficazes para promover a integração do delinquente na sociedade e dar resposta às necessidades de prevenção geral e especial.
Em diversos preceitos se encontram afloramentos de tal princípio, designadamente, no instituto da suspensão da execução da pena de prisão, previsto no art. 50º.
Nos termos do art. 50º nº 1 do CP, «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
A suspensão da execução da pena constituí uma dessas medidas de conteúdo pedagógico e ressocializante que exige, para além da moldura concreta não superior a cinco anos de prisão, que o Tribunal formule um juízo favorável ao arguido, no sentido de considerar provável que a simples censura da sua conduta e a ameaça da pena são suficientes para que ele não volte a cometer crimes e para satisfazer as exigências de prevenção da criminalidade.
E a ponderação das condições pessoais do arguido, da sua personalidade e conduta anterior e posterior aos factos, bem como as circunstâncias em que estes foram praticados, estão directamente associadas a finalidades de prevenção especial e não quaisquer factores relacionados com o grau de culpa do agente, cuja sede própria de apreciação é a escolha e determinação concreta da pena, constituindo o limite máximo e inultrapassável desta.
A suspensão da execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime.
«O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa» (LealHenriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, em anotação ao art. 50.º).
Do que se trata é de saber, se mantendo o autor do crime em liberdade, sujeito ou não a injunções e regras de conduta, como condições do não cumprimento efectivo da pena de prisão, destinadas, respectivamente, a reparar o mal do crime e a assegurar a inserção social do condenado, se mostra, em cada caso, adequado e suficiente para que interiorize o carácter ética e juridicamente reprovável da sua conduta e obste a que volte a praticar outros crimes.
«Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético - social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade» (Jescheck, Tratado, Parte Geral, versão espanhola, volume II, págs. 1152 e 1153).
«Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso» (Ac. do STJ de 18.06.2015, proc. 270/09.9GBVVD. S1, in http://www.dgsi.pt; no mesmo sentido, Acs. do STJ de 5.07.2012, proc. 373/11.0JELSB.S1-5; de 24.02.2016 proc. 60/13.4PBVLG.P1.S1, na mesma base de dados; Figueiredo Dias, in “Direito Penal
Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 344; André Lamas Leite, A suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do
Código Penal, in Stvdia Jurídica, 99, Ad Honorem-5, BFDC, Coimbra Editora, 2009, pág. 629).
Mas são, sobretudo, razões atinentes à prevenção geral que fundamentam, seja a aplicação, seja a não aplicação deste instituto.
Com efeito, são as razões de prevenção geral, traduzidas nas exigências mínimas e irrenunciáveis de salvaguarda da crença da sociedade, na manutenção e no reforço da validade da norma incriminadora violada, que determinam a possibilidade de reinserção social em liberdade que inspira o instituto da suspensão da execução da pena.
Mesmo que aconselhada à luz das exigências de socialização do condenado, a suspensão da execução da pena não poderá ter lugar, se a tal se opuserem a tutela dos bens jurídicos violados e as expectativas comunitárias, quanto à capacidade dos mecanismos e das instituições previstos na ordem jurídica para repor a validade e a eficácia das normas que a integram e de as fazerem respeitar.
«Uma tal medida (de suspensão de execução da pena de prisão) em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial.
«Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial de Notícias, págs. 330/331 e Robalo Cordeiro, A Determinação da Pena, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, CEJ, vol. 2.º, pág. 48 Acs. dos STJ de
09.11.2000, in http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html; de 08.05.2003; de 02.10.2003; de 02.03.2006; de 02.05.2006; de 06.07.2006; de 25.10.2007; de 02.04.2008; de
17.04.2008 e de 18.12.2008; de 07.04.2010 in http://www.dgsi.pt).
Numa análise globalizante dos factos, mostra-se que os mesmos se inserem num contexto de vida pessoal da arguida, em que, pese embora a ausência de antecedentes criminais, a inserção familiar e laboral, os mesmos foram praticados no âmbito de uma actividade empresarial que durou cerca de dez anos, as razões de prevenção geral são fortes e a arguida não revelou a menor empatia ou sensibilidade em relação ao sofrimento que causou à vítima, assumiu uma postura de distanciamento perante os factos e de auto desresponsabilização o que coloca algumas reservas quanto à suspensão da execução da pena pura simples e à sua eficácia para fazer com que a arguida interiorize o carácter ilícito e censurável da sua conduta e se abstenha da prática de novos crimes da mesma ou de diferente natureza. Soma-se um factor de risco acrescido que é o de que continua a trabalhar na assistência a idosos, embora agora por conta de outrem.
Ponderando, em contrapartida, o efeito consabidamente criminógeno das penas de prisão de curta duração, potenciador de reincidência (cfr., nesse sentido, Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade e a Escolha da Pena, anotação ao Ac. do STJ de 21 de Março de 1990 (3ª secção – processo nº 40 639), in RPCC ano I, nº 2, Abril – Junho de 1991, p. 255) bem assim e sobretudo, porque, no caso vertente, ainda é possível garantir um “limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica”, mantendo a arguida em liberdade, apenas sob a ameaça da pena e materializando a censura do facto na imposição de determinadas regras de conduta e injunções e ainda de sujeição a um plano de reinserção social a suspensão da execução da pena, com regime de prova, nos termos consentidos pelos arts. 51º nº1 al. c); 52º nº 1 al. b), 52º nº 2 als. a), b) e d), 53º e 54º nº 3 do CP, ainda assegura as finalidades de prevenção geral e especial das penas.
Assim, mostram-se adequados e proporcionais, além de outros que venham a integrar o plano individual de reinserção social, os de:
a) Frequentar programa de sensibilização para a problemática dos maus tratos a
pessoas idosas;
b) Não prestar nenhum tipo de cuidados de saúde, higiene, alimentação, vestuário, ou a qualquer outro título, auxílio ou assistência, na satisfação de todas e quaisquer necessidades essenciais à sobrevivência diária a pessoas com idades iguais e/ou superiores a 65 anos, no exercício da sua profissão, ou em qualquer outro contexto, nem acolhê-las formal ou informalmente, seja, na sua residência, ou em qualquer outro local.
c) Entregar a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) à APAV e junta documento
comprovativo desse pagamento aos autos, até ao final do segundo ano de duração da suspensão da pena.
Quanto ao período de duração da suspensão, o mesmo será fixado em três anos e seis meses.
Na acusação, o Mº. Pº. também pediu a aplicação da pena acessória de proibição do exercício de funções, nos termos previstos no art. 66º nºs 1 e 2 do CP.
É a condenação do agente numa pena principal que constitui o antecedente lógico e essencial da aplicação da pena acessória.
Porém, não é a condição suficiente, porquanto, não sendo a pena acessória um mero efeito da pena principal, nem sua consequência automática, nem uma medida de segurança, porque não se encontra referida apenas a efeitos preventivos, antes surge principalmente associada a uma especial gravidade e/ou censurabilidade do crime, seja pelo particular desvalor das circunstâncias concretas da execução criminosa, seja pela intensificação da culpa, ou pela necessidade de reforço da tutela do bem jurídico ou de protecção da vítima, ou ainda, outros interesses de política criminal, para além dos limites que a pena principal é apta a assegurar, a sua aplicabilidade depende da demonstração de um específico conteúdo de ilícito, de uma culpa especialmente agravada, e/ou de especiais necessidades de protecção da vítima, ou de prevenção geral de intimidação dentro dos limites da culpa que, depois de casuisticamente avaliados, justifiquem materialmente a aplicação em espécie da pena acessória, em reforço e complemento do conteúdo sancionatório e restaurativo ínsito à pena principal.
De resto, o artigo 30º nº 4 da Constituição da República Portuguesa veio precisamente proibir, na sua plenitude, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos enquanto efeito necessário das penas, o mesmo sucedendo, no art. 65º nº 1 do CP, revelando um claro propósito do legislador, no sentido de impedir que as penas produzam efeitos inibidores da reintegração social do condenado que não tenham na culpa o seu fundamento e limite.
As penas acessórias «(…) são, isso sim, verdadeiras penas. Ademais, só são efectivamente aplicadas se a sentença condenatória expressamente as declarar, não resultando, pois, automaticamente, da pena principal e (…) para além disso, devemos entender, actualmente, que a sua finalidade última também não será nunca a da prevenção geral negativa, esta que tanto se associa aos efeitos das penas» (Faria Costa, “Penas acessórias – Cúmulo jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]”, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3945, Ano 136, Julho-Agosto de 2007, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 324).
«A pena acessória é a consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal, mas cuja autonomia se manifesta porque a sua aplicação depende da alegação e prova de pressupostos autónomos, relacionados com a prática do crime a sua aplicação depende da valoração dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa, e a pena é graduada no âmbito de uma moldura autónoma fixada na lei. Daí, a pena acessória nada tem a ver com o efeito da pena, isto é, a consequência automática e necessária do crime aplicável em cumulação com uma pena principal» (Paulo Pinto de Albuquerque “Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, pág. 256. No mesmo sentido, Figueiredo Dias, 2 “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Aequitas, Ed. Notícias, pág. 197; M. Miguez
Garcia, J. M. Castela Rio, “Código Penal Parte geral e especial, com notas e comentários”, p. 406; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 14/96, publicado no Diário da República nº 275/1996, Série I-A de 27.11.1996, sobre a pena acessória de expulsão de estrangeiros do território nacional; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Acórdão 2/2018, de 13 de Fevereiro publicado no Diário da República nº 31/2018, Série I, de 13.02.2018, acerca da inibição do direito de conduzir e da possibilidade de realização de cúmulo jurídico entre penas acessórias dessa natureza; Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº 7/2008 , in DR, I Série de 30-07-2008; Acórdãos do TC n.ºs 149/01, 586/04,
79/09, 53/2011 e 145/2021, in http://www.tribunalconstitucional.pt; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 17.01.2018, processo n.º 149/17.0PFVNG.P1 e de 10.10.2018, processo n.º 35/18.7PAESP.P1 e acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.02.2015, processo n.º 59/14.3GTVIS.C1 e de 28.02.2018, processo n.º 211/17.0GAMIR.C1, todos in http://www.dgsi.pt).
As penas acessórias visam «censurar especialmente o arguido pelo circunstancialismo que envolve o crime cometido, circunstancialismo esse que justifica a privação de certo direito, faculdade ou posição privilegiada de algum modo relacionados com a prática do crime. É precisamente a relação (cuja existência só em concreto pode ser estabelecida) entre o cometimento do crime e o abuso (ou o «mau uso») do direito ou faculdade que a ele se liga que cria o «espaço» onde vive a censura suplementar contida na pena acessória; é também nessa relação que a pena acessória colhe o fundamento material legitimador da sua aplicação ao lado da pena principal». (…) ao passo que as medidas de segurança acessórias «visam reagir – ao lado da aplicação de uma sanção principal (pena ou medida de segurança) – contra a perigosidade manifestada pelo agente na prática de um facto ilícito-típico. Neste caso, a mediação judicial é feita através do juízo de perigosidade criminal» (Pedro Caeiro, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Abril de 1992, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 157, de 10.07.1992, Qualificação da Sanção de Inibição da Faculdade de Conduzir Prevista no artigo 61.º, n.º 2, alínea d), do Código da Estrada –
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Abril de 1992, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 157, de 10.07.1992, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro 1993, páginas 543-572).
Do mesmo modo que o princípio da legalidade criminal impede a determinação ex lege da pena concreta a aplicar e envolve, necessariamente, a possibilidade de individualização jurisdicional da sanção penal em conformidade com as circunstâncias concretas de cada caso, dentro de um sistema de penas variáveis, entre um mínimo e um máximo mais ou menos amplo, sob pena de violação dos princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade (especialmente, nas vertentes da adequação e proibição do excesso) e da culpa em matéria penal e da necessidade da pena (cfr. José Sousa e Brito, "A lei penal na Constituição", Estudos sobre a Constituição, Lisboa, 1978, págs. 199 e segs. e
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 192), também as penas acessórias carecem de uma intervenção mediadora do Juiz, na sua aplicação, escolha e determinação concreta, na medida em que apesar de prosseguirem objectivos de política criminal diferentes dos das penas principais e das especificidades do seu regime em atenção a questões como a da inadmissibilidade suspensão da respectiva execução, as penas acessórias estão indissoluvelmente ligadas ao facto praticado e à culpa do agente e são dotadas de uma moldura penal específica, que convoca, pois, os mesmos critérios gerais contidos no art. 71º do CP, para a fixação das penas principais (Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, Universidade Católica, p. 28 e Maia Gonçalves, C. Penal Anotado, 15ª ed., p. 237; Tiago Caiado Milheiro, Cúmulo Jurídico
Superveniente, Noções Fundamentais, Almedina, 2016, págs. 141-144; Figueiredo Dias,
"Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime", Coimbra Editora, 4.ª reimp., págs. 157 e ss. e Jescheck e Weigend, "Tratado de Derecho Penal - Parte General",5.ª edição, Comares, Granada, 2002, págs. 842 e ss.).
«As penas acessórias constituem verdadeiras penas. (... ) A sua imposição não pode, pois, nunca assumir carácter automático. O carácter não automático da pena acessória reside na necessidade de comprovação judicial dos requisitos formal - prévia punição pela prática de um crime - e substancial - «particular conteúdo do ilícito que justifique materialmente a sua aplicação» (Acórdão do STJ (de Uniformização de Jurisprudência) nº7/2008, in DR 146, SÉRIE I, de 30.07.2008. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Coimbra de 19.12.2017, processo 186/14.7GCLSA.C2; de 28.02.2018, processo n.º 211/17.0GAMIR.C1; da Relação de Lisboa de 09.07.2019, processo 338/17.8PGALM.L1 5ª Secção; de 11.03.2021, processo 179/19.8JDLSB.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
No caso vertente, além da gravidade do comportamento da arguida já sopesado a propósito da escolha e determinação concreta da pena de dois anos e seis meses de prisão que lhe foi aplicada, importa referir que os maus tratos infligidos a MAR______ aconteceram num contexto em que a arguida se assumiu como cuidadora desta senhora de oitenta e dois anos ao abrigo de um vínculo contratual remunerado e no exercício de uma actividade comercial lucrativa.
Com efeito, tudo aconteceu quando esta senhora ingressou no lar/instituição de acolhimento ... -Unipessoal, Lda. durante o ano de 2017, tratando de uma instituição que tinha como objecto social a actividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem, por cuja gestão era responsável única a arguida SMGA_____
Sobre a elevadíssima ilicitude do comportamento da arguida integrador do crime de maus tratos, já tudo também ficou dito a propósito da escolha e determinação concreta da pena de prisão aplicada, apenas se reitera que além da extrema danosidade do comportamento da arguida, pelo enorme sofrimento físico e psíquico que causou à vítima, durante, pelo menos, dois ou três meses e de forma completamente desnecessária, o grau de violação grosseira dos deveres que assumiu no contexto de uma prestação de serviços remunerada e, portanto, totalmente voluntária é também muito intenso e censurável.
Há em todo este contexto, um risco de reincidência que só não é enfrentado com o cumprimento efectivo da pena de prisão em virtude do tempo entretanto decorrido sem que haja notícia de outros comportamentos delituosos, da curta duração do tempo de prisão fixado, do princípio da preferência fundamentada por medidas não privativas da liberdade e do princípio da proibição do excesso, acima contextualizado a propósito da opção pela suspensão da execução da pena de prisão e que motivou, de resto, a imposição de deveres e regras de conduta, bem como o regime de prova.
Esse risco de repetição de condutas como a de que há notícia nestes autos, emerge não só da relativa facilidade com que a arguida sem qualquer qualificação técnica ou científica, sem licença, sem recursos humanos, nem equipamentos adequados e durante cerca de dez anos, explorou pelo menos, três lares de idosos, sem qualquer controlo ou supervisão, como também da sua postura de displicência e total desinteresse perante a necessidade de que os cuidados de assistência na saúde, na satisfação das necessidades essenciais do dia a dia das pessoas mais velhas e todas aquelas que lhes deveriam ser providenciadas para lhes assegurar bem estar físico, psíquico e emocional, para lhes permitir desenvolverem e conservarem em toda a sua plenitude as suas capacidades, a todos os níveis, tenham determinados patamares mínimos de qualidade.
Acresce que, mesmo depois destes factos e até ao presente, a arguida continua a trabalhar num lar de idosos sito em Famões que terá a designação de os Avozinhos, segundo o relatório social elaborado pela DGRSP e junto aos autos em 13 de Agosto de 2021, com a referência Citius 19347440, sendo sintomático o excerto contido nesse relatório segundo o qual «a arguida não nos facultou a documentação comprovativa da actual situação económico-profissional e o contacto da superior hierárquica conforme solicitamos», exarada na página 3 deste relatório.
Acontece, porém, que falta um dos requisitos de natureza formal de que o art. 66º do CP faz depender a aplicação desta pena acessória, que é o de que a pena concretamente aplicada tenha sido igual ou superior a três anos de prisão, o que inviabiliza a aplicação da pena acessória de proibição do exercício da função.
O mesmo tem de dizer-se da recolha de ADN peticionada também na acusação, face à pena concretamente aplicada, neste processo e ao que dispõe o art. 8º nº 2 da Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro.
III – DECISÃO
Termos em que decidem:
Conceder provimento parcial ao recurso e, em consequência:
Julgam parcialmente procedente a impugnação ampla da matéria de facto, determinando que:
Do ponto 2) dos factos provados passe a constar que A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento … - Unipessoal, Lda, em data não concretamente apurada do ano de 2017;
Que as als. a), c), d), e), f), h), i), j) e l) que na sentença recorrida foram considerados não provados, passem a integrar a matéria de facto provada, com a ressalva, quanto à alínea c), de que a mesma passará a ter a seguinte redacção:
No dia 26 de Agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar, apresentando nódoas negras na zona dos calcanhares;
Condenam a arguida SMGA_____ como autora material de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152°-A n° 1 do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão.
Ao abrigo do disposto nos arts. 50º; 53º e 54º do CP, determinam a suspensão da execução desta pena de prisão pelo período de três anos e meio, com regime de prova a cumprir segundo um pleno individual de reinserção social a elaborar pela DGRSP quando o processo for remetido à primeira instância que diligenciará pelo cumprimento do disposto no art. 494º do CPP.
Ao abrigo do disposto nos arts. 51º nº1 al. c); 52º nº 1 al. b), 52º nº 2 als. a), b) e d), 53º e 54º nº 3 do CP, determinam, além de outros deveres e regras de conduta que venham a integrar o plano individual de reinserção social, a sujeição da arguida aos deveres e regras de conduta de:
a) Frequentar programa de sensibilização para a problemática dos maus tratos a pessoas idosas;
b) Não prestar nenhum tipo de cuidados de saúde, higiene, alimentação, vestuário, ou a qualquer outro título, auxílio ou assistência, na satisfação de todas e quaisquer necessidades essenciais à sobrevivência diária a pessoas com idades iguais e/ou superiores a 65 anos, no exercício da sua profissão, ou em qualquer outro contexto, nem acolhê-las formal ou informalmente, seja, na sua residência, ou em qualquer outro local, devendo a sua entidade patronal ser disso informada, assim como o ISS, IP, Direcção de Lisboa e Vale do Tejo.
c) Entregar a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) à APAV e junta documento comprovativo desse pagamento aos autos, até ao final do segundo ano de duração da suspensão da pena.
Sem Custas – art. 522º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pela Mma. Juíza Adjunta.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 23 de Fevereiro de 2022
Cristina Almeida e Sousa
Florbela Sebastião e Silva
JTRP000
Crime de maus tratos
Conceito Idoso Dependente
Comissão por omissão
RP20231018820/21.9T9AVR.P1
18/10/2023
I – O conceito de “maus tratos” não se limita às situações mais evidentes de ofensas à integridade física ou psíquica das vítimas, frequentemente traduzidas em agressões físicas/sexuais, insultos, humilhações ou ameaças, antes abarcando um espetro muito alargado de comportamentos suscetíveis de ofender a saúde física, psíquica e emocional das pessoas às quais são dirigidos, neles se incluindo ausência da prestação de cuidados alimentares e de higiene pessoal exigíveis e adequados a preservar o seu bem-estar e integridade pessoal.
II - É de notar que a APAV (Associação Portuguesa de Apoio á Vítima) identifica como exemplo de práticas de violação de direitos de pessoas institucionalizadas, entre muitas outras, «deixar pessoas idosas com dificuldade de mobilização sentadas ou deitadas durante muito tempo, sem ajudá-las a levantar-se» e «não mobilizar regularmente pessoas idosas acamadas», para além de «práticas de violação de direitos ao nível da supervisão técnica», incluindo «Não assegurar que a equipa técnica é qualificada e que há um número adequado de profissionais que a compõem», e de «Práticas de violação de direitos ao nível da higiene pessoal», nomeadamente «Deixar as pessoas idosas sujas (por exemplo, de fezes e urina) durante muito tempo» e «Não lavar as pessoas idosas acamadas na totalidade durante longos períodos de tempo». Acrescenta-se a prática de «Negligenciar a alimentação das pessoas idosas por falta de ajuda durante as refeições».
III - Compete à instituição que acolhe pessoas idosas assegurar a execução das tarefas necessárias a garantir o bem-estar e saúde dos respetivos utentes, provendo diariamente pela sua alimentação, higiene e cuidados médicos
IV - Comete o crime de maus tratos, por omissão, a instituição e respetivo representante legal (presidente do conselho executivo), que, por não dispor da quantidade de funcionários suficiente, omite a prestação dos cuidados de alimentação, higiene e mobilização dos utentes mais vulneráveis e dependentes, com a frequência e qualidade necessárias, causando-lhes lesões e consequente sofrimento físico e psíquico-emocional.
Proc. nº 820/21.2T9AVR.P1
Recurso Penal
Juízo de Instrução Criminal de Aveiro – Juiz 2
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I. Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o nº 820/21.2T9AVR.P1, corre termos pelo Tribunal de Aveiro, foi proferido despacho de arquivamento do inquérito instaurado pelo Ministério Público contra os arguidos Fundação ..., AA e BB, pela prática, em coautoria material, de um crime de maus tratos, p. e p. pelos artigos 152.º-A, n.º 1, alínea a) e 11.º, n.º 2, do Código Penal.
Inconformado com o despacho de arquivamento, CC, atuando em representação de DD, sua mãe, constituiu-se assistente nos autos e requereu abertura de instrução, na sequência da qual veio a ser proferido o despacho de não pronúncia constante de fls. 487/495.
Inconformado com a referida decisão instrutória de não pronúncia, dela interpôs recurso o assistente, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
«1. Vem o Recorrente intentar o presente recurso por não concordar com o teor do douto despacho de não pronúncia.
2. Tendo de facto os arguidos sido não pronunciados pelo crime de maus tratos previsto e punido pelo artigo 152.º -A, 10.º e 11.º, n.º 2, todos do Código Penal.
3. Contudo, não pode o Recorrente concordar com o entendimento, vertido na douta decisão recorrida, entendendo que, contrariamente ao constante da mesma, os elementos existentes nos autos impunham que fosse proferida decisão de pronúncia.
4. Na verdade, o Recorrente apresentou denúncia no dia 16 de março de 2021, a qual veio a dar origem aos presentes autos, remetendo-se na íntegra para o teor de tal denúncia, mas denunciando em suma factos que no seu entendimento configuravam maus tratos aos idosos e em particular à sua mãe.
5. Quanto a tais factos, foram inquiridas diversas testemunhas, nomeadamente: EE, cuja inquirição consta a a fls. 102 dos autos; FF, cuja inquirição consta a fls. 104 dos autos; GG, cuja inquirição consta a fls. 116 dos autos; HH, cuja inquirição consta a fls. 119 dos autos; II, cuja inquirição consta a fis. 121 dos autos; JJ, cuja inquirição consta a fls. 126 dos autos.
6. Ora, não obstante, ser mencionado por diversas das testemunhas a falta de funcionários em número suficiente para assegurar os cuidados adequados e necessários aos utentes, designadamente aos mais dependentes, nomeadamente no que concerne a alimentação, higiene e rotação dos mesmos, veio a concluir-se no douto despacho de não pronúncia que, tal situação apenas se poderia reconduzir eventualmente a negligência, “não resultando, assim de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do Lar.”.
7. Entendimento com o qual não pode o Recorrente concordar.
8. De acordo com o artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, “quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e (...) lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”;
9. Trata-se este de um crime em que o bem jurídico protegido é a pessoa individual e a sua dignidade humana, incluindo o âmbito punitivo deste tipo de crime os comportamentos que, de forma reiterada, lesam esta dignidade.
10. Exige este tipo legal que o agente se encontre numa relação de superordenação face à vítima: relação/dever de cuidado ou de guarda.
11. Vítima será assim, no que ora interessa quem seja particularmente indefesa em razão da idade, pressupondo o tipo de crime em causa uma reiteração das respetivas condutas.
12. Trata-se, ainda, de um crime doloso, podendo ser um crime de resultado ou de mera conduta, incluindo o dolo em qualquer das suas modalidades.
13. Sendo que, no que ora interessa, o conceito de maus tratos expressa uma conduta praticada contra pessoa idosa, que ocorre num contexto de confiança e viola os direitos humanos, abarcando os mais variados tipos de maus tratos: físico, material e psicológico.
14. A gravidade exigida nos comportamentos para integrarem o crime previsto no art.º 152.º-A CP, verifica-se pela especial violação do dever de garante incumbido ao agente.
15. Estão em causa os casos em que o agente tinha obrigação de atuar sobre outra pessoa de modo a prestar-lhe proteção, auxílio e cooperação, mas, ao invés, comete sobre essa pessoa um ato que lesa a sua integridade física de forma significativa.
16. Cumprindo quanto a este âmbito referir que a Associação de Apoio à Vitima — APAV compilou uma listagem de exemplos de maus tratos suscetíveis de se verificarem em lares da terceira idade, exemplificando como tal designadamente o “não oferecer variedade na comida e na bebida” e ao nível da higiene pessoal, o deixar as pessoas sujas durante elevado tempo — cf. (APAV, 2010). http://apav.pt/idosos/index.php/manual-titono.
17. Podendo assim tal crime ser, conforme decorre do artigo 10.º do Código Penal, praticado por ação ou omissão.
18. Veja-se com relevância para os autos - tese “Maus Tratos a Idosos em Lares”, de Joana Fernandes Cardoso, pág. 25 e ss, disponível em https://repositorio.ucp.Qt/bitstream/10400.14/28144/1TESE%20%20Joana%20Fernandes%20Cardoso.pdf.
19. Podendo ainda ler-se com relevância para a questão em análise o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-10-2016, proc. n.º 2255/15.7T9PRT.P1, referindo-se à prática do crime nesse caso do artigo 152.º do CP por omissão.
20. Sendo que, não obstante no acórdão atrás referido, o mesmo se referir ao artigo 152.º do Código Penal, o bem jurídico protegido é o mesmo.
21. Ora, no caso em apreço nos presentes autos, resultou de forma clara da inquirição das testemunhas que a instituição, no período em que a mãe do denunciante se encontrou como utente da mesma, padecia de uma falta grave de funcionários.
22. Sendo também claro que em consequência de tal falta de funcionários, os utentes, principalmente os mais dependentes, como era o caso da mãe do denunciante, não eram alimentados devidamente porque os funcionários eram insuficientes e em consequência não tinham tempo,
23. Não sendo além disso devidamente higienizados, passando horas a mais com a mesma fralda, e não sendo movimentados o que implicava passarem muitas horas na mesma posição, gerando feridas de pressão.
24. No caso da mãe do Recorrente o estado em que a mesma se encontrava e que foi expressamente mencionado pela testemunha FF, era em tudo compatível com a omissão de cuidados de que foi vitima enquanto se encontrou aos cuidados da instituição ..., estando de facto muito magra, com um eritema na zona genital decorrente de falta de higienização e com uma grave úlcera de pressão já com tecido necrótico, decorrente da falta de mobilização da mesma.
25. Sendo tais danos físicos decorrentes não apenas de uma conduta negligente, como considerado, mas de uma conduta dolosa e omissiva grave, na medida em que bem sabiam os responsáveis da instituição que existia uma falta grave de funcionários, levando a que não fosse possível de todo prestar os cuidados devidos aos utentes, principalmente aos mais dependentes.
26. Mais sabendo, porque o não podiam ignorar, atendendo às funções desempenhadas, que a falta de prestação dos cuidados que legalmente eram devidos aos seus utentes mais dependentes, como acontecia com a mãe do Recorrente causaria graves danos físicos e psicológicos, por não poderem os utentes prover por si à sua alimentação, higienização e movimentação.
27. Falta de cuidados essa e consequentes maus tratos que foram reiterados, por ser constante a falta de funcionários para assegurar os cuidados aos utentes de forma adequada.
28.À data dos factos, eram membros do Conselho Executivo AA, na qualidade de Presidente, e BB, na qualidade de secretário do Conselho Executivo.
29. Competindo-lhes assim assegurar o bem-estar dos utentes e assegurar que mantinham um quadro de pessoal ajustado às necessidades dos utentes - vide artigo 20.º dos Estatutos da Fundação ....
30. Tendo o Presidente do Conselho Executivo como responsabilidade assegurar a gestão corrente da Fundação, orientando e fiscalizando os respetivos serviços - cf. artigo 21.º dos Estatutos da Fundação ....
31. E o secretário, como funções, coadjuvar o Presidente no exercício das suas funções e substituí-lo nas sua faltas e impedimentos - cf. artigo 22.º dos Estatutos da Fundação ... - cf. doc. n. 0 2 já mencionado.
32. Entendendo assim o Recorrente, com o devido respeito por entendimento diverso, que em face dos elementos recolhidos, se impunha ter sido proferido despacho de pronúncia, sendo a Fundação ... e respetivos responsáveis do Conselho Executivo constituídos arguidos pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º -A, conjugado com o artigo 10. º e 11.º n.º 2, todos do Código Penal.
33. De facto, nos termos do n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal, quando recolhidos indícios suficientes até ao encerramento da instrução, deve ser deduzido despacho de pronúncia.
34. Pelo que, em face do exposto, e resultando dos elementos de prova recolhidos indícios suficientes da prática do crime pela Fundação ..., AA e BB e do necessário preenchimento no caso em apreço do elemento objetivo e subjetivo do tipo de ilícito de crime de maus tratos, deverá em consequência ser procedente o presente recurso, sendo revogada a douta decisão instrutória e sendo os arguidos pronunciados pelos seguintes factos:
1. A Fundação ... é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem uma estrutura residencial para idosos, prestando esse serviço.
2. A ofendida DD, nascida em .../.../1937, foi utente da Fundação ... no período de setembro de 2018 a setembro de 2020, tendo integrado a mencionada estrutura residencial para idosos.
3. Sendo nesse período membros do Conselho Executivo AA na qualidade de Presidente e BB, na qualidade de secretário do Conselho Executivo;
4. Sendo o Conselho Executivo responsável, através do seu Presidente e Secretário, por garantir a efetivação dos direitos dos beneficiários, elaborar o quadro de pessoal, contratar o pessoal necessário, exercer o poder disciplinar e gerir o pessoal da instituição e zelar pelo cumprimento da lei, dos estatutos e das deliberações dos órgãos da Fundação, conforme os estatutos da Fundação ...;
5. DD tinha à data dos factos uma demência que mantém, encontrando-se absolutamente dependente de terceiros para a realização de tarefas básicas, como proceder à sua alimentação, higiene pessoal, tomar medicação, para se movimentar em geral e para se levantar, movimentar e deitar na cama.
6. No período em que a DD foi utente da indicada instituição a mesma apresentava uma falha grave ao nível de funcionários, não tendo funcionários suficientes para prestar adequadamente apoio aos idosos, nas tarefas como alimentação, higienização e mobilização dos idosos que não se movimentam sozinhos.
7. Sendo prática reiterada durante o período em que a DD se encontrou na indicada estrutura residencial, os idosos não autónomos, não serem alimentados devidamente, não sendo além disso assegurada a higienização atempada dos mesmos e não sendo assegurada a sua mobilização e rotação na cama ou sua colocação em cadeiras durante o dia para não se encontrarem sempre na mesma posição.
8. Como consequência direta e necessária da conduta da instituição e dos seus representantes legais, durante o período em que a DD se encontrou na indicada estrutura residencial, a mesma emagreceu consideravelmente.
9. Tendo desenvolvido um eritema na zona genital.
10. Bolhas nas costas.
11. E ainda uma úlcera de pressão na região sacro-coccígia, grau 3, com tecido necrótico.
12. Feridas que demoraram cerca de dois meses e meio a cicatrizarem.
13. Sendo o eritema na zona genital resultado direto da deficiente higienização ou falta de substituição das fraldas com regularidade.
14. E a úlcera de pressão resultado da falta de prestação de cuidados, designadamente por falta de reposicionamento do corpo de duas em duas horas.
15. Tendo assim sofrido dores, as quais demandaram um número de dias para atingir cura não apurado em concreto, mas que terá sido de cerca de dois meses e meio.
16. A direção da ... tinha conhecimento do facto do número de funcionários ao seu serviço na estrutura residencial para idosos não ser suficiente para assegurar os devidos cuidados dos respetivos utentes.
17. Bem sabendo que um elevado número dos seus utentes na estrutura residencial para idosos e designadamente a DD se encontrava em situação de dependência, não tendo autonomia para a realização de tarefas básicas, como proceder à sua alimentação, higiene pessoal, tomar medicação, para se movimentar em geral e para se levantar, movimentar e deitar na cama.
18. Tendo tais cuidados de ser providenciados pela Fundação, que se encontrava obrigada a assegurar a prestação de tais cuidados em face da admissão de tais utentes e designadamente da DD os quais se encontravam na sua dependência.
19. Sabia a Fundação ... e seus responsáveis que detinham ao seu cuidado pessoas particularmente indefesas em razão da idade e das doenças de que padeciam, designadamente a DD a quem deviam prestar assistência e prover às necessidades físicas e emocionais, mas não o fizeram;
20. Cabia à Fundação ... e seus responsáveis prestar os necessários cuidados de saúde e assistência a DD;
21. Contudo, e apesar de terem consciência de tal facto, não prestaram os necessários, adequados e atempados cuidados de saúde a DD;
22. Não dispondo de pessoal suficiente para atender todos os utentes do lar,
23. Nada tendo feito para suprir tal situação.
24. Bem sabendo que a omissão da admissão de um maior número de funcionários impediria a prestação dos devidos cuidados, não sendo assim de forma reiterada assegurada a devida alimentação dos utentes dependentes, a sua devida higienização e reposicionamento.
25. Sabendo ainda que tal omissão originaria assim maus tratos físicos dos utentes dependentes, tal como ocorreu com a utente DD em conformidade com o indicado supra.
26. Sabia assim a Fundação ... e seus representantes que a sua conduta era adequada a causar maus tratos no corpo e saúde de DD, resultado esse que previram e que nada fizeram para evitar.
27. Tendo assim agido deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
28. Constituíram-se assim a Fundação ..., AA e BB, autores materiais de um crime de maus tratos previsto e punido pelo artigo 152.º-A, 10.º e 11.º, n.º 2 todos do Código Penal.
35. Entendendo o Recorrente que ao ser proferido despacho de não pronúncia, violou o indicado despacho o disposto nos artigos 152.º-A, 10.º e 11.º n.º 2 todos do Código Penal e artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, Sempre com mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a pronúncia dos arguidos pelos factos supra indicados, fazendo-se deste modo verdadeira objetiva serena JUSTIÇA!!!!»
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo.
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O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, reiterando os argumentos invocados pelo Exmo. JIC no despacho de não pronúncia e defendendo, consequentemente, a improcedência do recurso (nos termos constantes do articulado junto aos autos a fls. 527/536 e cujo teor se dá por reproduzido).
Os arguidos/recorridos apresentaram resposta ao recurso, pugnando pela confirmação da decisão instrutória de não pronúncia, com os fundamentos constantes do articulado de fls. 855/860 e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual se pronunciou pelo não provimento do recurso, reiterando os fundamentos já aduzidos pelo Ministério Público na 1ª instância e salientando que os elementos de prova coligidos no inquérito e na instrução não são suficientemente seguros para que se possa afirmar que a probabilidade de condenação é superior à de absolvição (nos termos constantes de fls. 545/547, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
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Cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do Código do Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como única questão colocada à apreciação deste tribunal, a seguinte:
1) Existem indícios da prática pelos arguidos do crime de maus tratos, p. e p. pelos artigos 152.º-A, n.º 1, a), 10.º e 11.º, do Código Penal, que lhes foi imputado pelo assistente no requerimento de abertura de instrução?
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Delimitado o thema decidendum, importa reproduzir o teor da decisão instrutória de não pronúncia, objeto do presente recurso, proferida pela Sra. Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Aveiro, na sequência do debate instrutório realizado em 18/4/2023:
«Declaro encerrada a instrução.
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I - Relatório
O Ministério Público deduziu despacho de arquivamento relativamente à factualidade participada por CC, abstratamente configuradora da prática de um crime de maus tratos previsto e punido pelo152º-A e 11º/2, a) do Código Penal, nos termos constantes de fls. 323 a 341, e proferiu acusação contra KK, imputando-lhe a prática dos factos descritos na acusação de fls. 341 e sgs., e consequentemente, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo disposto nos arts. 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 al. a) e n.º 2, este por referência ao artigo 132.º, n.º 2 al. c), todos do Código Penal.
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Veio a arguida KK requerer a abertura de instrução com o exclusivo fito de obter a suspensão provisória do processo pugnando estarem reunidos todos os requisitos legais – cfr. a fls. 359 e 360,
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Veio também o assistente CC requerer a abertura de instrução alegando, no essencial, existirem indícios da prática do crime de maus tratos, já que a indiciada falta de funcionários em número suficiente para assegurar os cuidados adequados e necessários aos utentes e os danos decorrentes da omissão de cuidados constitui não apenas uma conduta negligente, mas uma conduta dolosa e omissiva grave.
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Admitida a instrução, designou-se data para debate instrutório. Não se vislumbrando qualquer outro ato instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efetuou-se o debate instrutório, o qual decorreu na ausência dos arguidos, que renunciaram ao direito de estar presentes, com observância do formalismo legal, conforme se alcança da respetiva ata, tudo em conformidade com o disposto nos arts. 298º, 301º e 302º, todos do Código de Processo Penal.
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Cumpre agora, nos termos do art.º 308º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
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II- Saneamento
O Tribunal é competente.
Não há nulidades, ilegitimidades, outras exceções, questões prévias ou incidentais que obstem a uma decisão de mérito.
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III- Fundamentação
A) Critérios legais da decisão
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), encontrando-se o juiz de instrução limitado pela factualidade relativamente à qual se requereu a abertura de instrução (artigo 287.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, visa-se a comprovação judicial da decisão de arquivar e ainda saber se, relativamente à acusação proferida, estão ou não reunidos os requisitos da suspensão provisória do processo.
A decisão de acusar e arquivar assenta na prévia verificação da existência de indícios suficientes da prática de um crime e do seu autor (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), juízo indiciário que também está subjacente na decisão instrutória, como decorre do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
De acordo com o disposto no artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.
Dito de outro modo, por “indícios suficientes”, para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a probabilidade razoável, mais positiva do que negativa, de que o (a) arguido (a) tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, pronunciar o arguido apenas e só “quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido” (cf. “Curso de Processo Penal”, Volume III, Verbo, pág.179).
Assim, a suficiência de indícios, analisada no plano fáctico, está dependente de deles resultar, em termos de prognose, a provável futura condenação do arguido ou que esta seja mais provável que a sua absolvição (cf. José Mouraz Lopes, “Garantia Judiciária no Processo Penal - Do Juiz e da instrução”, Coimbra, 2000, pág. 68 e ss.).
Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante entre as fases de inquérito e instrução e a de julgamento, ensina-nos Figueiredo Dias “o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim da fase preparatória” (cf. “Direito Processual Penal”, Volume I, 1974, pág. 132-133).
Quer isto dizer que, não se exigindo, nesta fase processual, o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, impõe-se, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.
Assim, para a determinação do grau da possibilidade razoável, indícios suficientes existirão quando, através de um juízo de prognose antecipada, se conclua que os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fazem pressentir a existência de uma conduta criminalmente tipificada por parte do agente e produzem a séria convicção de condenação posterior e que, com forte probabilidade, esses elementos se manterão e repetirão em julgamento ou se preveja que da ampla discussão da causa em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis e aí reproduzidos, outros advirão no sentido da condenação futura, sempre salvaguardando os princípios que convergem já neste momento, como o princípio da presunção de inocência e o in dubio pro reo (cf. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datados de 21.10.2009, proferido no processo n.º 533/02.4TAMTS.P1 e de 21.04.2010, no processo n.º 4307/06.5TDPRT-A.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 19.02.2002, Processo n.º 00113535, e do Tribunal da Relação de Évora, datado de 1.03.2005, processo n.º 2/05.1, in www.dgsi.pt).
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No caso vertente, a questão a decidir, delimitada tematicamente pelos requerimentos de abertura de instrução, encontra-se perfeitamente delineada: se existem indícios suficientes para pronunciar os arguidos Fundação ..., AA e BB, considerando os elementos probatórios produzidos em sede de inquérito e de instrução. E se se encontram reunidos os requisitos legais para a arguida KK poder beneficiar da requerida suspensão provisória do processo.
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Estamos perante um tipo legal de crime que, tendo uma raiz comum com o entretanto autonomizado crime de violência doméstica previsto e punido pelo art.º 152º do Código Penal, teve a sua origem na necessidade de prevenir, por via da criminalização, as frequentes e subtis, mas perniciosas - para a saúde física e psíquica, desenvolvimento da personalidade e bem-estar -, formas de violência no domínio da família, da educação e do trabalho – Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 329.
Adianta ainda Taipa de Carvalho que «A necessidade prática de criminalização das espécies de comportamentos descritos no tipo legal de crime de maus tratos, resultou de um duplo fator: por um lado, o facto de muitos destes comportamentos não configurarem em si o crime de ofensas corporais simples (art. 143º), como é o caso das condutas descritas nas als. b) e c) do nº 1 deste art. 152º; por outro lado, a criminalização destas condutas, com a consequente responsabilização penal dos seus agentes, resultou da consciencialização ético- social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização (…) destes comportamentos não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos atuais (…), mas sim uma saudável consciencialização da inadequação (ao fim educativo) e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos. (…) foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados onde o direito penal se tinha de abster de intervir.».
E se inicialmente se percorreu um caminho mais cauteloso de restringir a tutela penal aos casos mais chocantes de maus tratos a crianças e de sobrecarga a menores e subordinados, exigindo-se que o agente atuasse movido por malvadez e egoísmo (numa reminiscência indesejável do direito penal do agente, em detrimento do direito penal do facto), revelando receio de intervir penalmente em domínios que tradicionalmente se deixavam ao poder quase absoluto do marido, pai, educador e empregador, com a reforma penal de 1995, introduzida pelo D.L. 48/95, de 15/03, o legislador não apenas deixaria cair aquele requisito atinente à personalidade do agente, de um dolo específico, como alargaria sobremaneira o âmbito de proteção da norma incriminatória.
Assim, e seguindo de perto a análise de Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 331, «(…) consciente de que, nestes domínios (familiar, educacional, laboral e conjugal), as humilhações, os vexames, os insultos, etc., constituem, por vezes, formas de violência psíquica mais graves do que muitas ofensas corporais simples, previu, ao lado dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos (…)».
O crime de maus tratos tal qual se desenha atualmente visa, assim, prevenir formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho, pelo que abrange no seu âmbito, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a atividades perigosas, desumanas ou proibidas - cf. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332.
O bem jurídico protegido pela incriminação dos maus tratos é a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afetada por uma diversidade de comportamentos levados a cabo sobre quem se encontre em relação ao agente numa determinada relação de subordinação existencial ou laboral, daí resultando atingida também a própria dignidade da pessoa visada por tais comportamentos.
Pode assim concluir-se que o tipo legal de crime de maus tratos como se encontra previsto sob o art. 152º-A do Código Penal, tutela um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana.
Temos, por isso, que para poder configurar-se como um mau trato para efeitos de integração deste tipo de crime, a conduta do agente deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas características - a analisar no caso concreto, à luz do específico contexto relacional existente entre o agente e a vítima -, se reflita negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduza à degradação da sua dignidade pessoal – vide acórdão da Relação de Coimbra de 12/02/2020, relatado por Helena Bolieiro, acedido em www.dgsi.pt.
Nessa medida, poderá afirmar-se que o crime de maus tratos físicos e psíquicos é, por regra, um crime de dano quanto ao bem jurídico e um crime de resultado quanto ao objeto da ação; no entanto, como preconiza Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, UCE, 2010, pág. 469, quando em causa estão as condutas típicas de emprego em atividades proibidas ou perigosas, ou a sobrecarga com trabalhos excessivos, estaremos já diante um crime de perigo abstrato (neste último caso abstrato-concreto) e de mera atividade.
Ao nível objetivo, o seu preenchimento basta-se com a prática de uma ação ou uma omissão da qual resulte lesão para a saúde física e/ou psíquica, portanto física ou psiquicamente maltratante, pressuposta uma particular relação existencial ou laboral entre agente a quem essa ação ou omissão são imputáveis, e o sujeito passivo, tendo este que reunir determinadas características que o coloquem em posição de fragilidade perante aquele concreto agente.
No que concerne à conduta típica, os atos praticados pelo agressor, que podem ser de várias espécies, devem poder integrar-se num comportamento global dotado de uma unidade de sentido de ilicitude, cujo elemento característico corresponde, precisamente, ao tipo dos maus tratos previsto no artigo 152º-A do Código Penal.
Explicitando um pouco mais em detalhe o conteúdo das expressões usadas na definição dos comportamentos típicos, começando pelos maus tratos físicos, temos que estes corresponderão, grosso modo, ao crime de ofensa à integridade física, abarcando todas as ofensas ao corpo do sujeito passivo, desde castigos corporais, mas também pequenas privações da liberdade ou ofensas sexuais.
No conceito de maus tratos psíquicos, contêm-se os crimes de ameaça, coação, difamação, injúria, abarcando, porém, comportamento não subsumíveis a tipos legais de crimes, como atos suscetíveis de infligir à vítima humilhação, vexame ou provocação – Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit. pág. 465, e Américo Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 333-
Tratar cruelmente será dispensar um tratamento que causa sofrimento ou dor, revelando insensibilidade do agente que o perpetra; cruelmente constitui gramaticalmente um advérbio de modo, que remete para modo cruel, significando este adjetivo “que gosta de fazer sofrer”; são seus sinónimos malvado, mau, perverso, insensível (referido ao agente da crueldade), doloroso, pungente, atroz (referido ao ato cruel perpetrado) – cfr. https://dicionario.priberam.org/cruelmente.
Segundo Américo Taipa de Carvalho, ob. e loc. cit., tratar cruelmente será o mesmo que dispensar um tratamento desumano, exemplificando com uma reiterada omissão do fornecimento das refeições ou da medicação; já Paulo Pinto de Albuquerque remete, a nosso ver sem sólida base legal, para a ofensa à integridade física qualificada nos termos do art. 145º/1, a), em conjugação com o art. 132º/2, d) (“empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”), considerando tratar-se de crime de dano e resultado, a requerer a aplicação da teoria da adequação do resultado à conduta;
O tipo legal de crime de maus tratos exige ainda que interceda entre o agente e o sujeito passivo desses comportamentos uma relação existencial ou laboral, de guarda ou vigilância que agrava o ilícito, como é o caso dos castigos corporais, das privações de liberdade ou das ofensas sexuais, já em si mesmas criminalmente punidas – crime específico impróprio.
Por fim, postula também o tipo que a vítima dos maus tratos seja menor, portanto pessoa com idade inferior a 18 anos, ou pessoa particularmente indefesa.
Na concretização deste conceito indeterminado importa atentar nas coordenadas fornecidas pelo legislador no corpo do nº 1 do art. 152º-A que apontam para uma pessoa que se encontra em situação de especial fragilidade devido à sua idade, precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica, ou gravidez – Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 469.
Ou seja, essa especial debilidade ou fragilidade há de resultar (“em razão de”) da verificação na pessoa do sujeito passivo dos comportamentos maltratantes de algum daqueles fatores – idade, doença ou gravidez.
Para a densificação deste conceito de especial fragilidade, que continua a ser indeterminado, importa realizar o paralelo com o que tem vindo a ser entendido pela doutrina e jurisprudência relativamente a idêntica asserção legal inserida sob a alínea c) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, na qualificação do homicídio praticado contra pessoa particularmente indefesa.
Segundo Paulo Pinto de Albuquerque em anotação a este preceito – ob. cit., pág. 401 -, a especial censurabilidade da atitude do agente evidencia-se na exploração (“aproveitamento”) da situação de desamparo da vítima.
Na verdade, se atentarmos e decompusermos a expressão usada pelo legislador para caracterizar o sujeito passivo deste tipo de crime, verificamos que terá que tratar-se de pessoa indefesa, ou seja, que está sem defesa, desarmada que não tem “armas” ou meios para sua defesa - https://dicionario.priberam.org/indefesa.
Mas, mais ainda do que ser pessoa sem capacidade para se defender, terá que ser particularmente indefesa.
Ou seja, não basta que se esteja perante pessoa sem meios de defesa tout court, pretendendo, outrossim, proteger-se especialmente de entre essas pessoas sem meios de defesa, aquelas que, atenta a sua condição pessoal, neste caso atinente à doença ou doenças de que padecem (poderá ser também por reporte à idade ou estado de gravidez), se encontram mais vulneráveis aos comportamentos maltratantes do que a generalidade das pessoas.
No acórdão do STJ, de 26/11/2015, relatado por Manuel Braz, acedido em www.dgsi.pt, a propósito do disposto no art. 132º/2, c) do Código Penal, tendo a vítima 75 anos de idade, sofria de diabetes e vivia sozinha, entendeu-se que:
«Pessoa particularmente indefesa é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão, encontrando-se numa situação de completa ausência de defesa.».
Subscrevendo este entendimento, mais recentemente, no acórdão da Relação do Porto de 14/07/2021, relatado por Francisco Mota Ribeiro, acedido em www.dgsi.pt, abordando uma situação em que as vítimas seriam pessoas idosas, concluir-se-ia que o que importa determinar para efeitos do preenchimento da norma penal, e para desse modo se respeitar o princípio da legalidade e da tipicidade, é, antes de mais, saber se a vítima se encontrava, face aos factos concretamente dados como provados, numa situação de particular ou especial incapacidade de se defender.
Relativamente ao elemento subjetivo do tipo, este é um crime doloso, devendo à conduta típica estar subjacente um estado interior do agente correspondente a qualquer uma das formas que pode revestir o dolo, como previsto no art. 14º do Código Penal: direto, necessário e eventual.
É, naturalmente, pressuposto que o agente tenha informação correta sobre a identidade e características – doença, idade ou gravidez – do sujeito passivo.
Ora, descendo ao caso dos autos constata-se, começando pela forma como se encontra alegada a factualidade na acusação deduzida pelo assistente, em primeiro lugar, que não é atribuída aos arguidos AA e BB a prática de um qualquer ato concreto suscetível de integrar o tipo legal de crime de maus tratos.
Na verdade, percorridos os factos aí elencados, verificamos que quanto a estes arguidos não é individualmente atribuído um concreto papel na (com)participação criminosa.
Não pode olvidar-se que estamos em sede penal, em que a responsabilidade a apurar é pessoal, não é uma responsabilidade objetiva que possa decorrer do mero facto de assumir um cargo dirigente da pessoa coletiva (IPSS) arguida.
Na verdade, para além dos arguidos beneficiarem da presunção de inocência, não há no inquérito elementos indiciários que pudessem sustentar a atribuição a AA e BB de uma concreta conduta, ativa ou omissiva, que pudesse considerar-se maltratante.
E porque é de factos e não de conjeturas que pode resultar uma condenação criminal, afigura-se-nos altamente improvável que estes arguidos venham a ser condenados em julgamento pelo ilícito penal de maus tratos imputado.
No que respeita à arguida, pessoa coletiva, ..., da concatenação dos depoimentos recolhidos em inquérito e documentos juntos ao processo, indicia-se suficientemente a existência de deficiências e carências nos serviços prestados aos utentes no Lar, as quais se traduzem essencialmente, num défice de trabalhadores, para prestar todos os cuidados necessários aos utentes daquela Instituição (embora não se tenha concretamente apurado qual o número de trabalhadores adequado a tal desiderato).
Tais situações motivaram, inclusivamente, a apresentação de reclamações pelos familiares dos utentes, as quais mereceram resposta por parte do Centro Distrital ..., que elaborou recomendações em função dos problemas apresentados.
Não obstante, e com exceção do episódio relacionado com a utente LL, não foram recolhidos indícios suficientes de concretos maus tratos perpetrados contra os utentes do Lar Fundação ....
Com efeito, todas as testemunhas – funcionárias do lar, enfermeiros e médicos que ali prestaram serviços, negaram a existência de situações de maus tratos, físicos e/ou psíquicos, sendo perentórias ao afirmar que nunca presenciaram tais situações. Além disso, todas as situações relatadas por essas testemunhas, reconduzem-se a situações de negligência, manifestada em falhas nos cuidados de higiene, alimentação e supervisão dos utentes, as quais, segundo afirmaram grande parte das testemunhas, são devidas à insuficiência de funcionários, para fazer face às solicitações e necessidades de todos os idosos, não resultando, assim, de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do lar.
E no caso concreto, relacionado com a mãe do assistente, DD, não é possível afirmar que o estado da mesma se agravou em resultado de maus tratos infligidos no Lar Fundação ....
Neste conspecto, a testemunha MM, médico que prestou serviço na referida instituição e que acompanhou a idosa aquando da sua institucionalização no Lar e após a saída desta para a sua residência em ..., afirmou que o motivo da deterioração da condição clínica da idosa se prende com a sua idade e doença e não devido a maus tratos, situação que foi confirmada pela testemunha NN, médica que prestou serviço no aludido Lar e que conheceu a idosa aquando da sua institucionalização, bem como, pelas funcionárias do Lar que prestaram serviços à utente, as quais afirmaram, que o estado de deterioração de DD, se deveu à avançada idade da mesma e da sua doença e não a quaisquer maus tratos praticados no Lar.
Da análise dos elementos probatórios juntos aos autos, conclui-se, tal como concluiu o Ministério Público em sede de despacho final de inquérito, pela inexistência de indícios suficientes da prática do crime de maus tratos, por não ter sido detetada qualquer conduta dolosa perpetrada pelo Lar Fundação ... contra os utentes, pese embora se tenha verificado eventuais situações de negligência a nível da prestação de cuidados e assistência aos utentes por parte da respetiva Instituição.
Para além disso, não se pode ainda olvidar que conforme vem entendendo a nossa jurisprudência, o artigo 152.º-A do Código Penal, enquanto previsão de natureza penal, se encontra reservado a situações de especial gravidade – nas quais não se enquadra a situação indiciariamente apurada nos autos.
Por esse motivo, entendemos não existir uma probabilidade razoável de que o Lar Fundação ... venha a ser condenado, em sede de julgamento, pela prática do crime maus tratos.
Consideram-se, assim, não indiciados os factos imputados aos arguidos no artigo 40.º do requerimento de abertura de instrução, mormente, sob os números 4., 7. a 21., e 23. a 27.
Pelo exposto, e em face dos motivos invocados, impõe-se a não pronúncia dos arguidos AA, BB e do Lar Fundação ....»
*
Existência de indícios suficientes da prática de um crime de maus tratos pelos arguidos – apreciação do mérito do recurso.
Estabelece o art.º 308.º, n.º 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Segundo o art.º 283.º, n.º 2, para onde remete o art.º 308.º, n.º 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.
Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art.º 286.º, n.º 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Como se observa no acórdão deste TRP, de 23/11/2011, disponível em www.dgsi.pt, a exegese da existência de indícios suficientes deve ajustar-se aos princípios constitucionais da dignidade humana, da preservação do bom nome e reputação, bem como do princípio “in dubio pro reo”, como a jurisprudência tem tido o cuidado de salientar, desde logo no seu aresto mais representativo, tirado pelo STJ, no acórdão de 18 de Maio de 2001 [1]. Aí se disse, a dado momento, que “aquela “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa”, em que “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, então, que os indícios são suficientes quando haja “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Prossegue o mencionado acórdão do TRP, de 23/11/2011, salientando que “[…] a prova produzida, não deve ser aferida de modo estanque, mas sim na sua globalidade, e na divergência ou contradição entre os diversos depoimentos prestados, que tantas vezes destoam de um depoente para outro, dever-se-á procurar elementos objetivos de prova, que possam suportar, de modo convincente e para além de qualquer dúvida razoável, umas das versões suscitadas (a da acusação ou a da defesa), sendo certo que caso subsista aquela dúvida, aplica-se o princípio “in dubio pro reo”.
Isto significa que no culminar da fase de instrução, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases.
Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada.
Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á, em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido.
Por último, efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento.”.
Assim, a “natureza indiciária da prova significa que não se exige prova plena, mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal” [2].
É, portanto, inequívoca a aplicação do princípio in dubio pro reo na aferição da suficiência dos indícios – sendo este princípio aplicável em qualquer fase do processo, como se salienta no acórdão deste TRP, de 28/11/2018 [3].
Para além disso, consideramos que a análise da prova indiciária deve ficar sujeita aos restantes princípios e regras processuais que regem a apreciação da prova, designadamente ao princípio da livre apreciação da prova, contemplado no art.º 127º do CPP – com a consequência de que a prova indiciária deverá ser apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Significa o princípio da livre apreciação da prova, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Em síntese, a comprovação dos “pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” deve assentar na totalidade da prova produzida – aferida segundo juízos de normalidade/probabilidade/plausibilidade e de critérios de lógica e de racionalidade – e respeitar o princípio in dubio pro reo.
Vejamos, então, se em face da prova colhida no inquérito e na instrução, se pode concluir por uma “possibilidade razoável” de condenação – o que pressupõe que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a futura condenação dos arguidos/recorridos, do que a sua absolvição [4].
Estabelece o n.º 1, do art.º 152.º-A do Código Penal que, “1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) a empregar em atividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) a sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Esta incriminação resulta da autonomização do crime de violência doméstica relativamente ao de maus tratos que constava, antes da revisão do Código Penal de 2007, do art.º 152º Código Penal, segundo a redação que lhe foi introduzida pelo D. L. 48/95, de 15.03., entretanto modificada pelas Leis 65/98, de 02.09, e 7/2000, de 27.05, o qual tutelava diferentes formas de violência no seio da família, da educação e do trabalho.
Ainda que o bem jurídico coincida com o tutelado pelo crime de ofensa à integridade física, na medida em que «em causa estará então em ambos os casos, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental», como observa Nuno Brandão (in A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar nº12 (especial), ASJP, Lisboa, Set.- Dez. 2010, p. 13 e ss.), trata-se de assegurar a integridade da saúde física e mental de pessoas mais vulneráveis, o seu bem-estar físico, psíquico e emocional (cf. A. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 299).
Por isso, o bem jurídico protegido é a saúde, entendida como um bem jurídico complexo suficientemente amplo e nas suas múltiplas dimensões para se identificar com a integridade do ser humano, em todas as suas componentes - física, psíquica e moral, abrangendo ainda a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, nos mesmos termos em que se encontra protegida no art.º 25º da CRP.
Tal como acentuado na exposição de motivos inserta na Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojeto da Lei 59/2007, de 4 de setembro, do qual resultou este art.º 152.º- A do CP, a razão de ser desta incriminação é o fortalecimento da defesa dos bens jurídicos visados, especialmente «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas».
O referido preceito visa, pois, a prevenção, combate e repressão de frequentes e quase sempre subtis formas de violência física, psíquica e sexual dirigidas contra pessoas com menor capacidade de reação ou defesa, tidas como mais frágeis ou vulneráveis a partir de certos índices, como a idade, doença, ou condição física ou psíquica ou gravidez e quando envolvidas num contexto relacional muito específico com o agressor: trata-se de relações de poderes/deveres de cuidado, de guarda, de direção ou educação, ou de natureza laboral que criam, pela sua própria existência, um certo ascendente natural ou posição mais privilegiada ou preponderante do agressor em relação ao agredido.
O vínculo de dependência existencial da vítima em relação ao autor do crime já não se funda na coabitação, nas relações familiares ou de namoro e afins, como na violência doméstica, mas numa ligação institucional: o art.º 152º-A «(…) tem por objeto os maus tratos praticados nas escolas, hospitais, nas creches ou infantários, em lares de idosos ou instituições ou famílias de acolhimento de crianças, bem como os maus tratos cometidos na própria casa de habitação (por exemplo contra a empregada doméstica ou “baby-sitter”) ou na empresa, não deixando de fora, ainda e por exemplo, as pessoas que assumam, espontânea e gratuitamente, o encargo de tomar conta de “pessoas particularmente indefesas”, nomeadamente crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência» (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 536).
É, aliás, essencialmente, neste vínculo que o crime de maus tratos se distingue do de violência doméstica.
Assim, vítima ou sujeito passivo só pode ser uma pessoa que, simultaneamente, preencha dois requisitos positivos - o de que se encontre em relação de subordinação existencial ou laboral com o agente, ou seja, que a vítima esteja ao cuidado, à guarda ou sob a responsabilidade da direção ou educação do agente ou a trabalhar ao seu serviço; o de que seja menor ou particularmente indefesa em razão da idade (avançada), de deficiência, da doença ou da gravidez - e um outro, negativo - o de que não exista entre o agente e a vítima uma relação de coabitação, pois, nesse caso, estará em causa um crime de violência doméstica, nos termos da al. d) do nº 1 do art.º 152º.
Os modos de ação típica são muito diversificados em sintonia com a amplitude e complexidade do bem jurídico, estando enumerados exemplificativamente os comportamentos suscetíveis de qualificação como maus tratos físicos ou psíquicos, ao invés de uma enumeração taxativa, que não esgotaria todo o espectro de atos potencialmente lesivos do bem jurídico visado proteger com a incriminação do art.º 152º-A do CP.
O crime consuma-se tanto com as condutas integradoras de ofensas à integridade física simples (os maus tratos físicos), ou seja, todas as agressões que envolvam alguma perturbação no corpo e saúde da vítima, como com os maus tratos psíquicos, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam ou não a atos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., englobando quaisquer comportamentos que ofendam a integridade moral ou o sentimento de dignidade da vítima, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros e compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional puníveis, em si mesmas, ou não, como crimes de injúria e difamação, de ameaça ou de coação.
O crime de maus tratos proíbe também o tratamento cruel, que não se traduz, necessariamente, na imposição de lesões físicas, mas pode incluir outros tipos de comportamentos que impliquem um desgaste constante na vítima, devendo caracterizar-se pela sua adequação à inflição de sofrimento físico ou psicológico com uma certa tónica de reiteração ou permanência.
Este tipo proíbe ainda a sujeição a atividades desumanas, perigosas ou proibidas, que assim deverão ser qualificadas por referência às características e fragilidades específicas de cada vítima que, respetivamente, as humilhem ou degradem, ou com utilização de meios particularmente perigosos, ou na colocação da vítima em situações, também elas, especialmente perigosas, ou que correspondam à prática de factos ilícitos.
Por fim, entre as modalidades de maus tratos também se contam os trabalhos excessivos. A excessividade dos maus tratos afere-se também atendendo às características da vítima e ao tipo de trabalhos concretamente impostos.
Segundo o critério do resultado material, tanto podem ser classificados como crimes de resultado – quando a execução típica se traduz em maus tratos físicos ou em privações da liberdade - como de mera atividade – no caso de a conduta integradora do tipo constituir provocações, ameaças ou o emprego em atividades perigosas, desumanas ou proibidas - sendo que, nos primeiros, o resultado é elemento do tipo de crime e nos segundos, apenas constitui motivo da incriminação.
De acordo com o critério da intensidade da lesão do bem jurídico, estes crimes também podem ser crimes de dano, por exemplo no caso de ofensas sexuais ou corporais e das privações de liberdade, ou crimes de perigo, nas situações em que ocorram ameaças ou humilhações ou o emprego em atividades perigosas. Nos primeiros, a efetiva lesão do bem jurídico é elemento do tipo legal, enquanto nos segundos o tipo legal apenas exige a colocação em perigo do bem jurídico.
Trata-se de um crime específico que será impróprio quando as condutas integradoras do crime de maus tratos, isolada e autonomamente consideradas, já constituam crime (v.g. os maus tratos físicos que traduzirão sempre ofensas à integridade física e certas modalidades de maus tratos psíquicos reconduzem-se aos crimes de injúria, ameaça, difamação, coação sequestro), na medida em a qualidade do autor do facto ou o dever que sobre ele impende, não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar.
Se as condutas não configurarem, em si mesmas consideradas, qualquer outro ilícito penal, como tal previsto na parte especial do CP, o crime de maus tratos será, então, um crime específico próprio pois, nestes casos, como quando se submete a vítima a atividades perigosas, a trabalhos excessivos, a certas formas de crueldade, é a qualidade do agente que constitui o motivo da incriminação.
No que especificamente concerne aos idosos, a Organização Mundial de Saúde define maus tratos como um ato único ou repetido, ou ainda, ausência de ação apropriada que cause dano, sofrimento ou angústia e que ocorra no contexto e desenvolvimento de um relacionamento de confiança que atenta contra a sua vida, ou é lesiva da sua integridade física ou psíquica, da sua liberdade, segurança económica ou compromete o desenvolvimento da sua personalidade (Action on Elder Abuse (AEA, 1993) e adotada pela Organização Mundial de Saúde - WHO/INPEA. Missing voices: views of older persons on elder abuse. Geneva: WHO; 2002, https://apps.who.int/iris/handle/10665/67371).
Assim, dentro destes limites e com estas características, podem enumerar-se como formas de maus tratos a idosos: qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fraturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas, que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos); os maus-tratos psicológicos ou emocionais, materializados em condutas que causam dano psicológico como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afetiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afeto, isolamento e marginalização; a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos), que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como seja, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de autonegligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano, (cf., Hirsch CH, Stratton S, Loewy R., The primary care of elder mistreatment. WEST J MED 1999 Jun; 170 (6): 353-8; Fernández-Alonso MC, Herrero-Velázquez S. Maltrato en el anciano: possibilidades de intervención desde la atención primaria (I). Aten Primaria 2006 Ene; 37 (1):56-9; Howard M. Fillit, Kenneth Rockwood, John B Young, Brocklehurst's Textbook of Geriatric Medicine and Gerontology E-Book pp 943 e 944 https://www.us.elsevierhealth.com/ e Briony Dow e Melanie Joosten, Entendendo o abuso de idosos: uma perspetiva de direitos sociais, Janeiro de 2012, Psicogeriatria Internacional 24(6): 853-5 DOI: 10.1017/S1041610211002584 https://www.cambridge.org/core). [5]
Em princípio, a estrutura objetiva do tipo implica a reiteração, pois que a lesão do bem jurídico complexo protegido (a saúde) envolverá uma pluralidade de condutas da mesma ou de diferentes espécies repetidas por um período mais ou menos prolongado, embora com a expressão de «modo reiterado ou não» se admita que certas condutas isoladas, desde que dotadas de gravidade bastante, podem também operar a consumação dos maus tratos.
A imputação subjetiva do tipo, pese embora as diferentes modalidades que pode revestir, tem o seu fundamento exclusivo no dolo em qualquer das suas modalidades que, justamente por causa das diferentes formas que a consumação do crime de maus tratos pode revestir, tem conteúdo variável.
Implica, desde logo, sempre, o conhecimento da existência dos deveres inerentes à assunção da relação laboral, ou do vínculo de proteção-subordinação, do estado de menoridade, deficiência, velhice, doença ou gravidez da vítima.
Na vertente de maus tratos físicos, o dolo abrange o resultado, traduzindo-se na consciência e a vontade de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido ou do perigo de afetação do normal desenvolvimento da criança aos cuidados do agente ou de criação de prejuízos para a saúde da vítima.
Existe, ainda, dolo (necessário ou eventual) quando o agente, não pretendendo diretamente causar o resultado danoso, tem consciência de que este ocorrerá como consequência necessária ou possível da sua conduta e com isso se conforma (cf. o art.º 14.º, nºs 2 e 3 do CP).
O art.º 10º do CP equipara, em geral, a omissão à ação, nos crimes de resultado, estabelecendo que, quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como também a omissão adequada a evitá-lo. São os crimes omissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, nisso se distinguindo dos crimes omissivos puros que se caracterizam pela simples abstenção de agir e são crimes de mera atividade.
A punibilidade do omitente depende da existência de um específico dever jurídico que o obrigue a agir, para evitar o resultado. Só há equivalência entre o desvalor da ação e o desvalor da omissão, porque o agente tem uma posição de garante da não produção do resultado, à luz de um dever jurídico de agir que constitui o fundamento da punição e sem o qual a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um.
O facto típico materializa-se na «criação de um risco de verificação de um resultado típico» que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da ação esperada e exigível por referência àquilo que, segundo a descrição típica, é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a ação devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928).
O dever jurídico de garante da não ocorrência do resultado antijurídico pode resultar diretamente da lei (dever legal especial), de um contrato, de situações de criação de perigo e/ou relações familiares íntimas de solidariedade e confiança que importem a aceitação de facto de deveres cuja execução importe ingerência/apoio entre o omitente e o titular do bem jurídico que suporte o dever de agir, numa posição de proteção ou de uma posição de controlo.
No presente caso, em linha com o Ministério Público, que decidiu arquivar o inquérito, considerou o tribunal de instrução criminal que «não há no inquérito elementos indiciários que pudessem sustentar a atribuição a AA e BB de uma concreta conduta, ativa ou omissiva, que pudesse considerar-se maltratante». Já no que respeita à arguida, pessoa coletiva, ..., considerou o tribunal que, «da concatenação dos depoimentos recolhidos em inquérito e documentos juntos ao processo, indicia-se suficientemente a existência de deficiências e carências nos serviços prestados aos utentes no Lar, as quais se traduzem essencialmente, num défice de trabalhadores, para prestar todos os cuidados necessários aos utentes daquela Instituição [...]», não tendo sido recolhidos indícios suficientes de concretos maus tratos perpetrados contra os utentes do Lar Fundação ....
Finaliza o tribunal a quo argumentando que «da análise dos elementos probatórios juntos aos autos, conclui-se, tal como concluiu o Ministério Público em sede de despacho final de inquérito, pela inexistência de indícios suficientes da prática do crime de maus tratos, por não ter sido detetada qualquer conduta dolosa perpetrada pelo Lar Fundação ... contra os utentes, pese embora se tenha verificado eventuais situações de negligência a nível da prestação de cuidados e assistência aos utentes por parte da respetiva Instituição. Com efeito, todas as testemunhas – funcionárias do lar, enfermeiros e médicos que ali prestaram serviços, negaram a existência de situações de maus tratos, físicos e/ou psíquicos, sendo perentórias ao afirmar que nunca presenciaram tais situações. Além disso, todas as situações relatadas por essas testemunhas, reconduzem-se a situações de negligência, manifestada em falhas nos cuidados de higiene, alimentação e supervisão dos utentes, as quais, segundo afirmaram grande parte das testemunhas, são devidas à insuficiência de funcionários, para fazer face às solicitações e necessidades de todos os idosos, não resultando, assim, de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do lar.»
Delimitado dogmaticamente o tipo de crime de maus tratos, analisemos, assim, se em face da prova colhida no inquérito e na instrução se encontra indiciada a prática pelos arguidos – e, reflexamente, pela arguida ... – de factos suscetíveis de integrarem os elementos objetivos e subjetivos do referido tipo de ilícito, para além do respetivo tipo de culpa.
Em primeiro lugar, importa assinalar que não encontramos qualquer razão válida para que o tribunal a quo não tivesse considerado suficientemente indiciadas as lesões físicas que a idosa DD apresentava quando o assistente, seu filho, a retirou da instituição, e o nexo de causalidade entre tais lesões e a deficiente prestação de cuidados recebidos pelos idosos institucionalizados naquele local.
Com efeito, essas lesões encontram-se evidenciadas nas fotografias juntas aos autos (cf. fls. 16 a 18) e foram comprovadas, não só pelo assistente, mas também pela testemunha FF, enfermeira que assistiu a vítima DD.
É verdade que esta testemunha, não exercendo funções na instituição em causa, não podia, naturalmente, garantir que aquelas lesões – em particular, o eritema na zona genital e a úlcera de pressão na região sacro-coccígia, grau 3, com tecido necrótico – foram causadas por falta de prestação de cuidados devidos no lar, tendo, porém, referido que a sua ocorrência está normalmente associada a deficiente higienização dos utentes ou a falta de substituição das fraldas com regularidade e, também, à falta de reposicionamento do corpo de duas em duas horas ou à execução incorreta desse movimento (cf. depoimento constante de fls. 104).
Contudo, a generalidade das testemunhas inquiridas afirmou que a instituição não dispunha de funcionários suficientes para prestar adequadamente os necessários cuidados aos idosos, designadamente para prover à sua alimentação e higiene pessoal e, ainda, para a mobilização daqueles que, como a vítima DD, não se podiam movimentar sozinhos.
Assim, GG, que exerceu funções de auxiliar de ação direta no lar da ... durante oito anos, referiu que “o número de funcionários era insuficiente para prestar o apoio aos utentes dependentes que se encontravam acamados, designadamente para fazer a rotação do corpo e para prestar cuidados de higiene, como por exemplo trocar as fraldas, pelo que os doentes acabavam por estar mais tempo do que deviam imobilizados em determinada posição e as fraldas eram trocadas muito tempo depois do que seria aconselhado e necessário”. Acrescentou que, normalmente, existiam quatro funcionárias (duas em cada andar) para quarenta e seis utentes, na sua maioria dependentes de terceiros para alimentação e higiene (cf. o depoimento constante de fls. 116/117).
A testemunha II, tendo exercido funções de ação direta e chefe de equipa, durante 14 anos, com término em outubro de 2020, referiu que “o número de funcionários da instituição era insuficiente para atender todos os idosos dependentes de terceiro para se alimentar, pelo que alguns idosos não seriam alimentados da forma mais adequada”, acrescentando que nos últimos três/quatro anos em que trabalhou na instituição “verificou que a qualidade dos serviços prestados aos utentes se deteriorava, passando os utentes com maior grau de dependência a estar mais tempo do que deviam na mesma posição, sem que fosse efetuada a rotação do corpo, assim como as fraldas eram mantidas mais tempo do que aquele que seria aconselhável”.
Do mesmo modo, a testemunha JJ – que trabalhou no lar da ... durante um ano e tem, atualmente, a seu cuidado a mãe do assistente – salientou que a instituição tinha um número insuficiente de funcionários para prestar os devidos cuidados aos utentes, a maior parte deles dependentes e acamados. Como consequência, a alimentação era fornecida aos utentes de forma a demorar o mínimo de tempo possível. Acrescentou que a insuficiência de funcionários também se notava no apoio aos utentes dependentes que se encontravam acamados, designadamente para fazer a rotação do corpo, colocando-os em cadeirões, por exemplo, e nos cuidados de higiene, em particular no procedimento de troca de fraldas, sendo que muitos utentes apenas durante a tarde eram intervencionados pelas auxiliares, não havendo tempo, durante o período da manhã, para realizar estas tarefas a todos os que delas careciam (cf. o depoimento constante de fls. 126/127).
Perante este circunstancialismo, não temos qualquer dúvida em afirmar que se encontram indiciariamente demonstrados os factos enunciados pelo assistente no artigo 40 – e melhor descritos nos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 deste artigo – do requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, o emagrecimento e as lesões evidenciadas pela mãe do assistente, diretamente causados pela omissão da prestação de cuidados necessários e atempados de alimentação, higiene e mobilização/rotação do seu corpo.
Como foi reconhecido na decisão instrutória, DD padecia, à data dos factos, de uma demência, encontrando-se absolutamente dependente de terceiros para a realização de tarefas básicas, nomeadamente as relacionadas com a sua alimentação, higiene pessoal e toma de medicação, sendo ainda incapaz de se locomover sozinha, carecendo por isso de apoio de terceiros para se levantar, movimentar e deitar na cama (cf. o ponto 5 do requerimento de abertura de instrução).
Trata-se, assim, de uma «pessoa particularmente indefesa», em razão da sua idade e doença, elemento indispensável para o preenchimento do tipo de ilícito objetivo do crime de maus tratos que nos ocupa.
Ora, a Fundação ... é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem uma estrutura residencial para idosos, prestando esse serviço, tendo sido utente desta estrutura a ofendida DD (nascida em .../.../1937), no período compreendido entre setembro de 2018 e setembro de 2020 (factos 1) e 2) do ponto 40 do requerimento de abertura de instrução, já considerados indiciariamente demonstrados pelo tribunal de primeira instância).
Deste modo, competia à Fundação ... assegurar a execução das tarefas necessárias a garantir o bem-estar e saúde dos respetivos utentes, provendo diariamente pela sua alimentação, higiene e cuidados médicos.
Está, assim, configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, particularmente da ofendida, derivada do especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a instituição arguida estava contratualmente obrigada e, ainda, a situação de vulnerabilidade e dependência, fruto da doença e idade avançada da vítima, que integra o nº 1 do art.º 152º-A do CP.
Sucede que a instituição arguida, aparentemente por não dispor da quantidade de funcionários suficiente, omitiu a prestação dos cuidados de alimentação, higiene e mobilização dos utentes mais vulneráveis e dependentes, com a frequência e qualidade necessárias, como sucedeu com a ofendida DD, causando-lhe as lesões já descritas e consequente sofrimento físico e psíquico-emocional.
Podemos, assim, concluir que, impendendo sobre a instituição arguida e respetivos representantes (os arguidos AA e BB, respetivamente presidente e secretário do Conselho Executivo – cf. os pontos 3 e 4 do artigo 40 do requerimento de abertura de instrução e os estatutos da Fundação ... constantes de fls. 373 e 374/379) o dever de garante em relação à ofendida DD e demais utentes a seu cargo, omitiram os arguidos os atos adequados a evitar tais ofensas à sua saúde e integridade física, que podiam e deviam ter sido adotados, ocorrendo, por essa via, uma situação de maus tratos, imputável a título omissivo.[6]
Na verdade, e como já tivemos de salientar, o conceito de “maus tratos” não se limita às situações mais evidentes de ofensas à integridade física ou psíquica das vítimas, frequentemente traduzidas em agressões físicas/sexuais, insultos, humilhações ou ameaças, antes abarcando um espetro muito alargado de comportamentos suscetíveis de ofender a saúde física, psíquica e emocional das pessoas às quais são dirigidos, neles se incluindo ausência da prestação de cuidados alimentares e de higiene pessoal exigíveis e adequados a preservar o seu bem-estar e integridade pessoal.[7]
Resta analisar se, como sustenta o assistente, se encontra indiciariamente demonstrada uma atuação dolosa por parte dos arguidos. E, neste âmbito, importa reiterar que o elemento subjetivo do tipo de ilícito compreende o dolo em qualquer das suas modalidades – direto, necessário e eventual -, não se exigindo, para além disso, um “dolo específico”.
Assim sendo, pode verificar-se uma atuação dolosa por parte dos arguidos, mesmo que as falhas nos cuidados de higiene, alimentação e supervisão dos utentes, devidas à insuficiência de funcionários para fazer face às solicitações e necessidades de todos os idosos, como salientaram as testemunhas já indicadas, não hajam resultado de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do lar – circunstância que, tanto quanto podemos perceber da leitura da decisão recorrida, afastaria o dolo dos recorridos na perspetiva do tribunal a quo.
E a resposta a esta questão é, na nossa opinião, claramente afirmativa no caso do arguido AA.
Efetivamente, resulta dos estatutos da Fundação ... que ao Conselho Executivo compete a gestão corrente da instituição e representá-la, incumbindo-lhe, designadamente, garantir a efetivação dos direitos dos beneficiários, assegurar a sua organização e funcionamento, elaborar o quadro de pessoal, contratar o pessoal necessário, exercer o poder disciplinar e gerir o pessoal da instituição (cf. o documento constante de fls. 374/379 – artigo 20.º).
Ao arguido AA competia, na sua qualidade de Presidente do Conselho Executivo, entre outras funções, “superintender na gestão corrente da Fundação, orientando e fiscalizando os respetivos serviços” (cf. o art.º 21.º dos Estatutos).
Por seu turno, o arguido BB tinha por atribuições, na sua qualidade de Secretário do Conselho Executivo, “coadjuvar o Presidente no exercício das suas atribuições e substituí-lo nas suas faltas e impedimentos”, para além de “lavrar as atas das sessões do Conselho Executivo e superintender nos serviços de expediente”, “preparar a agenda de trabalho para as reuniões do Conselho Executivo, organizando os processos dos assuntos a serem tratados” e “superintender nos assuntos de secretaria” (cf. o art.º 22.º dos Estatutos e o documento constante de fls. 373).
Ora, resulta claramente da prova testemunhal produzida nos autos que o arguido AA era o “diretor” da instituição, pessoa que geria o lar conjuntamente com a Dra. OO, e a quem, na expressão da testemunha II, “todos deviam obediência” (cf., em sentido idêntico, os depoimentos prestados pelas testemunhas GG – que salientou que o “Pastor AA”, como era conhecido, era o diretor da instituição e tratava dos assuntos sempre com OO, passando frequentemente pelo lar -, HH, JJ e PP, este último constante de fls. 124. A testemunha QQ, também funcionária do lar da Fundação ..., salientou que o “Pastor AA” é o “patrão”, “a pessoa que gere a instituição” – cf. fls. 129).
Temos de concluir, assim, que o arguido AA, estando ciente das referidas deficiências nos serviços prestados - sendo disso, aliás, alertado, como apontou a testemunha II -, nada fez para corrigir a situação, designadamente mediante a contratação de novos funcionários ou otimização dos recursos humanos existentes [8], apesar de ter consciência que não estavam a ser prestados os cuidados adequados aos utentes.[9]
Relativamente ao arguido BB, apesar de estatutariamente dever coadjuvar o arguido AA no exercício das suas atribuições, temos de reconhecer que a prova indiciária reunida nos autos não suporta a conclusão, para além da dúvida razoável – e, portanto, com o grau de certeza exigido para a superação do princípio in dubio pro reo -, [10] de que estava realmente ciente da deficiente prestação de cuidados aos utentes, nos moldes já enunciados e suscetíveis de configurar “maus tratos”, e, para além disso, efetivamente capaz de adotar as medidas necessárias para corrigir tal situação.[11]
Em conclusão, não se encontra indiciariamente demonstrado um comportamento omissivo por parte do arguido BB, adequado a evitar a produção dos resultados lesivos da saúde física e do bem-estar emocional da ofendida DD, que lhe possa ser imputado, pelo menos, a título de dolo eventual.
Já quanto ao arguido AA e à Fundação ..., a sua responsabilidade criminal resulta da circunstância de terem omitido os atos adequados a evitar as descritas ofensas à saúde e integridade física da ofendida, que podiam e deviam ter sido adotados, ocorrendo, por essa via, uma situação de maus tratos, imputável a título omissivo, tendo o primeiro arguido atuado, pelo menos, com dolo eventual.
Deste modo, e na procedência parcial do presente recurso, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra, da qual resulte a pronúncia dos arguidos Fundação ... e AA pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução (devidamente adaptados, considerando a manutenção da decisão de não pronúncia quanto ao arguido BB, por falta de demonstração do dolo respetivo), suscetíveis de integrarem a prática, na forma consumada, de um crime de maus tratos, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º-A, n.º 2, alínea a), 10.º, n.ºs 1 e 2 e 11.º, n.ºs 2, 4, 5 e 7, todos do Código Penal.
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso do assistente, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra, da qual resulte a pronúncia dos arguidos Fundação ... e AA pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução (devidamente adaptados, em particular os descritos nos pontos 16), 19), 21), 25), 26) e 27) do requerimento de abertura de instrução, considerando a manutenção da decisão de não pronúncia quanto ao arguido BB, por falta de demonstração do respetivo dolo), suscetíveis de integrarem a prática pelos arguidos/recorridos de um crime de maus tratos, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º-A, n.º 2, alínea a), 10.º, n.ºs 1 e 2 e 11.º, n.ºs 2, 4, 5 e 7, todos do Código Penal.
Custas pelo assistente/recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (art.º 515.º, n.º 1, alínea b), do CPP).
Podendo estar indiciada a prática do crime de maus tratos por OO, pessoa referenciada pela generalidade das testemunhas como sendo a “administradora do lar”, e dispondo este ilícito de natureza pública, comunique-se ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes (cf. os artigos 241.º e 242.º, n.º 1, b), do CPP).
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 18 de outubro de 2023.
Liliana de Páris Dias
José Piedade
Maria dos Prazeres Silva
______________
[1] Relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt.
[2] Cf. o acórdão deste TRP, de 9/1/2019 (relatado pela Desembargadora Elsa Paixão e disponível em www.dgsi.pt).
[3] Relatado pelo Desembargador Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt.
[4] Conforme salientado no acórdão deste TRP, de 28/11/2018 (Desembargador Neto de Moura), uma posição intermédia (denominada teoria da probabilidade dominante, que, reconhecidamente, é a que tem apoio na letra da lei) considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição.
Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STJ de 08/10/2008 (Cons. Soreto de Barros), acessível em www.dgsi.pt, em que se afirma que «possibilidade razoável» é a que se baseia num juízo de probabilidade, “uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha”.
[5] Cf., neste sentido, o acórdão do TRL de 23/2/2022, relatado por Cristina Almeida e Sousa, disponível em www.dgsi.pt, e que aqui seguimos de perto.
[6] Cf., neste sentido, para além do acórdão do TRL de 23/2/2022, já citado, também o acórdão deste TRP de 12/10/2016, relatado pelo Desembargador José Carreto, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[7] Cf., neste sentido, para além do acórdão do TRL de 23/2/2022, já citado, também o acórdão deste TRP de 12/10/2016, relatado pelo Desembargador José Carreto, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt.
É de notar que a APAV (Associação Portuguesa de Apoio á Vítima) identifica como exemplo de práticas de violação de direitos de pessoas institucionalizadas, entre muitas outras, «deixar pessoas idosas com dificuldade de mobilização sentadas ou deitadas durante muito tempo, sem ajudá-las a levantar-se» e «não mobilizar regularmente pessoas idosas acamadas», para além de «práticas de violação de direitos ao nível da supervisão técnica», incluindo «Não assegurar que a equipa técnica é qualificada e que há um número adequado de profissionais que a compõem», e de «Práticas de violação de direitos ao nível da higiene pessoal», nomeadamente «Deixar as pessoas idosas sujas (por exemplo, de fezes e urina) durante muito tempo» e «Não lavar as pessoas idosas acamadas na totalidade durante longos períodos de tempo». Acrescenta-se a prática de «Negligenciar a alimentação das pessoas idosas por falta de ajuda durante as refeições», todas elas verificadas no presente caso – cf. https://apav.pt/publiproj/images/yootheme/PDF/Titono_PT.pdf.
[8] Resulta da prova testemunhal que o número de funcionárias era escasso e, mesmo assim, duas ainda eram afetadas aos serviços domiciliários e, outra, à cozinha, pelo que frequentemente apenas se encontravam três funcionárias, distribuídas por dois pisos, para atender cerca de cinquenta utentes, na sua maioria acamados, o que se afigura manifestamente insuficiente (cf., em particular, o depoimento da testemunha JJ).
[9] É de notar que a testemunha II referiu que, tanto o arguido, tratado por “Pastor AA”, como a Dra. OO – administradora do lar e superior hierárquica das funcionárias, aqui se incluindo as testemunhas inquiridas -, quando confrontados com as falhas da instituição, diziam: “Quem não está bem muda-se, a porta da rua é a serventia da casa”.
[10] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[11] É de notar que nenhuma das testemunhas alude ao arguido/requerido nos seus depoimentos, pelo que ficamos com sérias dúvidas de que este acompanhasse de perto a gestão dos assuntos da Instituição ou, pelo menos, que estivesse a par dos problemas com que esta se deparava na prestação de cuidados aos respetivos utentes.
Responsabilidade Médica
Consentimento Informado
Danos Não patrimoniais
Culpa do lesado
Dever de informação
Intervenção cirúrgica
Ato Medico
Exclusão de responsabilidade
Ónus da prova
Obrigações de meios e resultado
Atos dos Representantes Legais ou Auxiliares
14/12/2021
I - A ação de responsabilidade civil por atos médicos pode fundar-se no erro médico e/ou na violação do consentimento informado.
II - Na 1ª. situação visa-se, essencialmente, tutelar a saúde e a vida do paciente, enquanto que na 2ª. situação de causa de pedir o bem jurídico tutelado é o direito do paciente à autodeterminação na escolha dos cuidados de saúde.
III - Tanto o dever de informação (a que está vinculado o médico, e que constitui um dos requisitos da licitude sua atividade) como o consentimento do paciente para prática do ato médico (que deve se livre e esclarecido, tendo por base essa informação que lhe é transmitida, sob pena da sua invalidade, salvo naquelas situações excecionais de urgência, em que estando perigosamente em causa a sua vida/saúde, o mesmo não possa ser obtido em tempo útil e se deverá então presumir) são de conteúdo elástico, devendo ser aferidos à luz das especificidades de cada caso concreto.
IV - Funcionando o consentimento como causa de exclusão da ilicitude da sua atuação, é sobre o médico que impende o ónus de prova do consentimento (livre e esclarecido) prestado pelo paciente.
V - Em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios, embora em casos muito particulares ou específicos possa transformar-se numa obrigação de resultado.
VI - Em ação de responsabilidade civil médica em que a causa de pedir radica na violação do consentimento informado, o cálculo do montante indemnizatório por danos não patrimoniais deverá ser feito com base em critérios de equidade, atendendo, nomeadamente, ao grau de culpabilidade/censurabilidade do responsável médico e bem como do próprio lesado na situação geradora desses danos, à gravidade e dimensão desses mesmos danos e à própria situação económica quer do lesante, quer do lesado.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
Para o efeito, e em síntese, alegou:
Que desde os 6 anos de idade sofre de miopia e tem necessidade de usar óculos de forma permanente, o que se agravou com a idade, razão pela qual, em 2004 – e quando então já exercia a profissão de ... - em consulta oftalmológica no “Hospital dos Clérigos”, então pertença da ré HPP, registou 9 dioptrias no olho direito e 8,50 dioptrias no olho esquerdo.
Numa unidade da ré HPP teve acesso a brochura relativa a uma técnica de correção cirúrgica da miopia denominada “Lasik”, que lhe traria a solução para os seus problemas diários relacionados com o uso de óculos ou lentes de contacto, sem efeitos secundários, o que era confirmado em newsletter distribuída pela mesma ré em outubro de 2006.
Em dezembro de 2004 agendou consulta com o réu BB, que era o responsável pela execução do tratamento com recurso a tal tecnologia na ré HPP, para aferir da possibilidade de corrigir cirurgicamente a miopia que o afetava, visando cessar em absoluto a utilização de óculos ou lentes de contacto.
Na sequência dessa consulta, realizou os exames que o referido réu entendeu serem necessários para avaliar a situação, tendo dele recebido também algumas indicações pré-operatórias, bem como a informação de que a recuperação seria quase imediata e sem dores, tendo ainda sido alertado para a eventual necessidade de posteriormente, cerca de 3 meses após a primeira intervenção, se corrigir o que não ficasse perfeito na primeira intervenção. O réu transmitiu-lhe ainda que ele iria abandonar de forma definitiva o uso de auxiliares de visão, mas nada lhe disse sobre os riscos e possíveis efeitos secundários da intervenção.
Foi assim que na data agendada (.../05/2005) foi submetido (ao olho direito) à intervenção programada, no final da qual lhe foi dito que tudo se processara normalmente, devendo regressar no dia seguinte para acompanhamento da evolução da intervenção, o que fez, tenho-lhe novamente lhe sido transmitido que tudo estava a decorrer dentro da normalidade.
Em .../05/2005, o A. comunicou ao réu BB que sentia enevoada a visão do olho direito intervencionado, tendo o réu indicado que deveria submeter-se à intervenção ao olho esquerdo, momento em que ele procederia à correção ao olho direito que se revelasse necessária, como inicialmente fora programado. Porém, autor opôs-se a tal, informando que não permitiria a intervenção ao olho esquerdo enquanto a visão do olho direito não se mostrasse perfeita.
Em .../06/2005 foi novamente observado pelo réu BB, transmitindo-lhe que a visão no olho intervencionado não registara melhoras, tendo o réu insistido na realização da intervenção ao olho esquerdo e do retoque ao olho direito, acabando por reconhecer não saber se a recuperação estava a decorrer com normalidade por não ter realizado a operação de forma unilateral (ou seja, aos dois olhos na mesma altura, como propusera inicialmente ao A. e que este não aceitou).
Depois disso, e por perda de confiança no R. BB, em junho de 2005, o autor recorreu aos serviços da ré Clínica Oftalmológica, onde foi atendido pelo réu CC, a quem explicou o que havia sucedido com o réu BB, tendo sido informado por aquele, após realização de exames, ser apenas necessária a realização de retoque no olho inicialmente intervencionado, garantindo-lhe então que obteria visão a 100%, sem que, contudo, lhe tenha sido também dada qualquer informação sobre possíveis efeitos secundários da tecnologia “Lasik” ou da possibilidade de não ser atingido uma visão bilateral a 100%.
Contratou então com o réu CC e com a ré Clínica Oftalmológica a realização de intervenção laser aos 2 olhos, de forma unilateral, embora ao olho direito devendo ser efetuado apenas um “retoque”.
Em .../09/2005 foi submetido à intervenção cirúrgica ao olho direito, mas poucas melhoras registou após tal, permanecendo enevoada a visão desse olho. Posteriormente, e após ter sido informado pelo réu CC da necessidade de realizar um novo “retoque”, em 19 de janeiro de 2006 foi submetido a terceira intervenção ao olho direito, mas novamente sem obter o resultado que pretendia, sendo certo que a sucessão de intervenções ao olho direito piorou de forma considerável a qualidade da visão deste.
Por outro lado, os réus BB e CC não mandaram fazer os exames que eram necessários, os quais lhe permitiriam ter apurado que as características do autor não o tornavam bom candidato à submissão a intervenção com recurso a tal técnica.
Assim, em resultado da realização das intervenções por eles realizadas, o autor ficou afetado de danos permanentes na sua visão que não teriam ocorrido face ao estado da ciência médica e aos meios disponíveis.
Acresce ainda, que os referidos réus médicos não lhe revelaram adequadamente todas as informações sobre os efeitos secundários resultantes da cirurgia realizada. É que o autor só aceitou submeter-se às diversas intervenções porque não foi informado dos efeitos colaterais irreversíveis e não corrigíveis do “Lasik”, pois se conhecesse todos os efeitos secundários dessa técnica operatória, especialmente a falta de estudos a longo prazo e a possibilidade de danos irreversíveis e não corrigíveis, nunca teria se se teria submetido à referida operação.
2.1 A ré HPP, defendeu-se por impugnação, alegando, na sua essência, desconhecer a generalidade dos factos alegados pelo A. remetendo a esse propósito para a explicações que, a tal propósito, viessem a ser dadas pelo R. BB na contestação por ele a apresentar, acabando por pedir a improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.
De qualquer modo, no final requereu a intervenção principal da Companhia de Seguros Fidelidade Mundial, SA., com o alegado fundamento de, na sequência de contrato de seguro com ela celebrado, ter transferido a sua responsabilidade civil por factos similares aos invocados pelo autor.
2.2 Os réus Clínica Oftalmológica e CC apresentaram contestação conjunta, defendendo-se por exceção e por impugnação.
No que concerne à 1ª. defesa, invocaram a ineptidão da petição inicial.
No que concerne à 2ª. defesa contraditaram, no essencial, a versão factual aduzida pelo A., negando qualquer atuação contra a “legis artis”, e afirmando terem sido prestados ao A. todos os esclarecimentos e informação que se impunham, nomeadamente através do R. BB.
E particularmente referiram ainda que autor não tinha especificidades nos olhos que desaconselhassem a utilização da técnica “Lasik”; que foram cumpridas todas as boas práticas médicas na data exigíveis; os exames foram os necessários e adequados; o programa terapêutico proposto ao autor e expressamente aceite por ele foi cumprido até ao momento em que o autor deixou de comparecer perante os réus; que a miopia residual integra o processo terapêutico, motivo por que o «retoque» é prática corrente e que anisometropia invocada pelo autor decorre apenas da circunstância de não ter sido operado ao olho esquerdo, sendo solucionado com o uso de lente de contacto ou a realização de cirurgia.
Pelo que pediram no final a procedência daquela invocada exceção ou então a improcedência da ação com a sua absolvição do pedido.
2.3 Por sua vez, o réu BB, na sua contestação, defendendo-se também por exceção e por impugnação.
No que concerne à 1ª. defesa, invocou a ineptidão da petição inicial.
No que concerne à 2ª. defesa contraditou, no essencial, a versão factual aduzida pelo A., negando qualquer atuação contra a “legis artis”, e afirmando terem sido prestado ao A. todos os esclarecimentos e informação que se impunham.
E particularmente referiu ainda quando em novembro de 2004 o autor foi a uma consulta de oftalmologia num estabelecimento hospitalar, inquiriu a médica que o assistiu da possibilidade de efetuar correção da miopia que o afetava através de técnica com recurso a laser, tendo recebido dessa médica informação quanto à natureza, vantagens, inconvenientes e possíveis efeitos secundários associados, ao que autor acabou por declarar estar ciente de tudo.
Na sequência disso, o autor, na consulta que teve lugar a ... de dezembro de 2004, evidenciou alto grau de conhecimento sobre a técnica em causa, a taxa de sucesso, os efeitos secundários e possibilidade de não obtenção do resultado almejado.
Foram, entretanto, realizados diversos exames ao autor para avaliar se o mesmo era bom candidato à realização da intervenção com utilização da técnica “Lasik, tendo-se apurado não existirem contra-indicações à realização da cirurgia ao olho direito do autor.
Em ... de junho de 2005, o réu concluiu pela necessidade de realizar o “retoque” para cuja possibilidade o autor havia sido advertido e que aceitou, propondo data para realização de novos exames e agendamento da nova intervenção, aos quais, porém, o autor faltou, não mais tendo tido contacto com ele, desconhecendo, assim, o seu atual estado clínico.
Pelo que terminou pedindo a improcedência da ação contra si e contra a ré Clínica Oftalmológica, com a absolvição do pedido.
Todavia, no final, requereu a intervenção acessória passiva das sociedades AMA – Agrupacion Mutual Aseguradora (Mútua de Seguros dos Profissionais de Saúde), e Axa Portugal – Companhia de Seguros, S.A., por terem sido subscritos contratos de seguros através dos quais estas entidades assumiram a responsabilidade de indemnizar terceiros por danos da natureza dos invocados pelo autor.
« (…) condenar “os réus BB e CC a pagar ao autor (por manifesto lapso de escrita escreveu-se “aos autores”), cada um, a indemnização de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora a contar da presente data até integral pagamento.
Custas da ação e do recurso pelo autor na proporção de 97% e pelos réus condenados na proporção de 3%. »
« 1 - O recurso é interposto do Acórdão proferido pela 1ª Secção do TRP, que deu parcialmente provimento ao peticionado pelo A, nomeadamente que decretando a responsabilidade civil dos RR. pelos danos morais sofridos pelo A. originados nos danos na sua visão, com base na inexistência do seu consentimento informado.
2 - No presente recurso, o recorrente com base no reconhecimento pelo Tribunal “a quo” da inexistência do consentimento informado pretende a:
3 - Quanto à condenação dos médicos na devolução/pagamento das quantias pagas pelo A. com os tratamentos e exames e intervenção lasik, o TRP não condenou neste segmento, por razões que o A./recorrente tem que discordar frontal e respeitosamente.
4 - São 1.087,93 € do Réu BB e 1.301,00 € para o Réu CC, a que devem acrescer os juros de mora, pelo menos desde a citação.
5 - Os serviços foram erradamente prestados com violação do consentimento informado é os médicos que os devem suportar, nunca o A..
6 - Na teoria da decisão sub judicio existiu responsabilidade civil que origina o pagamento de danos morais, mas não o pagamento dos serviços médicos prestados com manifesta deficiência, por violação do consentimento informado.
7 - Não pode manter-se este segmento do Acórdão, ora em crise, que deverá ser
revogado ordenando-se a pagamento ao A. das quantias pagas pela alegada prestação dos serviços médicos.
8 - Os RR. foram condenados, cada um, no pagamento ao A. de uma indemnização por danos morais de 3.500,00 €.
9 - Embora não seja bitola para a fixação da compensação que seja devida, o A.
quer deixar registado que em custas de parte tem mais de 10.000,00 € para pagar, não esquecendo os milhares de euros que gastou com exames e perícias médicas.
10 – A lide não pode ser para o A. uma mão cheia de nada e para os RR. uma absolvição encapotada, com o máximo respeito por todos os envolvidos.
11 - Pois bem, o pedido de danos morais na P.I. não foi liquidado com o argumento (formalmente transitado em julgado) de não ser possível na data de entrada da acção, fixar o seu quantum, que se estava ainda a avolumar e não era ainda definido.
12 – Assim, o recorrente relegou para liquidação em execução de sentença a quantificação dos mesmos, nem sequer alegando factos na sua plenitude no articulado inicial, apenas fazendo menção genérica à sua existência.
13 - Nessa senda foi surpreendido com o Acórdão “a quo”, que fixou um quantum indemnizatório, sem que tenha existido pedido concreto, nem a total alegação da amplitude dos factos.
14 - Entendendo o A. que o princípio dispositivo é ainda prevalente no processo civil e cabendo às partes definir o objecto do litígio (através da dedução das suas pretensões) e alegar os factos que integrem a causa de pedir ou que sirvam de fundamento à dedução de eventuais excepções, sendo que juiz só pode fundar a decisão nestes, sem prejuízo dos factos instrumentais e de os poder utilizar quando resultem da instrução e julgamento da causa, não compreende o A., salvo o devido respeito, a fixação dos 3.500 € de indemnização.
15 - Nestes termos, entende o recorrente que o nosso Supremo Tribunal deve ordenar a revogação do Acórdão do TRP e remeter o processo à primeira instância pata liquidação dos danos morais sofridos pelo A..
16 – Sem prescindir, escreveram os Senhores Desembargadores o seguinte para justificar o raquítico valor dos danos morais arbitrados ao recorrente:
“Com efeito, resultou provado que o autor abandonou o acompanhamento que vinha sendo feito pelo réu BB após a realização da cirurgia e o aparecimento da visão enevoada, não permitindo, alegadamente por perda de confiança, que este réu realizasse qualquer intervenção no sentido de concluir a cirurgia programada e/ou corrigir ou eliminar aquela consequência, desconhecendo-se se a mesma era possível e que resultados produziria, sendo certo que o autor havia sido informado por aquele médico da possibilidade de ser necessária uma correcção do trabalho realizado.”
17 - Pergunta o A., com humildade, que mais deveria ter feito?!
18 – Em primeiro lugar o A, pretendia com o lasik abandonar em absoluto o uso de óculos e lentes de contacto:
31- Na sequência, o autor agendou para ... de Dezembro de 2004, no "Hospital Privado ...", consulta com o réu BB, com vista a aferir da possibilidade de corrigir cirurgicamente a miopia, tendo o autor em vista abandonar em absoluto o uso de óculos ou lentes de contacto.
19 - Em segundo lugar, o médico BB pôde fazer todos os exames prévios que pretendeu e entendeu necessários, o A. e o médico não tinha limitações nesse particular:
33- Na sequência, o réu BB teve a oportunidade de realizar todos os exames que entendeu necessários à avaliação das características do autor (designadamente a topografia corneana, paquimetria, pupilometria, tonometria, a avaliação da acuidade visual e determinação da refracção do doente, mas não a aberrometria e a avaliação lacrimal), por forma a decidir da conveniência da realização da cirurgia refractiva.
20 - Em terceiro lugar, a única coisa que o BB informou o A. era a eventual necessidade de um retoque, ou seja, acertar a correcção da visão que que não ficasse perfeita primeira intervenção:
36- Quanto às possíveis complicações resultantes da intervenção, o réu BB transmitiu ao autor, pelo menos, a eventualidade de ser necessário levar a cabo um "retoque", ou seja, em fase posterior novamente utilizar o laser para correcção de algo que não ficasse perfeito na primeira intervenção.
21 - Em quarto lugar, o médico em referência não comunicou ao A. técnicas alternativas que existiam(em) e com muito menos risco:
38- O BB não transmitiu ao autor qualquer informação quanto a técnicas de tratamento alternativas ao "Lasik", designadamente o "Lasik personalizado" ou a implantação de lente intra-ocular.
22 - Em quinto lugar, o A. (não podia ser de outra forma) confiou os seus olhos no médico especialista em oftalmologia no HPP, então propriedade da Caixa Geral de Depósitos, agora Hospital Lusíadas:
39- O autor confiou integralmente e sem reservas na capacidade profissional do réu BB (especialista em oftalmologia), e no prestígio do réu "HPP - Norte, SA", como instituição de referência na prestação de cuidados de saúde.
23 - Em sexto lugar, o A. queixou-se de ter a visão enovoada, não era defeito na correção (refrativo) que fosse resolvido com o retoque, que se destinava apenas a corrigir um sub correcção da miopia:
47- A 30 de Maio de 2005, regressado ao estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "HPP - Norte, SA", o autor queixou-se ao réu BB que a sua visão no olho já intervencionado (o direito) apresentava-se ainda bastante enevoada.
24 - Em sétimo lugar, as pregas que originavam a névoa e que foram registadas pelo médico, não estavam nos planos do tratamento:
48- Na sequência, após examinar o olho direito do autor, o réu BB verificou existirem pregas no "flap" (como se disse em 9-, a parte de tecido da córnea que é cortada e levantada para aplicação do laser).
25 - Em oitavo lugar, o médico propôs-se (num perigoso salto para a frente/no escuro) realizar a cirurgia ao olho esquerdo
49- O réu BB transmitiu ao autor que as pregas referidas em 48 não possuíam relevância, e propôs realizar, como agendado, pelo menos, a intervenção ao olho esquerdo …
26 - Em nono lugar, as regras da experiência comum “gritavam esbracejando” que o paciente deveria resolver primeiro o problema, para depois avançar para o tratamento do olho esquerdo, sendo que ao paciente, ora signatário, no meio de um turbilhão de sentimentos perturbadores, pareceu-lhe evidente essa atuação.
27 - Então tinha um olho enevoado e repleto de pregas e a solução era operar o outro olho?! Não pode ser!
28 - Em décimo lugar, o que fez o A. e bem, como comprova o resto da estória, opôs-se e transmitiu esse facto ao médico:
50-... Ao que o autor se opôs …
51-... Transmitindo ao réu BB que não permitiria a intervenção ao olho esquerdo enquanto a visão do olho direito não se apresentasse perfeita.
29 - Em décimo-primeiro lugar, o que fez o médico, sedimentando a decisão do A. agarrado aos “clamores” que ouvia das regras da experiência comum: aceitou a posição do A. e marcou nova observação (não cirurgia) para ... de Julho de 2005:
52- O réu BB aceitou a posição do autor, agendando o dia ... de Junho de 2005 para nova observação ao autor.
30 - O A. é apenas ... e subjugou a vontade e plano terapêutico do médico, num ápice?! Então ele o dito especialista não podia estar completamente seguro do que estava a fazer.
31 - Em décimo-segundo lugar, o A. manteve a visão enevoada e com pior qualidade:
53 - A ... de Junho de 2005, o autor queixou-se ao réu BB que continuava a apresentar a visão enevoada no olho direito, e sentia que piorara a sua visão nesse olho.
32 - Em décimo-terceiro lugar, o médico continuou a agendar novas observações, sem nada fazer, era esperar o tempo passar e “rezar” (nota que o recorrente é católico praticante) para que ficasse melhor:
54- Na consulta referida em 53- o réu BB agendou para daí apelo menos semanas nova data para observar o autor.
33 - Depois de tudo isto o que sucedeu ao A.:
55 - No dia 06 de Junho de 2005 o autor saiu bastante perturbado das instalações do réu "HPP - Norte, SA", preocupado com a situação do seu olho direito, apresentando diferença da acuidade visual entre os olhos de tal forma elevada que prejudicava a sua visão bilateral …
56-... O que causou perturbação do descanso e da vida profissional e pessoal do autor.
34 - O que faria um homem médio colocado nesta situação: continuava a aguardar algo que o médico claramente não controlava? Que não sabia o que fazer? Continuava a rezar?
35 - O A. teve medo, muito medo: olhos são apenas dois e não são substituíveis sendo a visão o mais sagrado dos nossos 5 sentidos, foi uma verdade de La Palice (ou lapalissada) que assaltou completa e brutalmente o espírito do signatário.
36 - O que fez? Pediu esclarecimentos por escrito sobre a sua situação: causas e procedimentos a seguir:
57- Já em Julho de 2005, através de diversos telefaxes, o autor solicitou ao réu esclarecimentos escritos sobre a situação, nomeadamente se iria recuperar a integral visão do olho direito, quais as razões para a visão enevoada do olho tratado, e sobre os procedimentos que iriam ser seguidos, ao que aquele réu jamais respondeu por escrito.
37 - Resposta do médico e do Hospital: O SILÊNCIO! (desculpem V. Exas as maiúsculas)
38 - Concluindo, o TRP entende que foi o A, quem abandonou os tratamentos?!
39 - Se tudo estava controlado porque não responderam ao A., por escrito, com a explicação do que se passava e com o plano terapêutico a seguir?!
40 - O pavor tornou-se pânico na mente do A., tal como aconteceria a qualquer bom pai de família.
41 - Não podia ser exigível ao A. outra coisa que não fosse procurar um outro oftalmologista reputado e contactou o CC, conceituado na cidade do ... e entre os seus pares, especialmente na área da cirurgia refractiva, onde tinha realizado centenas de intervenções.
42 – Com o CC são os seguintes os factos provados, muito similaresaos do especialista em visão BB:
62- Em Julho de 2005 o autor agendou consulta nas instalações da ré "Clínica Oftalmológica Ribeiro-Barraquer, SA", na altura situadas na rua Gonçalo Sampaio, nº 271, visando informar-se sobre o actual estado clínico do seu olho direito e sobre as possibilidades de eventual correcção dos problemas que apresentava, com vista a alcançar a aptidão da sua visão sem recurso a óculos ou lentes de contacto ...
63-... Sendo a ... de Julho de 2005 atendido pelo réu CC.
64 - Antes do referido em 62- e 63- o autor jamais tinha tido contacto com os réus "Clínica Oftalmológica Ribeiro-Barraquer, SA", e CC, que até então desconheciam o historial clínico do autor.
65 - Na consulta referida em 62- e 63- o autor descreveu ao réu CC a sua versão quanto ao tratamento a que havia sido submetido pelo réu BB, e expressou as queixas quanto ao que sentia.
66 - O réu CC, depois de efectuar os exames (designadamente a aberrometria, a tonometria, a caratometria e a medição da graduação, mas não o teste de lágrimas e a análise à sensibilidade de contraste) que entendeu necessários (tendo o autor pago o respectivo custo), transmitiu ao autor que não tinha de se preocupar, embora entendendo necessária a realização de "retoque" ao olho intervencionado.
67 - A forma descontraída, confiante e segura com que o réu CC falou como autor transmitiu a este segurança que tudo correria pelo melhor e os problemas que sentia tinham solução breve e simples.
68 - O réu CC não transmitiu ao autor qualquer outra informação quanto a possíveis efeitos secundários permanentes da intervenção com recurso à técnica "Lasik", ou quanto à possibilidade de o autor não alcançar em toda a sua extensão a aptidão da sua visão sem recurso a óculos ou lentes de contacto …
69 - ... Nem transmitiu ao autor qualquer informação quanto a técnicas de tratamento alternativas ao "Lasik", designadamente o "Lasik personalizado" ou a implantação de lente intra-ocular.
70 - O autor confiou nas capacidades do réu CC enquanto médico especialista em oftalmologia, e na reputação que este e a ré "Clínica Oftalmológica Ribeiro- Barraquer, SA", possuíam.
71 - A 14 de Setembro de 2005, nas instalações da ré "Clínica Oftalmológica Ribeiro-Barraquer, SA", o autor foi submetido a nova intervenção cirúrgica ao seu olho direito com utilização da técnica "Lasik", levada a cabo pelo réu CC, tendo pago € 1.192,00.
72 - Nos dias subsequentes (designadamente a 15 e 30 de Setembro e 02 de Dezembro de 2005), o autor deslocou-se a diversas consultas de acompanhamento da intervenção, sentindo melhorias na visão do olho intervencionado.
73 - ... Apesar de continuar a sentir enevoada a visão do olho direito.
74 - Na sequência, o réu CC, a 02 de Dezembro de 2005, transmitiu ao autor que seria necessário levar a cabo novo "retoque" ao olho direito.
75 - A ... de Janeiro de 2006, o autor foi submetido a terceira intervenção ao olho direito com recurso à técnica "Lasik".
76 - Todos os contactos do autor com vista à prestação dos serviços referidos em 71- a 75- tiveram lugar directamente com o réu CC.
77- Não obstante as intervenções referidas em 71- e 75- , o autor continuou a não sentir melhorias na visão do seu olho direito, sentindo mesmo que a sucessão de intervenções piorou a qualidade de visão do olho direito. 78- O autor continuou a ser acompanhado pelo réu CC, que lhe propôs a realização de uma nova intervenção ao olho direito.
79 - A certa altura, o autor deixou de confiar no réu CC, entendendo que a situação estava fora do controlo deste …
80 -... A partir de ... de Março de 2006 abandonando o tratamento a que estava a ser sujeito.
43 - Pois bem, como resulta das profusa documentação e peritagens do processo, os olhos não são ilimitados para várias intervenções lasik, ou seja, os médicos não podem ir tentando até acertar.
44 - Tudo porque a córnea vai sendo desgastada com as intervenções, que no máximo devem ser apenas duas, três é uma clara e muito arriscada excepção, a partir daí em insano continuar.
45 - Existiam tratamentos alternativos como a lente intraocular que podiam diminuir o problema do A., nunca uma quarta intervenção.
46 - O que mais era exigido ao A.: uma quarta intervenção? uma quinta? Sexta? Ficar cego? Não era mais possível manter o especialista reputado CC a governar a situação.
47 - Pelas regras da experiência comum como um bom pai de família o A. fez uma pausa nos tratamentos e consultou a Clínica Barraquer em Barcelona (https://www.barraquer.com/es), publica e notoriamente um dos centros mais avançados do mundo em oftalmologia e disseram-lhe:
84 - Em Dezembro de 2006, o autor deslocou-se ao "Centro de Oftalmologia Barraquer", em Barcelona, onde foi observado pelo Dr. DD, que transmitiu ao autor que, em sua opinião, o autor não deveria ter sido submetido a intervenção cirúrgica aos olhos com recurso à técnica "Lasik".
48 - O que iria continuar o A. a fazer sendo seguido pelo CC que lhe prometeu os denominados “mundos e fundos”, tudo era de fácil resolução e nada cumpriu…
49 - Teria o A. que ficar cego para lhe consideraram danos morais significativos?
50 – Como restou o A. (factos provados):
17- O autor nasceu a .../.../1973 …
18- ... E é ..., estando há vários anos inscrito no Conselho ....
(…)
55 - No dia ... de Junho de 2005 o autor saiu bastante perturbado das instalações do réu "HPP - Norte, SA", preocupado com a situação do seu olho direito, apresentando diferença da acuidade visual entre os olhos de tal forma elevada que prejudicava a sua visão bilateral …
56 - ... O que causou perturbação do descanso e da vida profissional e pessoal do autor.
(…)
77 - Não obstante as intervenções referidas em 71- e 75-,o autor continuou a não sentir melhorias na visão do seu olho direito, sentindo mesmo que a sucessão de intervenções piorou a qualidade de visão do olho direito.
81 - A intervenção cirúrgica com recurso à técnica "Lasik" apenas deve ser realizada quando o paciente mantenha estabilizado o grau de miopia durante certo período (pelo menos 1 ano). (…)
86 - Caso o autor tivesse tido consciência que a intervenção cirúrgica com recurso à técnica "Lasik" não eliminaria a sua necessidade de recorrer ao uso de óculos e lentes de contacto, ou que originaria halos, "starbusts" e clarões, e dificuldades na visão nocturna sem correcção, teria decidido não submeter-se às intervenções referidas em 44-, 71- e 75-.
(…)
88 - Actualmente, o autor apresenta:
89 - Actualmente, o autor queixa-se de:
91- Toda a situação acima descrita causou ao autor angústia, desconforto com a sua visão, revolta, ansiedade e depressão, levando-o a procurar auxílio médico e medicamentoso.
51 - Constitui entendimento jurisprudencial actual que devem abandonar-se indemnizações miserabilistas a título de danos não patrimoniais, é imensa a jurisprudência nesse sentido que foi inicia da precisamente pelo nosso STJ e que só não se cita por respeito à inteligência de V. Exas.
52 - O A. era um jovem de 32 anos, ainda sem filhos e foi condenado a viver mais de 2/3 da sua vida adulta (olhando à esperança média de vida) com todos os problemas referidos e que o relatório do INML relata como causador de maior esforço no desenvolvimento das tarefas normais da vida quotidiana e no contexto profissional.
53 - O A. é ..., com todas as limitações descritas facilmente se percebe o esforço dos últimos 15 anos e dos 20 que faltam até à reforma.
54 - Se é verdade que uma parte significativa dos problemas resultam de não ter sido operado ao olho esquerdo, o que fazer?! É que não foi aos factos provados mas os oftalmologistas do processo (foram muitos) foram unanimes em dizer que o mais certo é voltar a acontecer nesse olho?!
55 - Vai o A. arriscar o único olho saudável que tem e que equilibra a sua visão e que permite não parar sua vida numa verdadeira “roleta russa”?
56 - É que a roleta russa só se coloca por falta de informação dos médicos, pois era uma cirurgia que o A. não necessitava para continuar a viver e com qualidade, uma vez que com lentes de contacto e óculos tinha uma visão a 100%!
57 - O A. vê-se na contingência de usar uma pala no olho operado… para equilibrar a visão. E só a usa em casa, devendo utilizá-la mais vezes, por vergonha extrema, admite.
58 - Atender, como ... um cliente com uma pala no olho ou deslocar-se a um julgamento ou a qualquer diligência judicial de pala preta no olho direito, não lhe passa sequer pela cabeça, é demasiado achincalhante para um drama originado pelos médicos.
59 - O A. perdeu parte da infância dos seus filhos pois não conseguia a acordar de noite e dar-lhes assistência…
60 - Dependeu e continua a depender em muitas situações da sua esposa, dos seus amigos e Colegas, para se deslocar, para trabalhar… Deixou de ir ao cinema, ao teatro, se sair à noute em qualquer ocasião.
61 - Não aceita convites de amigos e familiares para ir jantar com medo do que o escuro lhe causa na visão…
62 - Enfim, para não mais maçar V. Exas, resulta evidente das regras da experiência comum os tremendos danos de natureza não patrimonial sofridos pelo A. e que este, por defeito, fixa em 200.000,00 €, a suportar por cada Réu em partes iguais de 100.000 €.
63 -O A. desde a data da última perícia percepcionou a decadência da sua visão do olho operado de forma significativa, tudo o que existia está mais vincado: os halos, a neblina matinal, o blur, as dificuldades na visão com pouca luminosidade ou em excesso dela…
64 - Numa outra penada o recorrente reiterando tudo o que disse supra para os danos de natureza não patrimonial, entende que os RR. devem ser condenados a pagar todas as despesas com tratamentos médicos futuros que se venham a mostrar convenientes para a diminuição dos danos na sua visão.
65 - Concluindo, entende o recorrente que a Revista se funda na incorrecta aplicação e interpretação da lei substantiva – alínea a), do nº 1, do artº 674º do CPC.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, deverá o presente recurso proceder, sendo parcialmente revogado o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto e substituído por outro do Supremo Tribunal de Justiça que ordene a condenação dos RR., no pagamento ao A. dos valores pagos e reenviar o processo para a 1ª Instância de forma a ser fixada a indemnização pelos danos não patrimoniais tal como expresso na P.I. da lide, não prescindindo ser alterado o valor dos danos morais arbitrado, assim se fazendo. Por fim, condenar os RR. tal como peticionado nas despesas futuras de tratamento do A.. »
« 1. O recurso principal deve ser julgado improcedente – não alterando a decisão no sentido do recurso apresentado pelo Recorrente-Autor, e o acórdão recorrido ser confirmado, mas sem prejuízo de ser julgado procedente o recurso subordinado, ou seja, absolvendo o Recorrido dos pedidos formulados na ação, ou, caso se mantenha a condenação ser excluída a obrigação de indemnização ao lesado dada a culpa deste, ou a ser condenado sê-lo em menor montante, não superior a € 1.000,00, mas também, serem condenados os Réus HPP (atualmente Lusíadas SA), e Companhia de Seguros Mundial Confiança (atualmente Companhia de Seguros Fidelidade, SA), pois que o tratamento ao Autor foi ministrado ao Autor na organização HPP, que estipulou e recebeu o preço dos serviços prestados, estando o Autor inserido na organização dos HPP, como prestador de serviços, e nesse âmbito contratual, tendo realizado os atos médicos, ou seja como comissário e sendo comitente o Réu HPP.
Na verdade, esse pedido havia sido formulado sob ponto b) da petição inicial e foi julgado improcedente na sentença da primeira instância.
No acórdão recorrido, foi também decidido que “Os pedidos das alíneas c) e d) improcedem na totalidade em virtude da delimitação do objeto do recurso às consequências da falta do consentimento informado…” (vide ponto 41 do referido acórdão). Pelo que é de manter o entendimento do acórdão recorrido no que diz respeito à limitação do objeto do recurso e ao trânsito dessa decisão de improcedência desse pedido, constante da sentença proferida na primeira instância, de que o Recorrente não interpôs recurso;
- não permitiu concluir o tratamento ao olho direito que foi intervencionado; - não permitiu concluir o tratamento com a intervenção ao olho esquerdo; e,
- não permitiu concluir o tratamento na sua globalidade – a intervenção aos dois olhos, como sempre foi pressuposto do tratamento, e com eventual necessidade de retoque; sendo que não foi contratado pelo Autor a possibilidade de efetuar apenas o lasik num dos olhos, mas antes nos dois, embora a sua solicitação, não em simultâneo.
- de -9 dioptrias de miopia, e de -0,50 dioptrias de astigmatismo, com uma acuidade visual com correção de 8/10, em Dezembro de 2004 (fato provado 25 e 97 e 98); para,
- -0.25 dioptrias de miopia e -0,50 de dioptrias de astigmatismo em Setembro de 2016, e com uma acuidade visual de 9/10 (facto provado 88-h) da sentença),
- de -9 dioptrias de miopia, e de -0,50 dioptrias de astigmatismo, com uma acuidade visual com correção de 8/10, em Dezembro de 2004 (fato provado 25 e 97 e 98); para,
- -0.25 dioptrias de miopia e -0,50 de dioptrias de astigmatismo em Setembro de 2016, e com uma acuidade visual de 9/10 (facto provado 88-h) da sentença), donde se conclui que com as cirurgias realizadas melhorou a acuidade visual com correção, e tendo agora com uma muito reduzida miopia, ou seja, o Autor que era praticamente cego (sem correção), tinha 10% de visão, vê bem sem próteses (óculos ou lentes) do olho direito – tem agora mais de 70% de visão, ou seja houve uma significativa melhoria da acuidade visual sem correção.
- O pedido da alínea a) porque, conforme começou por se assinalar, o mesmo respeita à indemnização por uma incapacidade funcional que não se provou.
- Os pedidos das alíneas b) e c) (e não c) e d), como por lapso evidente consta do acórdão) improcedem na totalidade em virtude da delimitação do objecto do recurso às consequências da falta de consentimento informado. Essa restrição determina que o julgamento que aqui cabe não possa ter como fundamento a causa de pedir baseada nos contratos celebrados com os médicos e a sua resolução por incumprimento das respetivas obrigações, mas apenas a indemnização dos danos resultantes de um ilícito civil com fundamento no artigo 483.º do Código Civil, o que remete para os danos que têm como causa adequada o facto ilícito, não para a destruição do contrato e do respectivo sinalagma decorrente da respectiva nulidade ou resolução não arguidas na acção.
- O pedido da alínea d) (e não e) como por lapso evidente consta do acórdão) de publicação da sentença num jornal nacional («durante 4 Domingos, de forma a evitar que potenciais candidatos a realizar intervenção com recurso à técnica “Lasik” possam ser operados sem qualquer informação», sic) improcede evidentemente.
- Com efeito, encontramo-nos num domínio jusprivatistico em que não existe norma legal que imponha essa publicação; o direito do autor cinge-se a ser indemnizados dos danos que sofreu, não a infligir aos réus o dano reputacional da publicação da condenação; não se reconhece ao autor legitimidade nem interesse para acautelar o perigo para outrem da repetição da actuação dos réus, nem há motivos reais e demonstrados para a temer.
- Improcede identicamente o pedido da alínea e) (e não f) como por lapso evidente consta do acórdão), uma vez que como se viu foi o autor com o seu comportamento e decisões que impediu que tivessem sido já executadas intervenções destinadas a eliminar as consequências indesejadas da cirurgia.
E, sendo certo que no caso a relação de comissão no caso existe, por força do contrato de prestação de serviços, e o alegado ato ilícito foi praticado no âmbito e em conexão com o objeto desse contrato. Neste sentido os Ac. do STJ de 15-03-2005 (Proc.04ª4808), e de 02-03-2006(CJ/STJ, 20061º- 97).
Termos em que deve ser julgado improcedente o recurso principal e procedente o recurso subordinado como é de Justiça. »
10.1 O R. CC, pedindo no final a improcedência do recurso independente (do A.), e ainda revogação do acórdão recorrido no segmento em que o condenou a indemnizar o A. na quantia de € 3.500,00, a título de danos não patrimoniais.
10.2 A interveniente (acessória) Axa (atualmente com a designação de Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA.), que se limitou a aderir às contra-alegações apresentadas pelo R.. CC dando-as por reproduzidas.
10.3 A interveniente (principal) Fidelidade - Companhia de Seguros, SA. (antes Companhia de Seguros Fidelidade - Mundial, SA. e antes ainda Companhia de seguros Mundial – Confiança), começando por defender, com os fundamentos ali aduzidos, e aqui dados por reproduzidos, a inadmissibilidade do recurso subordinado (de revista) interposto pelo R. BB, e nomeadamente no que a si concerne e até à própria R. HPP/Lusíadas, pugnando depois, e de qualquer modo, sempre pela improcedência desse recurso, com a manutenção do julgado nas instâncias que a absolveu do pedido.
10.4 A Ré HPP (atualmente designada por Lusíadas, SA.):
10.4.1 No que concerne ao recurso independente do A., começou por defender, com os fundamentos ali aduzidos, e aqui dados por reproduzidos, a inadmissibilidade desse recurso, pugnando depois, e de qualquer modo, sempre pela improcedência do mesmo, com a manutenção do julgado (pelo tribunal recorrido).
10.4.2 No que concerne ao recurso subordinado (de revista) interposto pelo R. BB, começou por defender, com os fundamentos ali aduzidos, e aqui dados por reproduzidos, a inadmissibilidade desse recurso, pugnando depois, e de qualquer modo, e na parte em que pede a sua condenação, sempre pela improcedência do mesmo, com a manutenção do julgado (pelo tribunal recorrido) que decidiu absolvê-la do pedido.
***
II - Fundamentação
Como ressalta daquilo que se supra deixou exarado (cfr. pontos 10.3 e 10.4.1 e 10.4.2 do Relatório), nas suas respetivas contra-alegações que apresentaram aos mesmos, a admissibilidade do recurso independente (interposto pelo A.) é questionada pela recorrida Ré HPP (atualmente Lusíadas, SA.), o mesmo acontecendo no que concerne ao recurso subordinado (interposto pelo R. BB), deste feita pela interveniente Fidelidade - Companhia de Seguros, SA., e também por aquela mesma Ré.
Recursos esses que foram admitidos, como revista (normal) pelo tribunal a quo (cfr. despacho com referência ...).
Porém, é sabido que a decisão que admita um recurso (bem como fixe a sua espécie e determine o seu efeito) não vincula o tribunal superior (cfr. artº. 641º, nº. 5, ex vi artº. 679º - vg. no que concerne ao STJ - do CPC, diploma este ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionemos um normativo sem a indicação da sua fonte).
Vejamos então se, in casu, estão reunidos os pressupostos legais para a admissão de tais recursos como revista normal (centrando-nos sobretudo nos argumentos esgrimidos para o efeito por aquelas “partes” que que se opuseram à sua admissibilidade).
1.1 Quanto ao recurso independente (do A.).
Tendo em conta o valor da causa (correspondente a € 252 177,90 - cfr. despacho referência “Citius” nº. ..., datado de 04/03/2021), a natureza, o âmbito e diversidade dos pedidos formulados, e bem como as decisões que sobre eles recaíram (quer na 1ª., quer na 2ª. instâncias), é claro que esse valor ultrapassa o valor da alçada do tribunal da Relação de que ora se recorre (fixada, como se sabe, em € 30.000,00 – cfr artº. 44º LOSJ, aprovada pela da Lei nº. 62/2013, de 26/08), não se colocando também, a nosso ver, dúvidas que o grau de sucumbência do A./recorrente é-lhe desfavorável em valor superior a metade do valor dessa alçada, ou seja, em valor superior a € 15.000,00, e se dúvidas subsistissem a respeito - dada forma como o mesmo formulou tais pedidos -, então sempre, nos termos do estatuído na parte final do nº. 1 do artº. 629º, se deveria, a esse respeito, atender somente ao valor da causa (veja-se que o A./recorrente, entende neste seu recurso que não sendo ordenada, em decisão, a remessa dos autos à 1ª. instância, para aí ser fixado, em incidente de liquidação, tal como havia requerido/formulado no seu petitório inicial, o valor da indemnização a atribuir-lhe pelos alegados danos não patrimoniais, então defende que a condenação dos RR. pelo seu ressarcimento deve ser fixada em € 200.000.00 – cfr. nº. 62 das conclusões das suas alegações do recurso e o pedido final com que conclui as mesmas).
E daí a conclusão de estarem verificados os requisitos gerais (pois que os da legitimidade e da tempestividade não se colocam) previstos no artº. 629º, nº. 1, que permitem ao A. interpor o presente recurso, e desde logo contra os RR. BB e CC.
A questão que se poderia, a nosso ver, suscitar tinha a ver com o saber se in casu estaríamos perante uma situação de dupla conforme (a que se alude no nº. 3 do artº. 671º)
Como u se sublinhou no acórdão desde Supremo Tribunal de 13/10/2016 (proc. nº. 967/14.1TBACB.C1.S1, disponível em dgsi.pt) “inexistindo dupla conforme entre uma sentença absolutória do pedido e o acórdão da Relação em que se conclui pela condenação parcial da ré – dado que os fundamentos de uma e de outra decisão não podem ser considerados essencialmente idênticos – é de concluir pela admissão do recurso da autora.”
Também no conspecto doutrinal, Rui Pinto afastou a existência de dupla conforme obstativa do acesso ao terceiro grau de jurisdição no caso - análogo à situação que convoca a nossa análise – em que a primeira instância absolveu os réus do pedido e a segunda instância concedeu parcial provimento ao recurso apresentado pelo autor. E isto porque “o acórdão da Relação produziu efeitos materiais opostos aos efeitos materiais da decisão de 1ª. instância; é de teor parcialmente oposto (pois a condenação foi parcial) a esta decisão. A primeira decisão é negativa do pedido do autor; a segunda decisão é positiva do pedido do autor (“Repensando os requisitos da dupla conforme (artigo 671.º, n.º 3, do CPC)”, Julgar online, novembro de 2019, pág. 2, acessível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/11/20191118-ARTIGO-JULGAR-Dupla-conforme-Rui-Pinto.pdf.)
Uma vez, porém, que o recorrente deduz a sua pretensão recursória, de forma indistinta, contra os “réus”, há também que apreciar a admissibilidade do recurso independente interposto pelo autor contra as rés sociedades HPP – NORTE, S.A. e CLÍNICA OFTALMOLÓGICA RIBEIRO-BARRAQUER, S.A.
Relativamente a estas verificou-se uma conformidade decisória entre a sentença de primeira instância e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto: ambas as decisões absolveram as recorridas do pedido. No entanto, tal absolvição fundou-se em fundamentações díspares: enquanto a primeira instância considerou inexistir facto ilícito consubstanciador da obrigação de indemnização no âmbito da responsabilidade civil contratual, a segunda instância entendeu que, estando reunidos os pressupostos da responsabilidade civil relativamente aos réus médicos por violação do dever de informação, a factualidade provada se mostrava insuficiente para responsabilizar civilmente as sociedades comerciais em cujas instalações decorreram os atos médicos em causa. E isto porque não foi lograda “designadamente a demonstração da existência da situação de pluralidade de autores, instigadores ou auxiliares (artigo 490.º do Código Civil) ou de uma relação de comissão entre as sociedades e os médicos (artigo 500.º do Código Civil).”
As duas instâncias percorreram, pois, percursos jurídicos diferentes, em pontos nodais da apreciação jurídica da causa que, salvo melhor opinião, fundam uma divergência quanto à matéria de direito que, ao contrário do defendido pela recorrida HPP/Lusíadas S.A. na sua resposta, afasta a limitação recursória derivada da dupla conforme, nos termos do preceituado no nº. 3 do artº. 671º.
Por outro lado, não se descortina que, tal como propugnado pela recorrida Lusíadas S.A., a decisão impugnada seja desfavorável ao autor “no montante de € 2.388,93 (de acordo com o que consta das alegações de recurso), valor inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação, € 15.000, (…).”
E desde logo, pelas razões que supra deixámos referenciadas a propósito dos RR. BB e CC.
E depois ainda, e de qualquer modo, pelo seguinte:
Como nota Abrantes Geraldes, “A exigência complementar relacionada com o valor da sucumbência foi introduzida na reforma processual de 1985, com o objetivo de filtrar as questões suscetíveis de serem submetidas à reapreciação dos Tribunais Superiores.
Frequentemente, em processos cujo objeto é integrado por diversos pedidos, a parte decai apenas relativamente a algum ou alguns deles; outras vezes o decaimento cinge-se a uma parcela do pedido único ou a um pedido meramente acessório (v.g. juros) (…). Mas a necessidade de concentrar energias naquilo que é mais importante, a premência na erradicação de instrumentos potenciadores da morosidade da resposta judiciária ou o interesse em dignificar a atividade dos Tribunais Superiores convergiram no sentido de fazer depender a recorribilidade também da proporção do decaimento, devendo este ser superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão impugnada (in “Recursos em Processo Civil, 6.ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2020, pág. 48”).
Precisa o acórdão deste Supremo Tribunal de 26/09/2007 (proc. n. 06S4612, disponível em dgsi.pt) que “II - O valor da sucumbência, para efeitos de admissibilidade de recurso, reporta-se ao montante do prejuízo que a decisão recorrida importa para o recorrente, o qual é aferido em função do teor da alegação do recurso e da pretensão nele formulada, equivalendo, assim, ao valor do recurso, traduzido na utilidade económica que, através dele, se pretende obter” (sublinhado nosso) (cfr. ainda o Ac. do STJ de 13/07/2006, proc. nº. 06S895, disponível em dgsi.pt).
Uma palavra lateral para fazer notar que, in casu, não é aplicável o entendimento vertido na fundamentação no AUJ nº. 10/2015, de 14/05 (“DR nº. 123/2015, Série I de 2015-06-26, páginas 4483/4493”) segundo o qual “para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, a medida da sucumbência corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de primeira instância e no acórdão da Relação”, tendo em conta que a decisão de primeira instância se estribou numa absolvição integral do pedido (no que concerne às aludidas RR.).
Neste conspecto, sendo a sucumbência de aferir pela diferença entre o montante do pedido em sede de apelação e o montante concedido, temos que, na situação que convoca a nossa análise, e uma vez que o recorrente reiterou o peticionado ab initio nos autos, o montante do pedido (que foi deduzido de forma ilíquida, ou pelo menos numa sua parte) a considerar deverá equivaler àquele que foi fixado (no sobredito despacho) como integrando o valor da causa, em cada um dos segmentos petitórios. Assim, o valor do pedido deduzido contra a recorrida HPP – NORTE, S.A. (agora Lusíadas S.A.) computa-se em € 250.876,90 (€1087,93 + € 229 538,97 + € 20 000,00 + € 250,00).
Por conseguinte, o valor da sucumbência quanto ao peticionado pelo recorrente contra a recorrida HPP – NORTE, S.A., excede o montante correspondente a metade da alçada da Relação, considerando que nenhum montante foi concedido (no que concerne às rés) ao recorrente pelo Tribunal da Relação do Porto neste particular. De qualquer modo, voltamos a enfatizar (face ao que acima já deixámos expresso), que neste seu recurso de revista, o A./recorrente, entende que não sendo ordenada, em decisão, a remessa dos autos à 1ª. instância, para aí ser fixado, em incidente de liquidação, tal como havia requerido/formulado no seu petitório inicial, o valor da indemnização a atribuir-lhe pelos alegados danos não patrimoniais, então defende que a condenação dos RR. (não fazendo destrinça entre eles), pelo ressarcimento só desses danos, deve ser fixada em € 200.000.00.
Idêntica conclusão vale para o montante da sucumbência do autor no que respeita ao pedido dirigido contra a ré CLÍNICA OFTALMOLÓGICA RIBEIRO-BARRAQUER, S.A. .
Tudo para concluir – assim se decidindo - que nenhum obstáculo (em concomitância do que concerne aos RR. BB e CC) se perfila também quanto à admissão do recurso (independente) interposto pelo autor contra a rés/recorridas HPP – NORTE, S.A. (agora Lusíadas, SA.) e CLÍNICA OFTALMOLÓGICA RIBEIRO-BARRAQUER, S.A. .
1.2 Quanto ao recurso subordinado (do R. BB).
Desloquemos, por ora, o foco de análise (sobre a sua admissão ou não) para o recurso subordinado apresentado pelo réu BB.
Peticiona o mesmo a revogação do acórdão recorrido no segmento em que determinou a sua condenação no pagamento de uma quantia ao autor (recorrente independente), pugnando, naquilo que para aqui mais releva, no sentido de ser excluída a indemnização (mesmo para o caso de, sem conceder, entender que houve da sua parte violação de dever de informação para prestação de consentimento informado) pela culpa imputável ao próprio lesado e, a título subsidiário, para o caso de se manter a decisão de condenação, a determinação de que pelo pagamento dessa compensação sejam condenados também a ré HPP (ora Lusíadas, SA.) e a sua seguradora (a interveniente principal Fidelidade), e por montante menor (€ 1.000,00) daquele que foi fixado no acórdão recorrido.
Retorque a recorrida Fidelidade que o recurso subordinado se mostra inadmissível no que respeita à pretensão subsidiária de condenação da recorrida, tendo em conta que o recorrente subordinado não se insurgiu (cfr. alegação – referende ao recurso de apelação - referência “Citius” nº. ..., datada de 08/02/2021) contra a absolvição das intervenientes ou da recorrida HPP, SA., não tendo, por outro lado, requerido, nos termos do preceituado no artº. 636.º do CPC, “a ampliação do objeto da apelação no sentido de, na procedência desta, ser uma eventual condenação (como veio a acontecer) extensiva ao R. HPP-NORTE, SA., e à sua seguradora, o que consolidou o trânsito em julgado da absolvição desta última, já que não visada na apelação do autor.”
Cotejando o teor do recurso de apelação apresentado pelo autor, verifica-se que através dele o demandante instou o Tribunal da Relação do Porto a pronunciar-se, para além do mais, quanto à violação do dever de informação por banda do réu BB (que praticou os atos médicos nas instalações da ré HPP - Norte, SA.), pedindo que fosse revogada a sentença recorrida, substituindo-a por acórdão que ordene a condenação solidária dos réus tal como expresso na petição inicial da lide.
Se não suscita particular controvérsia a conclusão de que o autor dirigiu o seu recurso de apelação contra a recorrida HPP - Norte, SA., - na medida em que visou, indistintamente, todos os réus no seu pedido -, a verdade é que, como bem nota a interveniente, a sua absolvição do pedido (implícita, uma vez que não consta do dispositivo da sentença de primeira instância) não foi, de modo algum, contestada em sede de segunda instância, tendo-se cristalizado.
Tanto vale por dizer que se formou caso julgado obstativo da apreciação do mérito do recurso de revista subordinado quanto à interveniente Fidelidade (mas já não quanto HPP - Norte, SA.).
Acrescenta a Fidelidade que o recurso em análise não se mostra admissível, nos termos do disposto no nº. 3 do artº. 671.º do CPC, em virtude da existência de dupla conformidade decisória, considerando que a decisão recorrida confirmou a decisão da 1ª. instância, absolvendo a recorrida HPP - Norte, SA., do pedido.
De acordo com o AUJ n.º 1/2020, de 27/11/2019 (publicado no DR, I SÉRIE, de 2020-01-30) “o recurso subordinado de revista está sujeito ao n.º 3 do art. 671.º do CPC, a isso não obstando o n.º 5 do art.º 633.º do mesmo Código.”
Porém, in casu, pelas razões que supra se particularizaram, não obstante se ter verificado coincidência decisória nas duas instâncias quanto à absolvição do pedido relativamente à demandada HPP - Norte, SA., a verdade é que tais decisões mobilizaram fundamentações jurídicas essencialmente distintas para o efeito – o que permite afastar, por não poder considerar-se a existência de dupla conforme, o obstáculo à admissibilidade do recurso em apreço.
Aduz, por fim, a recorrida Fidelidade que o recurso subordinado apresentado contra a recorrida HPP - Norte, SA não se mostra admissível, uma vez que o que o recorrente subordinado pretende é, não apenas que se reaprecie a decisão na parte em que ficou parcialmente vencido, mas estender a condenação já proferida a um terceiro, pretensão que deveria ser objeto de um recurso independente, e não subordinado, dado não estar dependente da sorte da revista do autor.
Tal argumentação convoca a reflexão sobre a natureza do recurso subordinado.
Como se sublinhou no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 26/01/2017 (proc. nº. 308/13.5TTVLG.P1.S1, disponível em dgs.pt ), “(…) II. Numa área onde prevalece o princípio do dispositivo e em que, por isso, cada uma das partes deve zelar pela tutela dos seus interesses, a lei faculta a cada uma das partes que seja vencida a opção entre um recurso independente ou um recurso subordinado – cf. art. 633º, nº 1, do CPC. III. O recurso independente assume total autonomia quer ao nível da admissão, quer da subsequente tramitação, ao passo que o recurso subordinado fica na dependência do recurso principal, sendo a apreciação do respectivo mérito prejudicada se por algum motivo não for apreciado o mérito do recurso principal. Ou seja, nos termos do nº. 3 do art. 633º, do CPC, o recurso subordinado caduca se houver desistência do recurso principal, se este ficar sem efeito ou se, por razões de forma, o Tribunal não tomar dele conhecimento. (…). V. A posição da parte que recorre subordinadamente não é equivalente à que é proporcionada pelo recurso independente, ficando a apreciação do mérito do recurso subordinado dependente das vicissitudes formais do recurso independente interposto pela Ré. Mas, excluída essa condicionante, a admissão do recurso subordinado permite à parte confrontar o Tribunal ad quem com a impugnação da decisão recorrida, na parte em que a mesma lhe foi desfavorável, possibilitando a alteração do resultado. (…). VII. Interposto recurso subordinado, pode a parte que o deduziu integrar no mesmo as questões em que tenha ficado vencida, sejam questões de direito ou também questões de facto.” (sublinhado nosso).
Como faz notar o aresto, “o pressuposto do recurso subordinado é que haja decaimento na decisão proferida para ambas as partes, sendo que uma delas pode fazer depender a sua reacção da posição assumida pela parte contrária: não recorrer se a contraparte também assim proceder, mas já no caso de que esta interponha recurso, a outra parte pode não prescindir também de impugnar a parte que lhe é desfavorável. É esta a ratio do recurso subordinado.”
Aliás, ainda de acordo com o acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de 19/10/2016 (proc. nº. 3/13.5TBVR..G1-A.S1, disponível em dgsi.pt), “Esta denunciada caracterização do recurso designado de subordinado tem apenas a justificar a sua subsistência duas circunstâncias, quais sejam, a de que o recorrente principal não desista do recurso ou que, efectivamente, se não mostrem razões capazes de justificar que dele se não conheça. Quer isto dizer que ambos os recursos mantêm plena e acabada autonomia no que aos seus fundamentos e objectivos diz respeito, designadamente no que toca aos especificados aspectos em que cada uma das partes recorrentes ficou vencida.”
Como explica Abrantes Geraldes (in “Ob. cit., pág. 124”), “a situação do recorrente subordinado é instável, uma vez que a sua apreciação fica dependente das vicissitudes por que venha a passar o recurso principal (art. 633.º/3 do Código de Processo Civil), caducando se este ficar sem efeito (por verificação de uma situação de deserção ou de inutilidade superveniente) ou se se verificar qualquer outra situação obstativa do mérito do mesmo (a título de exemplo, extemporaneidade, irrecorribilidade, dupla conforme, ilegitimidade ou verificação de uma situação de aceitação expressa ou tácita da decisão.. No entanto, “ultrapassados os requisitos de ordem formal relacionados com a admissibilidade ou com a tramitação do recurso, o tribunal ad quem confrontar-se-á, no momento da decisão, com ambas as pretensões recursórias, sem que o resultado decretado a uma influa necessariamente no sucesso da outra.”
No caso que suscita a nossa análise, afigura-se-nos cristalino que o réu BB ficou vencido na parte em que a decisão recorrida decidiu absolver do pedido a recorrida HPP - Norte, SA., considerando ser da sua responsabilidade exclusiva o pagamento da indemnização arbitrada. Encontra-se, pois, assegurada legitimidade deste réu para recorrer subordinadamente.
Tendo em conta a autonomia que se verifica, no que aos seus fundamentos e objetivos, entre os recursos independente e subordinado, não há, salvo o devido respeito por outra opinião, que restringir, ao arrepio da lei, o objeto do recurso subordinado às questões diretamente suscitadas pelo recorrente independente. Tanto que, como observa Abrantes Geraldes (in “Ob. cit., pág. 125”) “o facto de o recurso principal se dirigir apenas ao modo como foi conhecido um dos diversos pedidos formulados, não afasta a possibilidade de a contraparte recorrer subordinadamente da decisão relativa aos demais.”
Numa outra formulação: não constitui causa para o não conhecimento do mérito do recurso a circunstância de o recorrente subordinado pretender discutir outra matéria – sobre a qual também foi proferida decisão que lhe foi desfavorável e até se integra no âmbito do recurso independente – para além da que contende com a sua condenação no pagamento de danos não patrimoniais ao autor.
Uma derradeira palavra para referir que a dedução de pedido subsidiário – cuja apreciação, por manifestação de vontade do recorrente, fica dependente do resultado do recurso interposto a título principal - no âmbito do recurso subordinado encontra arrimo no princípio do dispositivo que domina em matéria de recursos (e que, a título de exemplo, conhece uma manifestação no artº. 636º nºs. 1 e 2 do CPC, admitindo ao recorrido ampliar o objeto do recurso interposto pelo recorrente, ainda que subsidiariamente).
Diga-se, por último, que, mutatis mutandis, – e dado que os argumentos aduzidos para o efeito são, na sua essência, verossimilhantes -, se concluirá do mesmo modo no que concerne ao pedido formulado pela R. HPP (atualmente Lusíadas, SA.) no sentido de não ser admitido o sobredito recurso.
Perante o que se deixou exposto, e rematando – assim decidindo -, admitindo-se, como se admitiu, o recurso independente, é de admitir, também, o recurso subordinado apresentado pelo R. BB contra o autor e contra a ré HPP (agora Lusíadas, SA.) - ainda que se considere que o decaimento desse recorrente seja inferior a metade da alçada do tribunal da Relação (cfr. artº. 633º nº. 5 do CPC) -, excluindo-se, contudo, dele, ou seja, a sua admissão contra a interveniente principal Companhia de Seguros Fidelidade, SA. (antes Companhia de Seguros Mundial Confiança).
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2.1 Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, e 679º do CPC).
Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” a que se reporta o citado artº. 608º, e de que o tribunal deve conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes.
Importa, desde já deixar referido, que o A. enquanto na ação fundou as suas pretensões petitórios, para as quais veio requerer tutela judicial, em duas causas de pedir, consubstanciadas, por um lado, num alegado erro médico (por violação da legis artis, por parte de cada um dos réus BB e CC) e, por outro, na violação do dever de informação por parte daqueles para obtenção do seu consentimento relativamente às intervenções cirúrgicas a que se submeteu, ou seja, fundou também tais pedidos na falta de consentimento informado da sua parte para esse efeito.
Porém, no seu recurso de apelação para Relação, e à semelhança do que faz no presente recurso de revista, o autor restringiu expressamente o objeto e âmbito do seu recurso àquela segunda causa de pedir: inexistência de consentimento informado.
E é nessa medida, e à luz do estatuído a esse respeito pelo artº. 635º, nºs. 4 e 5, do CPC, que será definido objeto do recurso independente (e já agora também o do recurso subordinado do R. BB por virtude da referida restrição do objeto daquele), sendo o conhecimento das respetivas questões feito tão somente com base daquela 2ª. causa de pedir.
2.2 Ora, calcorreando as conclusões das alegações dos sobreditos recursos (independente – do A. - e subordinado - dos R. BB), e respetivas contra-alegações, verifica-se que as questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes:
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Pelo tribunal a quo (TRP) foram dados como provados os seguintes factos (mantendo-se os termos da sua descrição, a ortografia, a ordem, a que constam do acórdão recorrido):
1 - A miopia é o nome comum dado ao erro de refracção da luz no olho, acarretando a focagem da imagem antes de atingir a retina.
2 - Um míope consegue ver os objectos próximos com nitidez, mas os distantes são visualizados como se estivessem embaçados (desfocados).
3 - O "Lasik" (acrónimo da expressão Laser-Assisted in Sito Keratomileusis) é um tipo de cirurgia laser refractiva realizada por oftalmologistas para correcção de patologias da visão, designadamente a miopia, o astigmatismo e a hipermetropia.
4 - No pré-operatório é essencial a realização de exames específicos, nomeadamente os seguintes: a. topografia corneana; b. pupilometria; c. paquimetria; e d. tonometria .
5 - A operação é efectuada pela criação de um "flap" (lamela; disco superficial) no olho, de forma a permitir a modelação dos tecidos corneais através de um laser de baixa potência.
6 - Usando a informação recolhida no pré-operatório, o computador calcula a quantidade e a localização do tecido corneal a ser removido durante a operação.
7 - Durante a operação o paciente está acordado, sendo-lhe colocadas nos olhos gotas anestésicas.
8 - Então, é aplicado no olho um anel de sucção da córnea, que tem por finalidade imobiliza o olho e permitir a criação do "flap" através de um microquerátomo mecânico.
9 - O "flap" fica preso à córnea por uma das suas extremidades e é dela separado, deixando visível e acessível o estroma, ou seja, a secção interna da córnea.
10 - Depois, utilizando um laser exímero (193nm), é remodelado o estroma corneal.
11 - O laser vaporiza o tecido de forma controlada, através da quebra das ligações intramoleculares, sem afectar significativamente o estroma adjacente.
12 - O tecido vaporizado é ínfimo, reduzido a mícrons de espessura.
13 - Após a separação do "flap" e durante a aplicação do laser, a visão do paciente permanece enevoada, podendo apenas ver a luz do laser.
14 - Depois da remodelação do estroma da córnea, o "flap" é recolocado sobre a zona tratada, onde permanecerá por adesão natural até a cicatrização estar completa.
15 - Após a intervenção, o paciente deve colocar no olho tratado gota antibióticas e antiinflamatórias,
por um período nunca inferior a 3 semanas, mas que poderá variar de acordo com as instruções do médico.
16 - É recomendado ao paciente o uso de óculos de sol e o evitar de luzes fortes, e são-lhe fornecidas umas palas críticas, para serem usadas durante o sono, de forma a evitar a afectação da zona tratada.
17 - O autor nasceu a .../.../1973 …
18 - ... E é ..., estando há vários anos inscrito no Conselho ....
19 - O réu "HPP - Norte, SA", dedica-se à prestação de serviço de saúde, nomeadamente através da exploração, no ..., do estabelecimento hospitalar denominado " Hospital da ...”.
20 - O réu BB é médico, especialista em oftalmologia, e, em 2005, prestava colaboração ao réu "HPP - Norte, SA".
21- A ré "Clínica Oftalmológica Ribeiro-Barraquer, SA", dedica-se à prestação de serviços de saúde na área da oftalmologia.
22 - O réu CC é médico, especialista em oftalmologia, e, em 2005 e 2006, colaborava com a ré "Clínica Oftalmológica Ribeiro-Barraquer, SA", com o esclarecimento que sempre foi o Director Clínico daquela.
23 - Na infância ao autor foi diagnosticada miopia, pelo que teve necessidade de usar óculos de forma permanente.
24 - Com o avançar da idade a miopia do autor aumentou de forma acentuada, associada ao próprio crescimento.
25 - Em Novembro de 2004, em consulta oftalmológica de rotina agendada no "Hospital dos Clérigos", então pertença do réu "HPP - Norte, SA", o autor registava 9,00 dioptrias (unidade de medida da potência de uma lente correctiva) no olho direito, e 8,50 dioptrias no olho esquerdo.
26 - Durante a espera para uma das diversas consultas que teve no estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "HPP - Norte, SA", o autor teve acesso a uma brochura sobre a correcção da miopia através de laser ("Lasik").
27 - Após analisar o folheto referido em 26-, o autor entendeu que o "Lasik" seria a solução para um dos seus maiores incómodos diários, o uso de óculos ou lentes de contacto, nada constando do folheto sobre qualquer efeito secundário ou complicações.
28 - Em Outubro de 2006 o réu "HPP - Norte, SA", distribuiu “newsletter” que incluía artigo intitulado "Laser de última geração no Hospital Privado …", no qual consta: «Esta cirurgia tem como objectivo a correcção de defeitos refractivos como a miopia, a hipermetropia e o astigmatismo, permitindo aos doentes uma visão de qualidade, sem a dependência dos óculos ou das lentes de contacto». E «embora existam outras técnicas cirúrgicas para correcção de defeitos refractivos, também utilizadas no Hospital, a técnica "Lasik" é a preferida na maior parte dos casos pelas vantagens que apresenta; os tratamentos são efectuados em ambulatório e com anestesia local, o procedimento é praticamente indolor, existe a possibilidade de tratamento bilateral simultâneo (os 2 olhos na mesma sessão), e há uma recuperação muito rápida da visão, permitindo que no dia seguinte o doente tenha, de um modo geral, uma acuidade que lhe permite restabelecer a sua vida normal».
29 - No documento referido em 28- nada é referido a propósito de complicações ou efeitos secundários, nem se incentiva à recolha de informação detalhada com o médico oftalmologista.
30 - Numa consulta que teve no estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "HPP - Norte, SA", o autor abordou a médica EE a propósito do tratamento com recurso à técnica "Lasik, que transmitiu ao autor que o médico no estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "HPP - Norte, SA", responsável por esse tipo de tratamento era o réu BB, com quem deveria agendar consulta.
31- Na sequência, o autor agendou para ... de Dezembro de 2004, no "Hospital Privado ...", consulta com o réu BB, com vista a aferir da possibilidade de corrigir cirurgicamente a miopia, tendo o autor em vista abandonar em absoluto o uso de óculos ou lentes de contacto.
32 - Na consulta referida em 31- o réu BB transmitiu que teria de efectuar exames por forma a definir se era ou não bom candidato para ser submetido a tratamento com recurso à técnica "Lasik".
33 - Na sequência, o réu BB teve a oportunidade de realizar todos os exames que entendeu necessários à avaliação das características do autor (designadamente a topografia corneana, paquimetria, pupilometria, tonometria, a avaliação da acuidade visual e determinação da refracção do doente, mas não a aberrometria e a avaliação lacrimal), por forma a decidir da conveniência da realização da cirurgia refractiva.
34 - O autor questionou o réu BB quanto à possibilidade de realizar a intervenção cirúrgica de forma unilateral (um olho de cada vez), por forma a permitir-lhe não interromper totalmente a sua actividade profissional, ao que aquele réu declarou não existir qualquer obstáculo e que executaria a intervenção unilateralmente, apesar de ser adepto da cirurgia bilateral simultânea.
35 - Na sequência, o réu BB transmitiu ao autor alguns cuidados pré-operatórios que deveria observar (designadamente não utilizar lentes de contacto nos 8 dias anteriores às intervenções), e que a recuperação seria quase imediata, sem dores.
36 - Quanto às possíveis complicações resultantes da intervenção, o réu BB transmitiu ao autor, pelo menos, a eventualidade de ser necessário levar a cabo um "retoque", ou seja, em fase posterior novamente utilizar o laser para correcção de algo que não ficasse perfeito na primeira intervenção.
37 - O réu BB transmitiu ainda ao autor que, surgindo a necessidade de levar a cabo um "retoque", este apenas poderia ser realizado cerca de 3 meses após a intervenção originária, de forma a permitir a estabilização do olho e a conhecer- se a extensão da correcção necessária.
38 - O BB não transmitiu ao autor qualquer informação quanto a técnicas de tratamento alternativas ao "Lasik", designadamente o "Lasik personalizado" ou a implantação de lente intra-ocular.
39 - O autor confiou integralmente e sem reservas na capacidade profissional do réu BB (especialista em oftalmologia), e no prestígio do réu "HPP - Norte, SA", como instituição de referência na prestação de cuidados de saúde.
40 - Posteriormente, o autor foi telefonicamente informado, por uma funcionária administrativa do réu "HPP - Norte, SA", sob instruções do réu BB, que reunia as condições para a ser submetido a intervenção com utilização da técnica "Lasik", e que, quando entendesse, poderia proceder ao respectivo agendamento.
41 - Na sequência, ainda por via telefónica, em Abril de 2005 o autor agendou a intervenção para os dias 23 (olho direito) e 30 (olho esquerdo) de Maio de 2005.
42 - A ... de Maio de 2005, chegado ao estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "HPP - Norte, SA", o autor efectuou o pagamento da quantia de €2.000,00 como preço pelo tratamento a que ia ser submetido.
43 - Todos os contactos do autor com vista à prestação dos serviços referidos em 32- a 34- tiveram lugar directamente com o réu BB, nunca tendo o autor contactado com qualquer responsável social do réu "HPP - Norte, SA".
44 - A ... de Maio de 2005, no estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "HPP - Norte, SA", o autor foi submetido a intervenção ao olho direito com recurso à técnica "Lasik", realizada pelo réu BB.
45 - Após a intervenção, pelo réu BB foi transmitido ao autor que tudo correra normalmente, e que se deveria deslocar ao hospital, no dia seguinte, para ser acompanhada a evolução da intervenção.
46 - A ... de Maio de 2005, o autor novamente deslocou-se ao estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "HPP - Norte, SA", tendo sido observado pelo réu BB, que lhe transmitiu que tudo estava a correr com normalidade, devendo regressar no dia 27 de Maio de 2005 para realização da intervenção ao olho esquerdo.
47 - A ... de Maio de 2005, regressado ao estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "HPP - Norte, SA", o autor queixou-se ao réu BB que a sua visão no olho já intervencionado (o direito) apresentava-se ainda bastante enevoada.
48 - Na sequência, após examinar o olho direito do autor, o réu BB verificou existirem pregas no "flap" (como se disse em 9-, a parte de tecido da córnea que é cortada e levantada para aplicação do laser).
49 - O réu BB transmitiu ao autor que as pregas referidas em 48- não possuíam relevância, e propôs realizar, como agendado, pelo menos, a intervenção ao olho esquerdo …
50 -... Ao que o autor se opôs …
51 -... Transmitindo ao réu BB que não permitiria a intervenção ao olho esquerdo enquanto a visão do olho direito não se apresentasse perfeita.
52 - O réu BB aceitou a posição do autor, agendando o dia 06 de Junho de 2005 para nova observação ao autor.
53 - A ... de Junho de 2005, o autor queixou-se ao réu BB que continuava a apresentar a visão enevoada no olho direito, e sentia que piorara a sua visão nesse olho.
54 - Na consulta referida em 53- o réu BB agendou para daí a pelo menos semanas nova data para observar o autor.
55 - No dia ... de Junho de 2005 o autor saiu bastante perturbado das instalações do réu "HPP - Norte, SA", preocupado com a situação do seu olho direito, apresentando diferença da acuidade visual entre os olhos de tal forma elevada que prejudicava a sua visão bilateral …
56 -... O que causou perturbação do descanso e da vida profissional e pessoal do autor.
57 - Já em Julho de 2005, através de diversos telefaxes, o autor solicitou ao réu esclarecimentos escritos sobre a situação, nomeadamente se iria recuperar a integral visão do olho direito, quais as razões para a visão enevoada do olho tratado, e sobre os procedimentos que iriam ser seguidos, ao que aquele réu jamais respondeu por escrito.
58 - Após o referido em 55- a 57-, o autor consultou outros oftalmologistas para aferir da sua situação, constatando que continuava a apresentar cerca de 2,00 dioptrias e pregas no retalho corneano do olho tratado.
59 - A ... de Agosto de 2005, o autor envia comunicação escrita à administração do réu "HPP - Norte, SA", descrevendo a sua versão da situação, informando que perdera confiança profissional no réu BB, e solicitando a devolução das quantias que havia pago (€ 2 000,00, acrescida de € 87,93 despendidos com exames e consultas).
60 - Em resposta à comunicação referida em 59-, o réu "HPP - Norte, SA", também por escrito remetido ao autor, datado de ... de Setembro de 2005, refutou as imputações feitas pelo autor.
61 - O réu "HPP - Norte, SA", acabou por restituir ao autor a quantia de € 1 000,00 referente apenas à intervenção não realizada ao olho esquerdo.
62 - Em Julho de 2005 o autor agendou consulta nas instalações da ré "Clínica Oftalmológica Ribeiro-Barraquer, SA", na altura situadas na rua Gonçalo Sampaio, nº 271, visando informar-se sobre o actual estado clínico do seu olho direito e sobre as possibilidades de eventual correcção dos problemas que apresentava, com vista a alcançar a aptidão da sua visão sem recurso a óculos ou lentes de contacto ...
63 -... Sendo a ... de Julho de 2005 atendido pelo réu CC.
64 - Antes do referido em 62- e 63- o autor jamais tinha tido contacto com os réus "Clínica Oftalmológica Ribeiro-Barraquer, SA", e CC, que até então esconheciam o historial clínico do autor.
65 - Na consulta referida em 62- e 63- o autor descreveu ao réu CC a sua versão quanto ao tratamento a que havia sido submetido pelo réu BB, e expressou as queixas quanto ao que sentia.
66 - O réu CC, depois de efectuar os exames (designadamente a aberrometria, a tonometria, a caratometria e a medição da graduação, mas não o teste de lágrimas e a análise à sensibilidade de contraste) que entendeu necessários (tendo o autor pago o respectivo custo), transmitiu ao autor que não tinha de se preocupar, embora entendendo necessária a realização de "retoque" ao olho intervencionado.
67 - A forma descontraída, confiante e segura com que o réu CC falou com o autor transmitiu a este segurança que tudo correria pelo melhor e os problemas que sentia tinham solução breve e simples.
68 - O réu CC não transmitiu ao autor qualquer outra informação quanto a possíveis efeitos secundários permanentes da intervenção com recurso à técnica "Lasik", ou quanto à possibilidade de o autor não alcançar em toda a sua extensão a aptidão da sua visão sem recurso a óculos ou lentes de contacto …
69 -... Nem transmitiu ao autor qualquer informação quanto a técnicas de tratamento alternativas ao "Lasik", designadamente o "Lasik personalizado" ou a implantação de lente intra-ocular.
70 - O autor confiou nas capacidades do réu CC enquanto médico especialista em oftalmologia, e na reputação que este e a ré "Clínica Oftalmológica Ribeiro- Barraquer, SA", possuíam.
71 - A ... de Setembro de 2005, nas instalações da ré "Clínica Oftalmológica Ribeiro- Barraquer, SA", o autor foi submetido a nova intervenção cirúrgica ao seu olho direito com utilização da técnica "Lasik", levada a cabo pelo réu CC, tendo pago € 1.192,00.
72- Nos dias subsequentes (designadamente a 15 e 30 de Setembro e 02 de Dezembro de 2005), o autor deslocou-se a diversas consultas de acompanhamento da intervenção, sentindo melhorias na visão do olho intervencionado.
73 -... Apesar de continuar a sentir enevoada a visão do olho direito.
74 - Na sequência, o réu CC, a 02 de Dezembro de 2005, transmitiu ao autor que seria necessário levar a cabo novo "retoque" ao olho direito.
75 - A ... de Janeiro de 2006, o autor foi submetido a terceira intervenção ao olho direito com recurso à técnica "Lasik".
76 - Todos os contactos do autor com vista à prestação dos serviços referidos em 71- a 75- tiveram lugar directamente com o réu CC.
77 - Não obstante as intervenções referidas em 71- e 75-, o autor continuou a não sentir melhorias na visão do seu olho direito, sentindo mesmo que a sucessão de intervenções piorou a qualidade de visão do olho direito.
78- O autor continuou a ser acompanhado pelo réu CC, que lhe propôs a realização de uma nova intervenção ao olho direito.
79 - A certa altura, o autor deixou de confiar no réu CC, entendendo que a situação estava fora do controlo deste …
80 -... A partir de ... de Março de 2006 abandonando o tratamento a que estava a ser sujeito.
81 - A intervenção cirúrgica com recurso à técnica "Lasik" apenas deve ser realizada quando o paciente mantenha estabilizado o grau de miopia durante certo período (pelo menos 1 ano).
82 - Em Dezembro de 2004, o autor registava 8,25 dioptrias no olho esquerdo.
83 - Em Julho de 2005, o autor registava 8,00 dioptrias no olho esquerdo.
84 - Em Dezembro de 2006, o autor deslocou-se ao "Centro de Oftalmologia Barraquer", em Barcelona, onde foi observado pelo Dr. DD, que transmitiu ao autor que, em sua opinião, o autor não deveria ter sido submetido a intervenção cirúrgica aos olhos com recurso à técnica "Lasik".
85 - A técnica "Lasik", em Portugal, é utilizada há cerca de 15 anos (tendo por referência à data da propositura da acção).
86 - Caso o autor tivesse tido consciência que a intervenção cirúrgica com recurso à técnica "Lasik" não eliminaria a sua necessidade de recorrer ao uso de óculos e lentes de contacto, ou que originaria halos, "starbusts" e clarões, e dificuldades na visão nocturna sem correcção, teria decidido não submeter-se às intervenções referidas em 44-, 71- e 75-.
87 - A realização de intervenção cirúrgica com utilização da técnica "Lasik" pode causar no paciente os seguintes efeitos, pelo menos, independentemente dos concretos meios empregues e da concreta prestação do médico oftalmologista:
88 - Actualmente, o autor apresenta:
89 - Actualmente, o autor queixa-se de:
90 - Devido ao referido em 88- e 89-, o autor:
91 - Toda a situação acima descrita causou ao autor angústia, desconforto com a sua visão, revolta, ansiedade e depressão, levando-o a procurar auxílio médico e medicamentoso.
92 - Na consulta referida em 63-, a ... de Julho de 2005, o autor apresentava uma acuidade visual no olho direito, sem correcção, de <1/10, e, com correcção, de 35º -1.00 - 1,75 = 10/10.
93 - Nas várias consultas de acompanhamento a que se submeteu junto do réu CC (referidas em 72-), o autor apresentou a seguinte acuidade visual no seu olho direito:
94 - A anisometropia, a visão bilateral apenas com o uso de lente de contacto no olho esquerdo, a aniseiconia, os problemas na visão ao perto, no olho tratado, quando não utiliza lente de contacto no olho esquerdo, e a noção alterada e oscilante das distâncias e da orientação físico-espacial, quando não utiliza lente de contacto no olho esquerdo, referidos em 55- e 88-, decorrem de o autor não ter sido operado ao olho esquerdo, anomalias que se resolvem com recurso a lente de contacto ou cirurgia.
95 - Em 2004 e 2005, o réu BB exercia as funções de coordenador do serviço de oftalmologia do réu "HPP - Norte, SA", trabalhando em regime de prestação de serviços.
96 - No decurso da consulta referida em 30- a médica EE informou o autor sobre a possibilidade de a eficácia do tratamento com recurso à técnica "Lasik" regredir com o decurso do tempo e de a intervenção poder gerar fotofobia e síndrome de olho seco.
97 - Na consulta referida em 30- o autor apresentava 9,00 dioptrias de miopia e 0,50 dioptrias de astigmatismo no olho direito, e 8,50 dioptrias de miopia e 1,00 dioptria de astigmatismo no olho esquerdo.
98 - Na consulta referida em 31- o réu BB confirmou os valores de miopia e astigmatismo que o autor apresentava nos 2 olhos, verificando apenas alteração no olho esquerdo (de 8,50 para 8,25 dioptrias) relativamente ao exame realizado na consulta referida em 30-.
99 - Após a intervenção referida em 44- o réu BB informou o autor que durante algumas semanas deveria colocar no olho operado gotas antibióticas e antiinflamatórias, lágrimas artificiais, utilizar óculos de sol, não esfregar o olho, e dormir com protector ocular.
100 - Na consulta referida em 46- o autor apresentava acuidade visual de 5/10 sem correcção, e avaliação biomicroscópica óptima do olho intervencionado.].
101 - As pregas no "flap" referidas em 48- podem decorrer do facto de o paciente esfregar o olho intervencionado, ou da não colocação do protector ocular pelo paciente, e podem estar associadas a elevado número de astigmatismo miópico prévio.
102 - A ... de Junho de 2005 o réu BB diagnosticou ao autor uma regressão da miopia ou hipocorrecção, o que poderia justificar a necessidade de «retoque» (nova intervenção com recurso à técnica "Lasik" para eliminar a miopia residual).
103 - ... Propondo observar o autor em data posterior, para então efectuar novos exames e agendar a intervenção de "retoque".
104 - Segundo a pupilometria levada a cabo pelo réu BB, era de menos de 7 mm o diâmetro das pupilas do autor.
105 - Nos exames que levou a cabo o réu BB não detectou qualquer aberração ocular.
106 - Em Portugal e internacionalmente, a técnica "Lasik" é utilizada há cerca de 15 anos (tendo por referência a data da propositura da acção), existindo estudos quanto à sua taxa de sucesso e quanto aos seus efeitos secundários.
107 - Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., a interveniente “Companhia de Seguros Fidelidade Mundial, SA", assumiu a obrigação de indemnizar por danos causados a terceiros no âmbito da exploração da actividade a que se dedica o réu "HPP Norte, SA".
108 - Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., celebrado com a Ordem dos Médicos, a interveniente "AMA - Agrupacion Mutual Aseguradora - Sucursal em Portugal" assumiu a obrigação de indemnizar por danos causados a terceiros na sequência de actos de médicos no exercício da sua profissão, com início de vigência a 01 de Janeiro de 2007.
109 - Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., a interveniente "AXA - Companhia de Seguros, SA", assumiu a obrigação de indemnizar por danos causados a terceiros no âmbito do desenvolvimento pelo réu BB da sua actividade profissional como médico oftalmologista.
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4. Quanto à 1ª. questão.
- Do ónus de prova da prestação do consentimento informado/Do ónus da prova da exceção de comportamento alternativo lícito. (recurso subordinado)
Começa o recorrente subordinado BB por peticionar a sua absolvição dos pedidos formulados na ação, considerando que a decisão recorrida fez errada apreciação dos factos e inexata aplicação da lei ao decidir que cabia ao recorrente subordinado (médico) e não ao recorrido/autor fazer a prova de qual seria a sua decisão (consentimento ou não consentimento) se tivesse sido adequadamente informado/esclarecido. Segundo a sua perspetiva, incumbia ao autor a prova de que se fosse informado dos riscos não teria dado o seu consentimento – sendo que, perante o fracasso probatório do demandante nesta matéria, se deve entender que aquele tomaria a mesma decisão de efetuar o tratamento “Lasik” no caso de os resultados que se vieram a concretizar serem apenas prováveis.
Antes, porém, de respondermos a essa questão concreta que nos foi colocada, impõe-se uma alusão teórica à temática do direito ao consentimento informado por parte dos pacientes relativamente aos atos médicos a que se submetem.
É insofismável que o caso dos autos, sobre o qual foi pedido a intervenção do tribunal como vista a sua apreciação, se enquadra no âmbito da chamada responsabilidade civil médica.
Responsabilidade essa que se enquadra civilmente no instituto da responsabilidade civil, tanto contratual, como delitual, podendo existir um concurso (real ou aparente) de ambas as responsabilidades (numa relação de cumulação ou de autonomização de causas de pedir).
Na situação de concurso, o Código Civil é omisso sobre esta matéria, muito embora Vaz Serra (BMJ nº. 85, pág. 115 e ss.). houvesse equacionado o problema nos trabalhos preparatórios, no sentido de conferir ao lesado a possibilidade de optar por um ou outro regime e até de cumular regras de uma e outra modalidade da responsabilidade.
Segundo a teoria da opção, o lesado pode escolher uma das duas responsabilidades, sendo que para os defensores a teoria da consunção o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual.
Porém, vendo constituindo entendimento prevalecente neste Supremo Tribunal a opção pelo regime da responsabilidade contratual, quer com o fundamento de ser o mais conforme com o princípio da autonomia privada, quer por ser, em regra, aquele que é mais favorável à tutela efetiva do lesado (cfr., entre outros, a esse propósito, Ac. do STJ de 22/03/2018, proc. 7053/12.7TBVG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Nesse contexto, e em tese geral, cabe ao autor a alegação e prova dos seguintes elementos: (i) a existência de vínculo contratual; (ii) o incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico; (iii) a verificação dos danos; (iv) o nexo de causalidade entre a violação das legis artis e os danos.
Diga-se ainda, que é mais ou menos consensual entendimento de que, em regra, a obrigação do médico é havida como uma obrigação de meios, e não de resultado (vide, a esse propósito, para a distinção, por ex., Ricardo Ribeiro, in “Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado, pág. 20 e ss.”), em que o devedor se obriga apenas a desenvolver uma atividade diligente com vista ao resultado final, muito embora no âmbito da cirurgia estética haja quem a qualifique como obrigação de resultado, ou “de quase resultado”, dado mesmo nesses casos não olvidar-se da “álea” que sempre poderá influir nos serviços médicos, apesar do constante avanço da ciência. (Cfr., a esse propósito, entre outros, Acs. do STJ 26/4/2016, e de 15/11/2012, 17/12/2009 disponíveis em www.dgsi.pt).
Porém, importa não perder de vista que, dada a restrição que o A. fez do objeto do seu recurso (nos termos que acima deixámos assinalados) responsabilidade médica de que aqui se discute circunscreve-se tão somente à inexistência de consentimento informado, ou seja, as pretensões para as quais aquele requer agora tutela judiciária têm unicamente como causa de pedir a falta de consentimento informado, isto é, a violação do dever de informação para que o A. pudesse prestar um consentimento (esclarecido) sobre as intervenções médicas a que fui submetido.
E foi também já somente com base nessa causa de pedir que o tribunal recorrido apreciou/analisou o caso e decidiu, com o fundamento de tal dever de informação/esclarecimento não ter sido integral ou cabalmente respeitado/cumprido - e depois ter considerado preenchidos os demais pressupostos legais da sobredita responsabilidade civil -, julgar a ação parcialmente procedente, condenando os réus médicos a indemnizar o A. a título de danos não patrimoniais, nos termos do segmento decisório que supra deixámos transcrito.
A ação de responsabilidade civil médica pode fundar-se no erro médico e/ou na violação do consentimento informado (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 24/10/2019, proc. 3192/14.8TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Enquanto que na primeira situação de causa de pedir, com as regras de arte se visa salvaguardar a saúde e a vida do paciente, já na segunda o bem jurídico tutelado é o direito à autodeterminação nos cuidados de saúde.
Tem-se entendido que a obrigação de informação também constitui elemento essencial da legis artis (em sentido amplo), decorre do princípio geral da boa fé e como fonte de especiais deveres integrantes do contrato, cuja amplitude e intensidade é variável de caso para caso, assumindo, porém, autonomia, visto que esta particular regra de comportamento médico visa a tutela da autodeterminação (vide, por ex., Mariano Alonso Perez, in “ La relación médico-enfermo pressuposto de responsabilidade civil em torno a la “lex artis”, em Perfiles de la Responsabilidad Civil en el Nuevo Milenio, 2000, pág. 14 e ss.”; e Vera Raposa, in “Do ato médico ao problema jurídico, 2014, pág. 14 e ss.”).
Compreende-se a importância da informação, pois o consentimento do paciente (livre e esclarecido) é um dos requisitos da licitude da atividade médica, mas o seu conteúdo é “elástico” (Ac. do STJ de 9/10/2014, proc. nº 3925/07.9TVPRT, disponível em www.dgsi.pt), pelo que terá, além do mais, de adequar-se às especificidades de cada caso.
E daí que se tenha entendido que a informação e o consentimento do paciente não devam ser prestados de forma genérica (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 22/03/2018, proc. 7053712.7TBVNG.P1.S1, disponível em www.dgsii.pt).
O dever de informação e o consentimento informado têm consagração legal, nomeadamente, na Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (publicada no DR 1ª Série de 03/01/2001), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artº. 3º), na CRPort. (artºs. 25º e 26º), no artº. 70º do Cód. Civil (direito geral de personalidade), no Código Deontológico da Ordem dos Médicos (artºs. 44º e 45º), e na Lei de Bases da Saúde (Lei nº. 48/99 de 24/8, alterada pela Lei nº. 27/2002 de 8/11).
E daí que constitua hoje entendimento incontroverso que sobre o médico recai um dever de informação e de obtenção de consentimento informado, sendo que o consentimento obtido só será valido se for livre e esclarecido. Dever que surge para neutralizar (ainda que sem eliminar) a assimetria de informação que tipicamente caracteriza a relação médico-paciente (cfr. Rute Teixeira Pedro, in “A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado - Centro de Direito Biomédico, número 15, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 78.”).
Dever de informação esse – que perdura ao longo de toda a relação contratual – que deve obedecer cumulativamente aos princípios da simplicidade e da suficiência, visando o esclarecimento.
João Vaz Rodrigues (in “O consentimento informado para o ato médico no ordenamento jurídico português - elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente -, número 3, Centro de Direito Biomédico, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, pág. 243”) após repudiar a necessidade de o agente médico transmitir informação que abarque quaisquer consequências excecionais que possam ocorrer, salienta não serem de desprezar “as informações sobre sequelas que, embora excecionais, possam ocorrer em consequência dos meios técnicos utilizados, ou ter especial interesse para o paciente, atendendo, por exemplo, à sua profissão ou aos seus interesses.”
No mesmo sentido aponta também o prof. TEIXEIRA DE SOUSA (in “O ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica, “Direito da Saúde e Bioética, edição da AAFDL”) ao referir que “a obrigação médica envolve um dever principal – o dever de promover ou restituir a saúde ao doente, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida do doente – que é acompanhada por vários deveres acessórios, entre os quais, o de esclarecer o doente e de obter o seu consentimento, sendo que o desrespeito de qualquer destes deveres constitui o médico em responsabilidade civil.”
Como já acima deixámos referido, sendo o dever de informação um dos requisitos da licitude da atividade médica, todavia, o seu conteúdo é “elástico”, não sendo (como se escreveu no acórdão deste Tribunal de 09/10/2014) “(…) igual para todos os doentes na mesma situação. (…). “
Haverá, assim, que indagar caso a caso, se esse dever foi cumprido, pois a sua afirmação variará em função de cada situação concreta.
No que concerne ao ónus da prova do consentimento - questão que como vimos, aqui se suscita –, vem constituindo entendimento que, – como já ressalta do que se deixou exposto -, se nos afigura ser o mais atual (na sequência dos princípios que supra deixámos expressos) e dominante - e ao qual aderimos –, o mesmo recai sobre o médico ou a instituição de saúde, uma vez que o consentimento funciona como causa de exclusão da ilicitude e a adequada informação é pressuposto da sua validade, logo matéria de exceção, como facto impeditivo (nº. 2 do artº. 342º do CC).
Com efeito, como dá conta André Dias Pereira ainda que a moderna doutrina aceite “dentro de um apertado enquadramento, que o lesante se possa defender invocando a exceção de comportamento alternativo lícito” “o ónus da prova deve impender sobre quem se pretende fazer valer de um «facto impeditivo do direito invocado» (art. 342º, n.º 2, do C. Civil), ou seja, o médico. Como vimos, para o doente tratar-se-ia da prova de factos negativos (provar que não teria aceite a intervenção médico-cirúrgica, caso tivesse sido devidamente informado). Por outro lado, porque podemos considerar as normas que exigem o esclarecimento (art. 157º do Código Penal) como disposições legais de proteção e, deste modo, a doutrina entende haver uma inversão do ónus da prova (in “Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Civilísticas apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2012, págs. 435/437”, acessível emhttps://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf).
Em reforço do que afirmámos, e em idêntico sentido, permitimo-nos citar o recente acórdão deste Tribunal de 08/09/2020 (proc. 148/14.4TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), quando a dado passo afirma “(…) Compete à instituição de saúde – e/ou médico – provar que, mesmo que houvesse cumprido corretamente os seus deveres de informação, o paciente se teria comportado do mesmo modo, tomando a mesma decisão. Não deve admitir-se a invocação da figura do consentimento hipotético quando estejam em causa violações graves dos deveres de conduta da instituição de saúde – e/ou do médico –, como sucede quando aquela omite informações fundamentais ou essenciais para a autodeterminação do paciente.”
E ainda o acórdão deste mesmo Tribunal de 02/06/2015 (proc. nº. 1263/06.3TVPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) quando afirma, a dado momento, que “(…) o ónus da prova do consentimento hipotético, doutrina oriunda da jurisprudência alemã, pertence ao médico (…)”. Na mesma linha vejam-se ainda, entre outros, André Dias Pereira (“in “O consentimento informado na Relação Médico-Paciente, pág. 194”), Vera Raposo (in “Ob. cit., pág. 242 e ss.) e o Ac. do STJ de 26/11/2020 (proc. 21966/15.0T8PRT.P2.S1, disponível em www.dgsi.pt.)
A esse propósito, discorreu-se, além do mais, no acórdão recorrido nos seguintes termos. “Não estando provado que a cirurgia em causa determina sempre a necessidade de o paciente continuar a fazer uso de óculos e/ou que causa sempre os efeitos indesejados assinalados (o que torna o facto provado irrelevante porque ele se refere à certeza), pode questionar-se se cabia ao autor provar que caso fosse informado dos riscos possíveis (de haver a possibilidade de se verificar um resultado que veio a ocorrer) não teria dado o consentimento ou, ao invés, cabia aos réus demonstrar que o autor daria o seu consentimento mesmo que tivesse essa informação. Por outras palavras, a questão de saber contra quem retirar consequências de não ter ficado provado o que faria o autor se tivesse sido confrontado com os riscos possíveis da cirurgia (com a possibilidade, não a certeza de eles ocorrerem): artigos 414.º do Código de Processo Civil e 346.º do Código Civil, segunda parte. A nosso ver, o ónus da prova recai sobre os réus. São os réus que têm a necessidade de demonstrar que a afectação da integridade física do autor pelas intervenções que realizaram é, afinal, lícita por existir uma causa de exclusão da ilicitude congénita a intervenções dessa natureza (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil)11. A demonstração do consentimento serve essa finalidade, mas como para possuir tal alcance o consentimento necessita de revestir determinadas qualidades a demonstração terá de abarcar estas qualidades (ter sido precedido dos esclarecimentos e informações adequadas para a tomada de uma decisão livre e consciente). Se é suscitada a questão do consentimento hipotético, cabe ao autor do acto médico fazer a demonstração dos respectivos elementos constitutivos. Por isso, o facto provado (e a decisão de julgar não provado o outro facto) não é suficiente para excluir a ilicitude da actuação dos réus”.
A argumentação expendida pela decisão recorrida está em consonância com aquilo que se supra se deixou expresso, fazendo, a nosso ver, uma correta subsunção do direito aos factos, pelo que, não merece, a esse respeito, qualquer censura.
O recorrente subordinado não se pode prevalecer, assim, da existência de um “comportamento lícito alternativo”, uma vez que fracassou na demonstração da sua existência. Com efeito, ao contrário do que parece sugerir o recorrente, a circunstância de o autor ter sido previamente advertido, por outro médico oftalmologista, acerca dos riscos de regressão dos efeitos da cirurgia e da causação de fotofobia e de síndrome de olho seco, não permite concluir que, caso o autor tivesse sido adequadamente informado sobre os riscos que se vieram a materializar nos danos sofridos e atinentes a “blur” matinal no olho direito e halos “starbusts” e clarões perturbadores da visão noturna (cfr. ponto 89 dos factos provados), não se teria abstido de se submeter à intervenção em crise. E isto porque estes danos exorbitam, ou pelo menos parecem exorbitar, os riscos de regressão dos efeitos da cirurgia e da causação de fotofobia e de síndrome de olho seco que lhe foram comunicados.
Diga-se mesmo - embora em boa verdade não esteja diretamente aqui em causa neste recurso - que, à luz dos factos apurados, se concorda com a conclusão a que o tribunal recorrido chegou sobre a violação por parte dos RR. BB e CC do dever de informação a que estavam obrigados, ou seja, por esse dever não ter sido integral ou cabalmente respeitado/cumprido por eles, numa violação, em síntese, consubstanciada/concretizada por não terem informado/esclarecido adequada e/ou suficientemente o A. sobre todos os riscos e efeitos secundários (permanentes) que poderiam advir da intervenção cirúrgica a que o submeteram, ou mesmo sobre as técnicas alternativas existentes (vg. o Lasik personalizado ou a implantação de lente intra-ocular) ou ainda mesmo da possibilidade de não alcançar em toda a extensão a aptidão da sua visão se recurso a óculos ou lentes de contacto - cfr., nomeadamente, os pontos 38, 68 e 69 dos factos provados -, sendo certo ainda que ficou também provado (cfr. ponto 86), que caso o autor tivesse tido consciência que a intervenção cirúrgica com recurso à técnica "Lasik" não eliminaria a sua necessidade de recorrer ao uso de óculos e lentes de contacto, ou que originaria halos, "starbusts" e clarões, e dificuldades na visão nocturna sem correcção, teria decidido não submeter-se a tais intervenções médicas realizadas pelos aludidos RR. médicos. E daí que não obstante o A. ter dado o seu consentimento para tais intervenções, ele não poderá, in casu, considerar-se válido.
Não há, pois, que, no domínio dogmático da causalidade, afastar a imputação do nexo causal à conduta omissiva do aqui recorrente de prestação do dever de informação para obtenção do consentimento informado por parte autor, pelo que, e verificando-se os demais pressupostos acima referenciados da responsabilidade civil médica, improcedem os pontos 5 a 10 das suas conclusões de recurso.
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5. Quanto à 2ª. questão.
- Da exclusão da compensação/indemnização por culpa do lesado (recurso subordinado).
Prossegue o recorrente subordinado, aduzindo que a decisão recorrida fez uma inexata aplicação do artº. 570º nº. 1 do Código Civil, ao desconsiderar que o recorrido/autor não permitiu ao recorrente médico concluir o tratamento ao olho direito que foi intervencionado, concluir o tratamento a intervenção ao olho esquerdo e, bem assim, o tratamento na sua globalidade (a intervenção aos dois olhos, com eventual necessidade de retoque). A ponderação desta facticidade, em conjugação com a circunstância de a intervenção realizada pelo réu BB ter redundado numa melhoria significativa da acuidade visual do autor (expressa na redução quase total da miopia e na redução do astigmatismo) deveria ter levado o tribunal “a quo” a excluir a compensação do demandante.
Apreciemos.
A decisão recorrida, após ter considerado que sem a obtenção do consentimento do paciente, em decorrência da omissão do dever de informação, a afetação da integridade física e psíquica daquele é ilícita, constituindo um si mesmo um dano real, debruçou-se sobre a extensão de tal dano. Nesta sede, o tribunal a quo ponderou adequadamente a omissão de colaboração do recorrido-autor necessária à execução da prestação a cargo do médico, considerando ter resultado adquirido que praticamente todas as sequelas das intervenções que o autor apresenta (indicadas no ponto 88 da factualidade assente) decorrem de este não ter sido operado ao olho esquerdo, numa escolha que foi sua (sendo determinada, alegadamente, por perda de confiança no médico).
Concluiu o acórdão recorrido a este respeito: “a ponderação judiciosa da globalidade destas circunstâncias, como vimos variadas e com distintas repercussões quer ao nível da imputabilidade quer dos resultados, não justifica, a nosso ver, a exclusão da indemnização (não se justifica deixar de censurar o comportamento dos réus), mas justifica uma redução da mesma a um valor baixo por ser notório que o comportamento desconfiado do autor, de não colaboração e de rompimento com os planos programados acabou por ter forte influência no resultado produzido. Por tudo isso, afigura-se-nos que a indemnização dos danos não patrimoniais, que corresponde ao pedido da alínea b), deve ser fixada com base na equidade, mostrando-se adequado o valor de 3.500€ (três mil e quinhentos euros) por cada acto ilícito.”
Acompanhamos a posição expendida pelo tribunal recorrido (TRP). Com efeito, ainda que o autor haja contribuído causalmente para o resultado danoso, ao ter abandonado prematuramente o acompanhamento médico e ao obstaculizar a realização de intervenções que, com probabilidade, iriam neutralizar grande parte das sequelas por si sentidas (e que, em grande medida, redundam da circunstância de o olho esquerdo não ter sido sujeito a qualquer intervenção e não terem sido feitas as admitidas/previstas correções ao olho direito), tal facto não faz obnubilar a circunstância de se ter verificado por parte do recorrente subordinado uma violação do dever de informação gerador, de per se, de uma perda da liberdade de autodeterminação por banda do autor.
Assim, adquirido que se encontra que “a responsabilidade civil emergente da realização de ato médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática médica, pode radicar-se na violação do dever de informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do ato médico” (cfr. Ac. do STJ de 24/10/2019, supra citado), a subsistência dos danos por causa eventualmente imputável ao lesado ou a melhoria da acuidade visual do olho intervencionado não obliteram a circunstância de ter existido uma lesão do direito de autodeterminação do paciente (pois que a informação transmitida ao mesmo, nomeadamente sobre a os riscos que poderiam advir da intervenção e particularmente sobre as alternativas existentes à técnica utilizada na intervenção, não foi feita ou pelo menos de forma cabal e/ou adequada por forma a permitir-lhe um consentimento esclarecido), que radica no direito geral de personalidade. O que não permitirá excluir, de todo, a atribuição de uma compensação/indenização pela causação de danos não patrimoniais ao autor, nos termos do preceituado no artº. 570º nº. 1 do CC.
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6. Quanto à 3ª. questão.
- Da condenação dos réus no pagamento de todas as despesas a suportar com tratamentos médicos e cirúrgicos que futuramente possam vir a ser executados (recurso independente).
A contribuição causal do autor para a subsistência dos danos que, na sua expressão maioritária, constituem decorrências do facto de o demandante não ter sido operado ao olho esquerdo (e não ter mesmo permitido que tivessem sido feitas as admitidas/previstas correções ao olho direito) por ter abandonado o acompanhamento médico deverá, no entanto, e salvo melhor opinião, conduzir à improcedência do pedido de condenação dos réus no pagamento de todas as despesas a suportar com tratamentos médicos e cirúrgicos que futuramente possam vir a ser executados.
Com efeito, na linha do entendido pelo tribunal recorrido, crê-se que o autor omitiu a colaboração necessária à execução da prestação a cargo dos médicos, impedindo o réu BB de, através da competente reconstituição natural (artº. 566º do Cód. Civil), eliminar as consequências indesejadas da intervenção e obstando, do mesmo modo, a que o réu CC regularizasse a situação do olho direito (ainda que, neste caso, a conduta do autor possa porventura encontrar alguma justificação, nos termos da decisão recorrida, uma vez que a regularização do olho não foi alcançada após a realização de duas intervenções quando apenas uma havia sido acordada).
Recorde-se que, como sublinhado pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 07/02/2008 (proc. nº. 4598/07, disponível em www.dgsi.pt), a respeito de outra temática, “(…) III - A “culpa do lesado” não interfere com a culpa do agente, designadamente diminuindo-a, limitando a sua intervenção aos efeitos indemnizatórios da responsabilidade do lesante, actuando apenas sobre o montante a ressarcir. IV - Para que o evento deva considerar-se imputável ao lesado, não é necessário o concurso de um facto ilícito ou mesmo necessariamente culposo do lesado, censurável a título de culpa no sentido técnico-jurídico contido no art. 487.º CC, bastando que o facto (censurável/”culposo”), livre e consciente, deva ser “atribuível” a actuação do próprio lesado, em termos de auto-responsabilização (…).”
Desse modo, e independentemente do juízo a efetuar quanto à previsibilidade dos danos futuros alegados, a avaliação integrada da situação decidenda leva-nos a concluir que a conduta imputável ao autor – ainda que não culposa, em termos de dolo ou negligência - de recusa de sujeição a ulteriores intervenções cirúrgicas (com vista à resolução dos problemas e que estavam incluídos no planos inicial), sendo, de acordo com um critério de causalidade adequada, pelo menos concausal da subsistência das anomalias do olho direito deverá, nos termos do disposto no artº. 570º nº. 1 do Código Civil, repercutir-se negativamente na indemnização em causa, conduzindo à sua exclusão.
E daí que, a nosso ver, se mostre justificada a decisão do tribunal a quo de não lhe atribuir por esse eventual (pois, à luz dos factos apurados, não é certo, e nem sequer se apresenta, neste momento, como altamente previsível) dano qualquer indemnização.
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7.7. Quanto à 4ª. questão.
- Do “quantum” indemnizatório pelos danos não patrimoniais (recurso independente e recurso subordinado).
O tribunal recorrido decidiu condenar cada um dos aludidos réus médicos a pagar ao autor uma indemnização na quantia de € 3.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios legais vencidos a partir da data da prolação do acórdão (data à qual foi atualizado o montante) e até ao seu integral pagamento.
Discordando desse montante, enquanto o A., na sua essência, defende o mesmo dever elevar-se para o montante global de € 200.000,00 (a suportar em partes iguais por cada um dos aludidos RR.), já o recorrente subordinado (o R. BB) defende que não sendo (como não foi, conforme atrás ficou decidido) essa indemnização excluída, então o seu montante não deve ir além dos € 1.000,00 (por cada um dos R. médicos).
Apreciando.
Importa começar com uma nota introdutória para sublinhar que, ao contrário do afirmado pelo autor/recorrente, a circunstância de o tribunal recorrido ter liquidado o valor da indemnização em crise, não obstante a dedução de um pedido genérico ou ilíquido (o autor peticionou a condenação dos réus no pagamento de compensação pelos danos não patrimoniais, a liquidar em decisão ulterior) não configura qualquer violação a princípio do dispositivo, na vertente do princípio do pedido.
A verificar-se tal situação, estaríamos perante uma nulidade por condenação em objeto diverso do pedido (artº. 615º, nº. 1 al. e), ex vi artº. 666º, nº. 1, ambos do CPC), nulidade essa que não foi objeto de expressa alegação/invocação por parte do recorrente/independente.
De qualquer forma, apenas se justificaria, na sequência da dedução de um pedido ilíquido, a prolação de uma condenação de teor genérico, nos termos do preceituado no artº. 609º nº. 2, do CPC, caso o tribunal não dispusesse de elementos para fixar o objeto da indemnização. Ora, no caso ajuizado, o tribunal a quo entendeu já dispor dos elementos indispensáveis a quantificar, com apelo à equidade (como, aliás, não poderia deixar de ser), a indemnização por danos não patrimoniais. Daí que, não obstante a falta de oportuna liquidação incidental (artº. 358º e seguintes do CPC), a condenação proferida não tenha sido de teor genérico, mas de um conteúdo específico.
O recorrente não se insurge – compreensivelmente - contra o facto de o tribunal recorrido ter atribuído uma indemnização de valor superior ao montante a liquidar (cenário em que se poderia equacionar uma violação do princípio do pedido, por condenação em quantidade superior ao peticionado), mas contra a circunstância de a prolação de tal decisão de teor específico ter impedido “a total alegação da amplitude dos factos.”
Ora, o incidente de liquidação visa tornar líquida a obrigação em cujo cumprimento o devedor já foi condenado por prévia decisão judicial, cabendo ao credor o ónus de alegar (e provar) os factos necessários à quantificação dos danos a liquidar. No entanto, nesse incidente, e como sublinhou o acórdão deste Supremo Tribunal de 30/01/2003 (proc. nº. 02B4456, disponível em www.dgsi.pt), não é admissível ao credor “demonstrar que teve determinados prejuízos e qual o seu montante; é apenas permitido alegar e provar o montante dos prejuízos cuja existência ficou demonstrada” previamente.
No caso, o autor não poderia, como parece pretender em primeira linha, em incidente de liquidação ulterior, alegar factos novos integrantes dos danos não patrimoniais, ampliando a causa de pedir ao arrepio do disposto no artº. 265º do CPC - até porque não ficou demonstrada a existência de danos futuros -, mas tão só liquidar tais danos através da competente quantificação.
A prolação de uma sentença de condenação de teor específico, contendo-se no âmbito do pedido formulado pelo recorrente (que o mesmo acabou, como vimos, por liquidar na presente sede) não padece, assim, de qualquer vício, soçobrando, nessa medida, o pedido do autor de reenvio do processo para a primeira instância por forma a ser fixada a indemnização pelos danos não patrimoniais.
Aqui chegados, é altura de partir para a quantificação dos danos não patrimoniais sofridos pelo A. em consequência da conduta dos RR. médicos.
Em termos gerais, e como resulta do artº. 562º do CC, o objetivo da indemnização consiste em colocar o lesado na situação em que se encontraria se não fora o acontecimento produtor do dano, desde que este seja resultante desse evento em termos de causalidade adequada.
Tal resultado deve ser procurado, em primeiro lugar, pela reposição da situação tal como estava antes da produção do dano - princípio da restauração natural.
Todavia, não raras vezes essa reposição apresenta-se muito difícil ou mesmo impossível (como acontece no caso dos danos não patrimoniais), tendo lugar, então, a indemnização em dinheiro (cfr. artº. 566º, nº. 1, do CC).
É precisamente o que acontece no caso em apreço destes autos, com os danos de natureza não patrimonial que o A. invoca ter sofrido, e cujo direito de indemnização já atrás (aquando da análise da 2ª. questão) se reconheceu lhe assistir e que radicam, em primeira linha, na violação do seu direito de personalidade, e mais concretamente por lesão/ofensa do direito à autodeterminação na escolha dos cuidados de saúde, ao ter prestado um consentimento, não devidamente informado, para as sobreditas intervenções cirúrgicas que os RR. médicos levaram a efeito no seu olho direito, e, em segunda linha e por via reflexa, das quais terão resultado para si algumas sequelas físicas e espirituais (ao nível dos incómodos e abalos psicológicos), sendo assim merecedores da tutela do direito (artº. 496º, nº. 1, do CC), e cuja gravidade deve ser medida por um padrão objetivo e não à luz de fatores subjetivos.
Por sua vez, e como é sabido, o cálculo do montante da indemnização por tais danos deverá ser feito com base em critérios de equidade (artºs. 496º, nº. 4, e 494º do CC), atendendo, nomeadamente, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, devendo ser proporcional à gravidade do dano e tomando em conta na sua fixação todas as regras da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida (vide, por todos, os profs. Pires Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., revista e atualizada, págs. 473/474”, e Acs. do STJ de 17/12/2019, proc. 2224/17.2T8BRG.G1.S1, e de 17/12/2019, proc. 480/1.TBMMV.C1.S2, disponíveis in dgsi.pt).
Não podemos também olvidar que, nos termos do comando do atrás já referenciado artº. 570º, n º. 1, do CC, “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas, de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”
Importa esse propósito referir, por um lado, que, e salvo sempre o devido respeito, a forma como o A. estrutura e explana as suas alegações de recurso mais parece que funda essa sua pretensão ressarciria no erro médico/má prática de legis artis (o que, como atrás deixámos referido, por força da anterior restrição que fez do objeto do recurso, não é aqui possível agora considerar) e, por outro, o faz também tomando por base factos (vg. quanto à sua atual situação clínica ou estado de saúde) que não constam da matéria de facto apurada (dado como assente).
Posto isto, avancemos.
O tribunal recorrido fundamentou, na sua essência, o montante de indemnizatório (de € 3.500,00, imposto a cada um dos RR. médicos) que decidiu atribuir ao A. pelos danos não patrimoniais sofridos, nos seguintes termos:
« (…) No caso existem fatores imputáveis ao próprio autor que dificultam o apuramento do dano indemnizável ou a determinação da medida em que o mesmo é indemnizável. Com efeito, resultou provado que o autor abandonou o acompanhamento que vinha sendo feito pelo réu BB após a realização da cirurgia e o aparecimento da visão enevoada, não permitindo, alegadamente por perda de confiança, que este réu realizasse qualquer intervenção no sentido de concluir a cirurgia programada e/ou corrigir ou eliminar aquela consequência, desconhecendo-se se a mesma era possível e que resultados produziria, sendo certo que o autor havia sido informado por aquele médico da possibilidade de ser necessária uma correção do trabalho realizado.
Também os atos médicos que o réu CC se propôs executar não foram concluídos porque o autor, após a segunda intervenção realizada por este, continuou a não sentir melhorias na visão do seu olho direito e recusou submeter-se à nova intervenção proposta por aquele médico abandonou o tratamento a que estava a ser sujeito. As situações não são exatamente iguais. No primeiro caso, o autor não permitiu sequer ao médico que realizasse qualquer nova intervenção, apesar de estar informado que a cirurgia podia não produzir a totalidade dos seus efeitos na primeira intervenção e carecer de uma segunda para completar, concluir ou retificar o resultado da primeira (dar um «retoque»). No segundo caso, o autor ainda permitiu uma segunda intervenção, sendo certo que já a primeira tinha o objetivo específico de corrigir os resultados da cirurgia realizada pelo médico anterior. Embora se desconheça se o primeiro médico podia alcançar resultados melhores do que conseguiu o segundo (aparentemente poucos ou nenhuns) a verdade é que o autor tinha contratado com ele a execução da cirurgia para correção da miopia, pelo que devia permitir que ele executasse a totalidade dos atos necessários à realização do objeto contratado. Não o tendo feito e omitindo a colaboração necessária à execução da prestação a cargo do médico, não apenas entrou ele mesmo em incumprimento do contrato celebrado como impediu o médico de alcançar o resultado da eliminação das consequências indesejadas da intervenção, sendo certo que mesmo no âmbito do dever de indemnização a regra é a da restauração natural pelo que cabe ao devedor o direito de a procurar alcançar para se desonerar da obrigação alternativa da indemnização pecuniária (artigo 566.º do Código Civil) (…). Dessa relação escapam uma sequela que não difere muito da situação preexistente, a acuidade visual, e outra que não interfere com a visão, o surgimento de células epiteliais. Escapa ainda uma última sequela que se relaciona efetivamente com as queixas que o autor sempre apresentou – o astigmatismo que provoca a visão embaçada ou enevoada e a hipersensibilidade do olho à luz – mas que é igualmente superável com o uso de óculos e, sobretudo, constituí um risco de que o autor tinha sido informado pela outra médica oftalmologista que consultara antes dos réus. Por fim, deve ter-se em consideração que estas situações levaram o autor a ter necessidade de introduzir mudanças no seu espaço familiar e de trabalho e a reduzir o trabalho e a condução no período noturno (90), e causaram-lhe angústia, desconforto com a sua visão, revolta, ansiedade e depressão, levando-o a procurar auxílio médico e medicamentoso (91).
Ora, dispõe o artº. 570º, nº. 1, do Código Civil que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas, de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”
A ponderação judiciosa da globalidade destas circunstâncias, como vimos variadas e com distintas repercussões quer ao nível da imputabilidade quer dos resultados, não justifica, a nosso ver, a exclusão da indemnização (não se justifica deixar de censurar o comportamento dos réus), mas justifica uma redução da mesma a um valor baixo por ser notório que o comportamento desconfiado do autor, de não colaboração e de rompimento com os planos programados acabou por ter forte influência no resultado produzido. Por tudo isso, afigura-se-nos que a indemnização dos danos não patrimoniais, que corresponde ao pedido da alínea b), deve ser fixada com base na equidade, mostrando-se adequado o valor de 3.500€ (três mil e quinhentos euros) por cada acto ilícito.”
Perante a matéria factual apurada, e na conjugação entre si, e tendo em conta as considerações de cariz teórico-técnico que supra deixámos expendidas, somos levados a dizer que, na sua essência, nos revemos na referida fundamentação que suportou quer a atribuição da indemnização ao A. pelos danos não patrimoniais sofridos, quer a redução do seu montante.
Na verdade, não podemos desconsiderar a contribuição do autor, ao abandonar o acompanhamento médico, para a subsistência dos danos, em conjugação com o facto de praticamente todas as “anomalias” decorrerem da circunstância de o autor não ter sido operado ao olho esquerdo, bem com o caráter não irreversível de tais anomalias, superáveis através do uso de uma lente de contacto ou cirurgia, e de o autor mesmo assim, e tal como se nos afigura resultar da matéria factual apurada, ter beneficiado, pelo menos ao nível do olho direito intervencionado, de uma melhoria significativa da sua acuidade visual, quando comparada com a acuidade visual prévia ao tratamento, expressa na redução bastante acentuada da miopia e do astigmatismo.
E daí que, se justifique, à luz do citado artº. 570º, nº. 1, do CC, uma redução do montante da indemnização.
Não podemos, todavia, desconsiderar o grau de lesão/ofensa que o A. sofreu no seu direito à autodeterminação na escolha dos cuidados de saúde, ao ter prestado um consentimento, não devidamente informado, para as aludidas intervenções cirúrgicas (e às quais não se teria submetido se tivesse sido devidamente informado/esclarecido), bem como as sequelas físicas e espirituais (ao nível dos incómodos e abalos psicológicos) com que atualmente ainda se depara (embora, enfatize-se, sendo todas elas reversíveis e para as quais contribuiu com o seu sobredito comportamento).
Igualmente não poderemos desconsiderar as atividades profissionais que as referidas partes há muito exercem (advocacia e especialistas de medicina), indiciadoras (pois da matéria factual apurada nada resulta em contrário), de acordo as regras da experiência comum de vida, de disporem de boa situação económica, e bem como o (longo) tempo já decorrido sobre a data da ocorrência dos acontecimentos aqui em apreciação.
Por fim, não poderemos ainda deixar de considerar a dignidade que deve estar associada nos tempos hodiernos aos montantes indemnizatórios.
Assim, num juízo ponderação global de tais circunstâncias e da equidade, afigura-se-nos como ajustado fixar o montante compensatório de tais danos não patrimoniais sofridos pelo autor na quantia global de € 20.000,00 (vinte mil euros), a suportar em partes iguais por cada um dos referidos RR. médicos (pois não vislumbramos, no caso, razões para os diferenciar nessa obrigação), assim, se elevando a quantia indemnizatória arbitrada pelo tribunal a quo, e nessa medida se revogando o seu acórdão sobre o decidido em tal questão.
Quantia essa atualizada à presente data, a qual deverão acrescer os correspondentes juros de mora, à taxa civil em vigor, e até ao seu integral pagamento.
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- Da condenação dos réus na devolução das quantias pagas (recurso independente).
Pretende o autor/recorrente a condenação dos réus na devolução das quantias por si pagas pelas intervenções médicas levas a cabo.
A decisão recorrida considerou que a restrição do objeto da apelação “determina que o julgamento que aqui cabe não possa ter como fundamento a causa de pedir baseada nos contratos celebrados com os médicos e a sua resolução por incumprimento das respectivas obrigações, mas apenas a indemnização dos danos resultantes de um ilícito civil com fundamento no artigo 483.º do Código Civil, o que remete para os danos que têm como causa adequada o facto ilícito, não para a destruição do contrato e do respectivo sinalagma decorrente da respectiva nulidade ou resolução não arguidas na acção.”
A violação do dever de informação por parte dos réus médicos – cuja apreciação, de forma cristalina, integrou o objeto do recurso de apelação – configura um caso de concurso de responsabilidade civil contratual (cumprimento defeituoso de um contrato de prestação de serviços médico-paciente) e de responsabilidade civil extracontratual, fundada na violação dos direitos subjetivos do autor à integridade física e moral, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação (artºs. 25º/1 e 26º/1, da Constituição e 70º/1 do Código Civil) (Para além do que já supra deixámos referenciado a esse respeito, cfr. o já acima citado Ac. do STJ de 02/06/2015). Estamos, assim, no campo da relevância da lesão de direitos absolutos no decurso do cumprimento de uma obrigação contratual de prestação de serviços médicos.
Ora, também como já ressalta do que acima se deixou referenciado a esse respeito (citando-se a esse propósito o Ac. do STJ de 22/03/2018, proc. 7053/12.7TBVG.P1.S1), como fez notar o acórdão deste Supremo Tribunal de 28/01/2016 (proc. nº. 136/12.5TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), verificando-se uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, “A orientação da jurisprudência deste Supremo Tribunal (…), é no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.” (cfr. nesse sentido ainda os ali citados Acs. do STJ de 01/10/2015, proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, de 02/06/2015, proc. 1263/06.3TVPRT.P1.S1, de 11/062013, proc. nº. 544/10.6TBSTS.P1.S1, de 15/12/2011, proc. nº. 209/06.3TVPRT.P1.S1, de 15/09 de 2011, proc. nº 674/2001.P1.S1, e de 17/12/2009, proc. nº. 544/09.9YFLSB, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Nessa mesma linha, o acórdão deste Supremo de 02/11/2017 (proc. nº. 23592/11.4T2SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt) sublinhou que o dever de esclarecimento e de informação resulta, simultaneamente, da lei e do contrato, “como dever acessório do dever principal”. Alguns autores, de entre os quais se salienta Nuno Pinto Oliveira, vão ainda mais longe aduzindo que “a qualificação do dever de esclarecimento e/ou de informação como um dever acessório de conduta ou dever lateral sugere, de uma forma explícita ou implícita, que o consentimento, o esclarecimento e a informação não são importantes — ou, pelo menos, que consentimento, esclarecimento e informação não são tão importantes como o tratamento”, concluindo depois que “como os bens jurídicos da autonomia, da saúde e da vida devem ter igual dignidade ou igual valor, o acto médico deve representar-se como um processo em que o consentimento e o tratamento são co-essenciais.” (“Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica”, Materiais para o Direito da Saúde, Centro de Direito Biomédico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 51, acessívelemhttps://www.uc.pt/fduc/ij/publicacoes/pdfs/imateriais/Imateriais_1.pdf”).
Ora, sendo assim, e enquadrando a responsabilidade dos réus médicos no domínio da responsabilidade civil contratual, há que não desconsiderar que as quantias que o recorrente reclama correspondem, não a uma indemnização por danos patrimoniais advenientes do cumprimento defeituoso do contrato por violação do dever de informação, mas à restituição do preço pago pelas intervenções cirúrgicas realizadas – sendo que a “destruição” do contrato, através da sua resolução, não foi, efetivamente, objeto do recurso de apelação, encontrando-se, por isso, precludida a sua apreciação na presente sede.
Pelo que a decisão proferida a este respeito deverá, assim, ser mantida, soçobrando a pretensão do recorrente-autor.
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- Da responsabilidade da ré HPP/Lusíadas SA. (recurso subordinado).
Pretende, finalmente, o recorrente subordinado a condenação da ré HPP Norte (agora Lusíadas S.A.), com fundamento no disposto no artº 500.º do Código Civil, alegando para o efeito que os atos médicos sob escrutínio foram praticados no âmbito de uma relação de comissão estabelecida com aquela sociedade por força do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes.
Esta pretensão vai, aliás, de encontro ao peticionado pelo recorrente-autor, que igualmente pretende a responsabilização desta instituição de saúde privada, ainda que não tenha autonomizado tal ponto nas alegações de recurso apresentadas.
A ré LUSÍADAS, SA., (antes HPP) pugna pela improcedência da pretensão vertente, aduzindo, em síntese, que o objeto do recurso perante o Tribunal da Relação do Porto foi delimitado às consequências da falta de consentimento informado por parte do recorrente, tendo o julgamento desta instância se pronunciado apenas sobre o “quantum” indemnizatório dos danos resultantes de um ilícito civil com fundamento no artigo 483º do Código Civil.
O tribunal recorrido negou tal pretensão, apreciando a questão nos seguintes termos fundamentadores: “Estão igualmente demandadas sociedades comerciais em cujas instalações decorreram os actos médicos contratados com os médicos. Sucede que em virtude da delimitação do objecto do recurso, esta Relação apenas pode apreciar a causa de pedir fundada no instituto da responsabilidade civil, no preenchimento dos pressupostos do artigo 483.º do Código Civil, nas consequências da prática de um acto lícito pelos médicos com os quais o autor contratou a prática dos actos médicos em cuja execução se verificou aquela ilicitude.
Nesse contexto, a matéria de facto provada é insuficiente para condenar aquelas sociedades no pagamento da indemnização. Na verdade, não tendo sido elas as autoras do acto ilícito e cabendo a responsabilidade em regra ao autor e apenas a terceiros nos casos excepcionais em que a lei o prevê, não basta para as responsabilizar o ter-se demonstrado que os médicos prestavam colaboração a essas sociedades (factos dos pontos 20 e 22) e/ou que os actos foram praticados em instalações clínicas ou hospitalares pertencentes às sociedades.
Era sempre necessário algo mais, designadamente a demonstração da existência da situação de pluralidade de autores, instigadores ou auxiliares (artigo 490.º do Código Civil) ou de uma relação de comissão entre as sociedades e os médicos (artigo 500.º do Código Civil). Refira-se que foi o próprio autor a alegar o desconhecimento na natureza da relação entre os médicos e as referidas sociedades ao abrigo da qual eles exerciam a medicina em instalações destas, razão pela qual não foi sequer alegado um fundamento para imputar às referidas sociedades a responsabilidade perante terceiros por actos ilícitos cometidos na prática clínica dos médicos.”
Vejamos os contornos da relação estabelecida entre o autor e a recorrida HPP – Norte (agora Lusíadas, SA.).
O enquadramento jurídico a aplicar à questão vertente não converge inteiramente com argumentação jurídica empreendida pela decisão recorrida (embora, avance-se desde já, resultado final seja idêntico).
Em primeiro lugar, cumpre realçar que a circunscrição do objeto do recurso à violação do dever de informação por parte do réu médico não obsta a que se analise a responsabilidade da clínica pelos danos decorrentes, precisamente, dessa violação.
Em segundo lugar, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que essa responsabilidade deve ser aferida, não à luz do preceituado no artº. 500º do Código Civil, mas por referência ao regime estatuído no artº. 800º, nº. 1, desse diploma, e que disciplina a responsabilidade por facto de outrem no domínio contratual.
Vejamos.
In casu ficou demonstrado que as sucessivas consultas do autor com o réu BB – profissional que lhe foi indicado como responsável pelo tratamento (ponto 30 dos factos provados) - tiveram lugar nas instalações da clínica recorrida, onde o recorrente subordinado prestava colaboração como especialista em oftalmologia. Provado ficou, ainda, ter sido naquelas instalações que o autor foi submetido à intervenção com recurso à técnica Lasik, tendo sido nas mesmas que efetuou o respetivo pagamento (pontos 42 e 44 da matéria de facto provada). Assente ficou, no entanto, que todos os contactos do autor com vista à prestação dos serviços referidos tiveram lugar diretamente com o réu médico, nunca tendo o autor contactado com qualquer responsável social da então HPP – Norte, S.A. (ponto 43 dos factos provados).
A facticidade em crise poder-nos-ia conduzir para a existência, não de um “contrato total” (sobre esta modalidade, cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal de 23/03/2017, proc. nº. 296/07.7TBMCN.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) mas de uma modalidade de contrato que a doutrina denomina como “contrato dividido”, em que a clínica/hospital assume, em regra, as obrigações decorrentes da realização da operação (locação de equipamentos, fornecimento de medicação, não tendo existido internamento “in casu”), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos). Segundo ainda o entendimento plasmado nesse citado acórdão “I- No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC. II- Porém, o médico poderá também responder perante o paciente a título de responsabilidade civil extracontratual concomitante ou, eventualmente, no âmbito de alguma obrigação negocial que tenha assumido com aquele.”
Em tais casos, e conforme discorre André Dias Pereira, “a responsabilidade da clínica e do médico assistente é dividida nos exatos termos acordados no contrato, isto é, a clínica responde pelas prestações genéricas de assistência hospitalar: preparação das instalações e equipamentos, contratação e disponibilização de assistentes e ajudantes da equipa médica (excluindo aqueles que o médico escolher pessoalmente), prestação de medicamentos, comida e instalações hoteleiras. O titular da clínica responde, pois, pelos comportamentos dos seus órgãos, representantes e auxiliares (art. 800.º). O médico contratado, por seu turno, responde pelas prestações de natureza médica e terapêutica, pelo seu próprio incumprimento (art. 798.º) e os dos seus auxiliares (art. 800.º).
Em suma, a clínica tem, nestes casos, a possibilidade de reclamar a ilegitimidade numa lide de responsabilidade médica, ou, pelo menos, de não ser responsabilizada (solidariamente) pelos danos decorrentes de um erro médico (in “Ob. cit., pág. 600”, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf”).”
Flui, pois, do exposto que ante o programa contratual vigente entre as partes, a recorrida HPP/Lusíadas, S.A., não deverá ser responsabilizada pelos danos decorrentes da violação, por parte do réu BB, do dever de informação, enquanto cumprimento defeituoso da prestação de natureza médica, sendo certo ainda a manifesta insuficiência da matéria factual apurada no sentido de permitir caracterizar (com um mínimo de segurança/certeza) a relação contratual estabelecida, a tal propósito, entre as duas partes.
Diga-se, aliás, que idêntico raciocínio é de fazer, com resultado final semelhante, no que concerne à relação entre os RR. CC e a Clínica Oftalmológica Ribeiro-Barraquer, SA., .
É assim de manter, ainda que fazendo apelo a fundamentação não coincidente, a decisão recorrida neste particular.
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III - Decisão
Assim, perante o exposto, acorda-se em:
1) Julgar totalmente improcedente o recurso subordinado do R. BB.
2) Conceder parcial procedência ao recurso (de revista) independente e condenar cada um dos réus, BB e CC, a pagar ao autor, AA, a quantia indemnizatória, a título de danos não patrimoniais, de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, vencidos a contar da presente data e até ao seu integral pagamento, alterando-se nessa medida o acórdão recorrido.
3) Manter, quanto ao demais, o decidido no acórdão recorrido.
Custas da ação pelo A. e por cada um dos sobreditos RR., na proporção do seu respetivo decaimento, e que para o efeito se fixa em 4/5 para o primeiro e 1/5 para os segundos.
Custas do recurso subordinado pelo R. BB.
Custas do recurso independente pelo A. e pelos RR. BB e CC na proporção do seu decaimento, e que para o efeito se fixa em 4/5 para o primeiro e 1/5 para os segundos (artº. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário:
I - A ação de responsabilidade civil por atos médicos pode fundar-se no erro médico e/ou na violação do consentimento informado.
II - Na 1ª. situação visa-se, essencialmente, tutelar a saúde e a vida do paciente, enquanto que na 2ª. situação de causa de pedir o bem jurídico tutelado é o direito do paciente à autodeterminação na escolha dos cuidados de saúde.
III - Tanto o dever de informação (a que está vinculado o médico, e que constitui um dos requisitos da licitude sua atividade) como o consentimento do paciente para prática do ato médico (que deve se livre e esclarecido, tendo por base essa informação que lhe é transmitida, sob pena da sua invalidade, salvo naquelas situações excecionais de urgência, em que estando perigosamente em causa a sua vida/saúde, o mesmo não possa ser obtido em tempo útil e se deverá então presumir) são de conteúdo elástico, devendo ser aferidos à luz das especificidades de cada caso concreto.
IV - Funcionando o consentimento como causa de exclusão da ilicitude da sua atuação, é sobre o médico que impende o ónus de prova do consentimento (livre e esclarecido) prestado pelo paciente.
V - Em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios, embora em casos muito particulares ou específicos possa transformar-se numa obrigação de resultado.
VI - Em ação de responsabilidade civil médica em que a causa de pedir radica na violação do consentimento informado, o cálculo do montante indemnizatório por danos não patrimoniais deverá ser feito com base em critérios de equidade, atendendo, nomeadamente, ao grau de culpabilidade/censurabilidade do responsável médico e bem como do próprio lesado na situação geradora desses danos, à gravidade e dimensão desses mesmos danos e à própria situação económica quer do lesante, quer do lesado.
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Lisboa, 2021/12/14
Relator: cons. Isaías Pádua
Adjuntos:
Cons. Nuno Ataíde das Neves
Cons. Maria Clara Sottomayor (Voto vencida, de acordo com declaração que junto)
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Segue-se a declaração de voto da exma. sra. conselheira Clara Sotto Mayor (2ª. adjunta):
Revista n.º 711/10.2TVPRT.P1.S1
Declaração de voto
Teria revogado o acórdão recorrido e arbitrado, em face da factualidade provada, valores mais elevados de montante indemnizatório ao autor, correspondentes à totalidade dos danos por si sofridos, por entender que no caso concreto não é aplicável a norma do artigo 570.º do Código Civil, como fundamento da exclusão ou da redução da indemnização.
O relevo da culpa do lesado traduz um princípio geral da teoria da responsabilidade civil. Todavia, a sua aplicabilidade aos casos de responsabilidade médica, em que o paciente ocupa o lugar central e merece maior proteção pela sua vulnerabilidade, deve ser feita, tendo em conta a especificidade da relação-médico doente e o papel que a confiança no médico representa para o paciente.
Nos casos em que a responsabilidade médica decorre do incumprimento do dever de informação pelo médico, como no caso dos autos, penso que não pode sequer falar-se em culpa do lesado, por três motivos: 1) O tratamento que o lesado rejeitou (retoque no olho direito e operação no olho esquerdo) era precisamente a correção de um tratamento já iniciado no olho direito e que lhe tinha causado lesões (factos provados n.ºs 47, 49, 51 e 102); 2) Em relação a esse tratamento, provou-se que os médicos não informaram o paciente de todos os riscos e efeitos secundários, nem da existência de outras técnicas alternativas (factos provados n.º 38, 68, 69 e 87); 3) provou-se ainda que o paciente não teria decidido operar-se aos olhos se soubesse dos riscos da intervenção (facto provado n.º 86).
Considero, portanto, que o comportamento do autor de recusar a operação ao olho direito para correção das deficiências provocadas pela primeira intervenção (bem como de recusar operar o olho esquerdo) não consistiu num comportamento censurável do lesado, mas numa medida de autoproteção e de prudência natural da parte de quem valoriza o seu corpo, in casu, os seus olhos, e tem, compreensivelmente, medo de os perder. Esta vulnerabilidade de um paciente em relação a um órgão vital como os olhos não pode ser censurada nem valorada como recusa em colaborar com um programa de tratamento. Censurável poderá ser, por exemplo, a recusa em tomar uma medicação ou a adoção de comportamentos expressamente desaconselhados pelo médico, ou proibidos, o que não foi o caso. O que ficou provado foi que o autor decidiu realizar a operação a um olho de cada vez e proceder à operação do olho esquerdo só depois de assegurar que o olho direito estava bem e disso informou o médico, o que este aceitou (factos provados 49 a 52). Provou-se ainda que o autor não se teria sujeitado à operação aos olhos com a técnica Lasik se soubesse os riscos que corria (facto provado n.º 86). Neste quadro fáctico, mesmo tendo em conta os factos n.º 37 e 94, penso não poder imputar-se qualquer censurabilidade à conduta do autor que justifique redução ou exclusão da indemnização à luz do artigo 570.º.
Em relação ao segundo médico consultado, menos ainda se poderá falar de qualquer culpa do lesado, uma vez que este sujeitou-se a duas intervenções para corrigir o olho direito (factos provados n.ºs 71 e 75), sem sucesso (tendo ainda, após essas intervenções corretivas piorado a qualidade da sua visão – facto n.º 77), não sendo, de todo, exigível, que se sujeitasse a mais tratamentos, ou que arriscasse operar o olho esquerdo.
O paciente é dono do seu corpo e por isso mesmo deve ser esclarecido sobre as alternativas terapêuticas e sobre o balanço custo-benefício destas, para que fique plenamente ciente dos riscos que acarreta e das obrigações de colaboração que lhe incumbem. Ora, se os médicos em causa não inteiraram o paciente de todos os riscos e efeitos secundários inerentes às intervenções terapêuticas, como se provou, também não é exigível ao paciente que colabore com o médico quando se verifica um desses riscos com o qual não contava por não ter sido informado. Tanto mais que o médico BB nem sequer respondeu à carta que o autor lhe dirigiu a pedir esclarecimentos sobre os problemas do seu olho direito após a operação e procedimentos a seguir (facto provado n.º 57). Não se pode olvidar que o elemento confiança é o cerne da relação médico-paciente e nestas situações não se pode censurar o paciente por perder a confiança no médico e rejeitar a continuação de um tratamento sobre cujos riscos não foi devidamente informado. A relação médico-paciente, apesar de ser uma relação contratual, obedece a uma lógica muito distinta de outros contratos, e o paciente, que recusa, neste contexto, e em relação a um órgão vital, a correção da prestação deficiente, não pode ser censurado como seria qualquer outro credor que recusasse uma prestação de facto. A perda da confiança no médico é, pois, um motivo legítimo para recusar colaborar na continuação de um tratamento que já deixou sequelas no corpo do paciente (factos n.º 47 e 88) e em relação ao qual o médico continuou sem cumprir os seus deveres de informação.
Mesmo nos casos em que seja aplicável o artigo 570.º do Código Civil (culpa do lesado), parece-me ser a exclusão da indemnização uma solução apenas adequada para casos de negligência grave do paciente, devendo, em regra, optar-se por soluções equitativas de repartição de responsabilidades entre o paciente e o médico. A esta luz, afigura-se-me também, que, no caso dos autos, surge como desproporcionada a exclusão da indemnização por todas as despesas que o autor venha a suportar com tratamentos médicos e cirúrgicos que futuramente possam vir a ser executados.
Maria Clara Sottomayor
Fonte:"https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/711-2021-188364875"
2 – Secção
Ato Medico
Consentimento Informado
Dever de esclarecimento
REVISTA
NEGADA A REVISTA
09/10/2014
DIREITO BIOMÉDICO - DIREITO DA MEDICINA / ACTO MÉDICO / ATO MÉDICO / CONSENTIMENTO INFORMADO / RESPONSABILIDADE MÉDICA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
- Álvaro Rodrigues, A Responsabilidade Médica em Direito Penal, pp. 41, 346.
- André Pereira, O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica, in Responsabilidade Civil dos Médicos, Centro Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 11, pp. 457, 478.
- Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, p. 399 in fine.
- Guilherme de Oliveira, RLJ n.º 3923, p.34 e seguintes.
- José Lago, “Consientemiento Informado y Responsabilidade Civil”, na revista Julgar, Número Especial, 2014, 163.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, I, Tomo I, p. 429.
- Rute Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico Reflexões Sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, in Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 15, pp. 79, 440.
- Sérgio Deodato, Direito da Saúde, p.42.
“CÓDIGO DEONTOLÓGICO” DA ORDEM DOS MÉDICOS (PUBLICADO COMO “REGULAMENTO” NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 2.ª SÉRIE, DE 13.1.2009): - ARTIGOS 44.º, N.º1 E 45.º, N.º1.
BASE XIV DA LEI DE BASES DA SAÚDE (N.º 48/99, DE 24.8, ALTERADA PELA LEI N.º 27/2002DE 8.11).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, N.º1, 376.º, N.º2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 156.º, 157.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, 25.º,
N.º1 E 27.º, N.º1.
DECRETO-LEI N.º 446/85, DE 25.10: - ARTIGO 1.º.
CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA: - ARTIGO 3.º.
- ARTIGO 5.º. DA CONVENÇÃO PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DA DIGNIDADE DO SER HUMANO FACE ÀS APLICAÇÕES DA BIOLOGIA E DA MEDICINA: CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DO HOMEM E A BIOMEDICINA, VULGARMENTE CONHECIDA POR “CONVENÇÃO DE OVIEDO” OU “CDHBIO”, DE 4.4.1997, RATIFICADA PELO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA N.º1/2001, DE 3.1 E PELA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA N.º1/2001, DA MESMA DATA.
- CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 8.º
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23.11.2005, PROCESSO N.º 5B3318, EM WWW.DGSI.PT.
-DE 10.5.2007, PROCESSO N.º 07B841, EM WWW.DGSI.PT.
-DE 18.3.2010, PROCESSO N.º 301/06.4TVPRT.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT.
JURISPRUDÊNCIA DO TEDH:
-DE 7.10.2008, BOGUMI CONTRA PORTUGAL, NO SÍTIO DO PRÓPRIO TRIBUNAL.
JURISPRUDÊNCIA ALEMÃ:
-ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ALEMÃO, DE 22.12.2010 3STR 239/10,COM ACESSO NA INTERNET “BUNDESGERICHTSHOF.DE”, DEPOIS, “ENTSCHEIDUNGEN” E, DEPOIS, A DATA.
JURISPRUDÊNCIA FRANCESA:
ACÓRDÃO DA COUR DE CASSATION, DE 7.10.1998
1 . Com ressalvas que aqui não importam, o doente tem direito a ser informado, pelo médico, em ordem a poder decidir sobre se determinado ato médico que o vise deve ou não ser levado a cabo.
2 . Tal direito é disponível.
3 . O conteúdo do dever de informação é elástico, não sendo, nomeadamente, igual para todos os doentes na mesma situação.
4 . Abrange, salvo ressalvas que aqui também não interessam e além do mais, o diagnóstico e as consequências do tratamento.
5 . Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo e aos seus riscos.
6 . Não se exigindo, todavia, uma referência à situação médica em detalhe.
7 . Nem a referência aos riscos de verificação excecional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento.
8 . A referência num documento, assinado por médico e doente, a que aquele “explicou” a este, “de forma adequada e inteligível”, entre outras coisas, “os riscos e complicações duma cirurgia” não permite ajuizar da adequação e inteligibilidade e, bem assim, dos riscos concretamente indicados, pelo que é manifestamente insuficiente.
9 . Mas, se do mesmo documento consta que o doente não deve hesitar “em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido”, deve entender-se que este abdicou do seu direito a ser informado em termos detalhados.
10 . Para ser aplicável o regime de ónus de prova das cláusulas contratuais gerais, o que dele pretende beneficiar tem, antes, de fazer prova de que estamos em terreno próprio destas.
11 . Não tendo feito tal prova, sobre o doente, subscritor de tal documento, impende a demonstração de que assinou em branco e de que nada do que ali consta lhe foi referido
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 . AA instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:
A Companhia de Seguros BB, S.A., Hospitais Privados de Portugal – HPP CC, S.A. e DD.
Alegou, em síntese, que:
Após ter sofrido ferida lácero–contusa com lesão dos nervos colaterais do polegar, veio a ser tratado clinicamente por ordem, conta e sob a responsabilidade da 1.ª Ré, no hospital demandado, onde lhe foi diagnosticada uma lesão de axonotmesis parcial do ramo tenar do nervo mediano esquerdo, com incapacidade e abdução do polegar, embora com perfeita mobilidade da mão, pulso, cotovelo e ombro; Numa das múltiplas consultas de ortopedia efetuadas no referido hospital, o Dr. EE, médico contratado e ao serviço da 2.ª Ré, informou-o de que essa lesão só seria atenuada ou curada com uma intervenção cirúrgica;
A que acabou por ser submetido por decisão do respectivo corpo clínico;
Não lhe explicaram o tipo de intervenção a que iriam proceder, as probabilidades de sucesso e graus de risco inerentes ao ato operatório.
Após essa intervenção, constituída por uma oponentoplastia/transferência do extensor radial do carpo, realizada pelo 3.º R., no HPP, ficou a padecer de limitação da mobilidade do dedo polegar, na flexão e extensão do cotovelo com limitação da supinação, retração isquémica de Volkmann relativamente à mão esquerda, contractura na flexão do punho, rigidez de todos os dedos da mão esquerda, com impossibilidade de usar essa mão, bem como rigidez do ombro esquerdo e incapacidade total para posicionar a mão esquerda no espaço e de com ela comunicar gestualmente.
Sequelas essas que, se soubesse que lhe podiam advir, o teriam levado a rejeitar tal intervenção.
As mencionadas sequelas ficaram-se a dever à culpa exclusiva e grave do 3.º R., dado ter atuado, quer na avaliação prévia do ato operatório, quer durante a cirurgia, com imperícia, negligência, inconsideração e descuido, não aplicando a técnica adequada ao caso do A.
No âmbito de acidente de trabalho, pelas sequelas mencionadas, foi-lhe fixado um coeficiente global de incapacidade de 50% para a sua profissão habitual de marceneiro, tendo a 1.ª Ré sido condenada, no respectivo processo, no pagamento dos montantes que especifica, sem que, no entanto, apesar de insistentemente procurar trabalho o tenha conseguido, apesar de não ter sido dado como incapaz para toda e qualquer outra profissão.
É, assim, dos RR. a responsabilidade por se encontrar nessa situação de desemprego, bem como a responsabilidade por todos os danos não patrimoniais que diz ter sofrido e para cuja indemnização reclama quantia nunca inferior a 50.000,00€.
Pediu, em conformidade:
A condenação solidária destes a pagarem-lhe € 59.672,00€, acrescidos de juros à taxa legal anual de 4%, desde a citação até integral pagamento, bem como a quantia mensal de € 403,00, atualizável anualmente pelo salário mínimo nacional, desde Outubro de 2007, inclusive, até que consiga emprego, e, ainda, por cada doze meses em situação de desemprego, uma prestação igual de subsídio de férias e outra de subsídio de Natal.
2 . Em contestação, a 2.ª e 3.º RR, referiram, no essencial, que:
O médico que procedeu ao ato cirúrgico não foi o 3.º R., mas sim o Dr. EE;
O A. consentiu expressamente que fosse realizada a oponentoplastia a que se submeteu, com prévia informação dos diagnósticos, intervenções e riscos associados.
A referida oponentoplastia é um procedimento adequado à recuperação da mão para o caso do A. e a opção imposta pelo saber médico mais atualizado para a obtenção do resultado pretendido, isto é, a oponência do polegar, sem que ocorresse qualquer contra indicação que a desaconselhasse, tendo a mesma decorrido de forma tecnicamente escrupulosa.
O A. sofreu fratura do colo do úmero esquerdo no decurso do período de reabilitação, fulcral para a sua recuperação.
Não foi, pois, a cirurgia que provocou as sequelas de natureza mecânica descritas, só se explicando a alegada falta de mobilidade por uma recuperação deficiente ou outras circunstâncias alheias à atuação da responsabilidade dos RR.
E concluíram, defendendo a sua absolvição do pedido.
3 . A contestação da 1.ª Ré, declarada intempestiva, foi desentranhada.
4 . O A., em réplica, manteve a sua tese sobre a falta de consentimento livre e esclarecido e alegou a inexistência de qualquer relação entre a fratura do colo do úmero que sofreu e as sequelas de que ficou a padecer, pedindo, ainda, a não admissão, como prova, das fotografias e filmagens efetuadas, por as mesmas terem sido colhidas sem a sua autorização.
5 . Deduziu incidente de intervenção principal provocada contra EE que, admitido, determinou a respectiva citação para a causa, na sequência do que veio aos autos declarar a sua adesão à defesa apresentada pelos 2.ª e 3.º RR.
6 . Foi proferido despacho a autorizar a prova colhida por fotografias e filmagem.
7 . Após despacho saneador, foi realizada perícia médica, com prévia fixação do respectivo objeto, a propósito do que os 2.ª e 3.º RR. vieram interpor recurso, por ter sido desatendida uma pretensão sua referente à determinação desse objeto, já que entendiam que ele era mais amplo do que aquele sobre que versou a perícia realizada.
8 . Tal recurso foi admitido como de agravo, com subida diferida.
9 . A ação prosseguiu e, na devida oportunidade, foi proferida sentença que absolveu e interveniente do pedido.A 1ª ré foi absolvida por a sua responsabilidade, fundada no contrato de seguro de acidentes de trabalho, já ter sido fixada na ação de acidente de trabalho, nenhuma outra lhe podendo agora ser aditada; Os demais RR e interveniente, por falência da demonstração dos pressupostos de responsabilidade civil, quer o referente ao nexo de causalidade entre o ato médico a que o A. foi sujeito e as sequelas que apresenta, quer por ter sido ilidida a presunção de culpa (em sede de responsabilidade contratual) que se considerou que impendia sobre os restantes demandados.
10 . Desta sentença – que implicou a subida do agravo – apelou o autor. Mas sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto julgou:
Prejudicado o conhecimento do agravo;
Improcedente a apelação.
Quanto ao que agora importa, fez o seguinte sumário:
- É inequívoco o direito de cada indivíduo à sua integridade física, a qual haverá de ser atingida no caso de uma intervenção cirúrgica a que ele deva ser submetido. Tal direito compreende o direito à autodeterminação nos cuidados de saúde, em termos segundo os quais a prática de atos médicos ou cirúrgicos sobre uma pessoa deve ser decidida (consentida) por esta, mas em circunstâncias tais que esteja devidamente habilitada a tomar a correspondente decisão. Exige-se, assim, um recorrentemente designado "consentimento informado".
- O consentimento informado deve compreender esclarecimento sobre diagnóstico e estado de saúde, meios e fins do tratamento, prognóstico, natureza do tratamento proposto, consequências secundárias do tratamento proposto, riscos e benefícios do tratamento proposto, em especial riscos frequentes e riscos graves, alternativas ao tratamento proposto, seus riscos e consequências secundárias, aspetos económicos do tratamento.
- No que toca a riscos, a obrigação de informação deve estender-se àqueles que são normais e previsíveis, designadamente por reporte a um conceito referencial de riscos "significativos" (significativos em razão da necessidade terapêutica da intervenção, em razão da sua frequência, em razão da sua gravidade, em razão do comportamento do paciente).
- Conformando-se o consentimento informado como a causa habilitante à prática de atos que, sem ele, constituiriam uma ofensa ao direito de personalidade do destinatário, o consentimento aparece como uma causa de exclusão da ilicitude. Como tal, constituindo facto impeditivo do direito invocado, a sua prova - quer do consentimento, quer da informação - compete àquele contra quem a invocação é feita, nos termos gerais do art. 342º, nº 2 do Código Civil.
- Esse ónus não é ilimitado e terá como fronteira, desde logo, a não imposição de uma prova diabólica, de factos negativos. Assim, não poderá deixar de ser o doente/lesado a alegar e demonstrar que o risco de cuja verificação resultaram os danos era um dos riscos previsíveis, razoáveis e significativos que lhe deviam ter sido transmitidos.
Subsequentemente, sendo caso disso, é que o médico/prestador dos cuidados de saúde terá de demonstrar ter satisfeito a sua obrigação relativamente ao esclarecimento do doente sobre esse risco, sob pena de irrelevância do consentimento obtido, por não informado.
11 . Ainda inconformado, pede revista o autor.
Conclui as alegações do seguinte modo:
1 . Nos documentos de fls. 77 e 78, concretamente no parágrafo compreendido entre as palavras "confirmo" até "situação clínica" quem declara são os médicos – o 3 .º Recorrido e o Interveniente /Recorrido – e não o aqui Recorrente.
2 . Nessas declarações os médicos "confirmam que explicaram ao doente". Assim os documentos de fls. 77 e 78, nesta parte, configuram depoimentos de parte do Recorrido DD e do Interveniente Dr. EE, por escrito sobre factos favoráveis. O que é manifestamente ilegal, face ao disposto no Artigo 352.º do Código Civil e Artigo 456.º do Cpc.
3 . Na parte dos documentos de fls. 77 e 78, compreendida entre as palavras "Por favor" até "este documento" existe uma espécie de alerta aos doentes, trecho este, que por isso, não composta qualquer declaração.
4 . No parágrafo dos documentos de fls. 77 e 78 compreendido entre as palavras "Declaro que concordo" e "razões clínicas" é de facto o subscritor dos documentos que declara. Não obstante, como o documento não refere o que foi proposto e explicado pelos médicos, ficamos sem saber com o que é que concordou o doente.
Sendo certo que neste parágrafo, o subscritor não declara concordar com a gravação em vídeo da imagem do doente.
5 . Neste parágrafo o trecho compreendido entre as palavras "bem como" até "razões clínicas" é um "consentimento em branco" passados aos médicos. A Lei das "Cláusulas Contratuais Gerais", Dec. Lei nº 446/85 de 25 de Outubro aplica-se aos formulários de fls. 77 e 78 e impõe limites ao conteúdo desses documento sendo proibidas as cláusulas que contenham um “consentimento em branco", que por isso são nulas.
6 . Da análise dos documentos das fls. 77 e 78 resulta claramente que os mesmos foram assinados em "branco" pelo Recorrente e depois preenchidos conforme as vontades únicas e exclusivas dos 3.º Recorrido e Interveniente/Recorrido.
7 . Do documento de fls. 77 resulta que o aqui Recorrente assinou um documento (em branco) denominado "consentimento", 38 dias antes do Dr. EE ter confirmado que deu a explicação ao Recorrente bem como o documento de fls. 78 que o Recorrente assinou (em branco) 89 dias antes do Dr. DD ter confirmado que deu a explicação ao Recorrente sem que naturalmente lhe tivesse sido explicado o que quer que fosse pelo médico.
8 . Resulta portanto não ter havido sequer consentimento prestado pelo Recorrente.
9 . Mesmo que por hipótese académica se entenda ter havido consentimento, jamais o mesmo poderá ser considerado um consentimento informado, senão vejamos:
10 . A Declaração de Lisboa sobre os Direitos do Doente da Associação Médica Mundial, o Artigo 5.º do Capítulo II da Convenção de Oviedo subscrita e ratificada pelo Estado Português, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o art. 25.º da Constituição da Republica Portuguesa, o artigo 70.º do Código Civil, a Lei de Bases da Saúde, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, impõem aos profissionais de saúde que previamente a qualquer tratamento ou intervenção médica informem o paciente e obtenham o seu consentimento informado,
11 . A finalidade fundamental do esclarecimento deve ser a de permitir que o paciente, com base no seu sistema de valores, possa determinar se deseja ou não consentir na intervenção que lhe é proposta. A informação é o pressuposto de um consentimento informado; e este é necessário para satisfazer o direito à autodeterminação do doente nos cuidados de saúde.
12 . Quanto ao conteúdo da informação a prestar ao doente, no Relatório Final de Maio de 2009 sobre o Consentimento Informado da Entidade Reguladora da Saúde disponível on line entendeu-se que: "Deve-se usar o critério do "paciente concreto", isto é, dar as informações que aquele concreto paciente precisa de saber ou desejaria conhecer para tomar a sua decisão, com a sua personalidade e capacidade cognitiva.
13 . Com o respeito pelo direito à autodeterminação é a que manda revelar tudo, salvo se o paciente mostrar que não quer saber, ou quando se verificarem os pressupostos do privilégio terapêutico. Nesse sentido, a tendência da jurisprudência francesa vai no sentido de passar a exigir que os médicos informem os pacientes dos riscos graves, mesmo que estes sejam hipotéticos ou de frequência excepcional.
14 . Por outro lado, a doutrina portuguesa dominante concorda que o ónus da prova da existência de esclarecimento recai sobre o médico ou sobre a instituição de saúde. Entendem que o consentimento funciona como causa de exclusão da ilicitude, pelo que "a prova dos factos impeditivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação feita", isto é, o ónus da prova do consentimento, como causa de exclusão da ilicitude, cabe ao médico (Artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil). As razões desta posição tem a ver com prova de factos negativos se trata de uma prova diabólica. Tendo em conta o princípio do equilíbrio processual, da impossibilidade da prova do facto negativo, a facilidade relativa da prova para o médico ( já que este é um perito e o paciente é um leigo) e os exemplos do direito estrangeiro, nomeadamente as recentes evoluções nos países latinos, entendo, com Orlando de Carvalho, Figueiredo Dias, Sinde Monteiro, Costa Andrade e Capelo de Sousa que o onus probandi do cumprimento do dever de informar e do dever de obter o consentimento recai sobre o recorrido/médico.
15 . Podemos estabelecer um nexo de causalidade entre a falta de informação ou o esclarecimento defeituoso ou incompleto e o dano causado ao paciente pela concretização de um risco ou pela verificação de um efeito adverso da intervenção médico-cirúrgica, sempre que se esteja perante as violações graves do dever de informar.
16 . Deve entender-se por ocorrerem violações graves do dever de informar sempre que existe negligência grosseira ou dolo por parte do médico, quando existe violação de formalidades essenciais, quando nem sequer há consentimento e quando são omitidas informações fundamentais para que o doente decida.
17 . É de presumir que o doente não teria consentido caso lhe tivessem sido prestadas todas as informações. Caberá ao médico provar que mesmo que tivesse prestado as informações devidas o doente teria consentido. O médico deve suportar o ónus do consentimento hipotético.
18 . A falta ou a insuficiência de informações gera responsabilidade civil (Artigos 485.º e 486.º Código Civil). A falta ou a insuficiência de informações (que tornam o consentimento inválido), ou a falta do consentimento, transformam a intervenção numa ofensa corporal não consentida (Artigo 340.º Código Civil) e geram uma responsabilidade civil ainda mais ampla.
19 . No caso presente não se provou ter o Recorrente sido informado dos riscos das intervenções cirúrgicas que lhe foram efetuadas, tão pouco que tivesse prestado o seu consentimento informado. O tipo de complicações sofridas pelo Recorrente surge, maior parte das vezes, após um gesto cirúrgico e sobretudo no membro superior, muito mais frequentemente. O Recorrente desenvolveu o síndroma algoneurodistrófico, isto é, teve uma complicação gravíssima que pode acontecer, e que portanto é evidente que a função da mão ficou pior do que antes do doente ser operado.
20 . Não teria o Recorrente consentido nas intervenções cirúrgicas, caso lhe tivessem sido prestadas todas as informações, facto que de resto é de presumir face à gravidade das sequelas que apresenta.
21 . Revogando-se o acórdão recorrido e proferindo-se Acórdão que acolha as Conclusões precedentes e condene os Recorridos no pedido, se fará JUSTIÇA!
Contra-alegaram os recorridos HPP, DD e EE, rebatendo longamente a argumentação da contraparte.
12 . Ante as conclusões das alegações, importa tomar posição sobre se foi violado, pelos réus, o dever de informação, se não teve lugar consentimento válido para a intervenção cirúrgica e, na hipótese afirmativa, relativamente a qualquer destes itens, se se verificam os demais pressupostos da responsabilidade civil, em ordem a ser proferida a condenação pretendida.
13 . Vem provada a seguinte matéria de facto:
1 - O autor sofreu na mão esquerda ferida lácero-contusa com lesão dos nervos colaterais do polegar – al. A), da matéria de facto assente.
2 - A partir de 16/12/2004, o A. passou a ser tratado clinicamente nos HPP - HOSPITAL PRIVADO DOS FF, Porto, um dos Hospitais propriedade da 2ª Ré – al. B), da matéria de facto assente.
3 - Todo o tratamento clínico, cirurgia, cuidados médicos e medicamentosos, e recuperação do A. passou a ser acompanhado a partir dessa data pelo HPP - HOSPITAL PRIVADO DOS FF – al. C), da matéria de facto assente.
4 – No HPP - HOSPITAL PRIVADO DOS FF, o A. foi assistido em diversas consultas da especialidade designadamente de Ortopedia e Cirurgia – al. D), da matéria de facto assente.
5 - Em 02 de Março de 2005, após a realização de um exame EMG a pedido da 2ª Ré, concluiu-se que o A., em consequência do acidente, padecia de uma lesão de axonotmesis parcial do ramo tenar do nervo mediano esquerdo, mais intensa, dos colaterais sensitivos deste nervo para o polegar, com incapacidade e abdução do polegar – al. E), da matéria de facto assente.
6 - Numa das múltiplas consultas de ortopedia efectuadas no Hospital da 2ª Ré levadas a cabo pelo Dr. EE, médico contratado e ao serviço da 2ª Ré, este transmitiu ao A. que a lesão de que este padecia ao nível do nervo mediano esquerdo e dos colaterais sensitivos deste nervo para o polegar, só seria atenuada ou curada com uma intervenção cirúrgica, pelo que o A. teria de ser operado – al. F), da matéria de facto assente.
7 - Em 5 de Maio de 2005, o A. foi submetido a intervenção cirúrgica no HPP - HOSPITAL PRIVADO DOS FF, levada a cabo pelo interveniente Dr. EE como cirurgião principal e o 3º Réu como cirurgião ajudante – al. G), da matéria de facto assente.
8 - A referida intervenção cirúrgica, consistiu numa “oponentoplastia”, isto é, transferência do extensor radial do carpo – al. H), da matéria de facto assente.
9 - Nessa conformidade, o A. foi imobilizado com tala gessada – al. I), da matéria de facto assente.
10 - Em 17 de Junho de 2005 o A. foi reenviado para MFR no sentido da recuperação funcional da mão esquerda – al. J), da matéria de facto assente.
11 - O A. nasceu em … de Janeiro de 1974 – al. K), da matéria de facto assente.
12 - No âmbito do processo por acidente de trabalho nº 2435/05.3 TTPNF que correu seus termos no Tribunal do trabalho de Penafiel foi fixado ao A. um coeficiente global de incapacidade de 50% com incapacidade para a profissão habitual de marceneiro – al. L), da matéria de facto assente.
13 - Naquele processo por acidente de trabalho foi a 1ª Ré condenada a pagar ao A.:
14 - A sociedade “Móveis GG, Ldª”, tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a 1ª Ré COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A., através da Apólice nº 1230853. (doc.s 1 e 2) – al. N), da matéria de facto assente.
15 - No dia 23 de Novembro de 2004, cerca das 16 horas, quando o A. se encontrava a manusear uma máquina, foi atingido por esta na mão esquerda – resposta ao art. 1.º da base instrutória.
16 - Esse acidente ocorreu nas instalações da sociedade “Móveis GG, Ldª.”, trabalhando o A. por conta desta empresa, onde exercia as funções de marceneiro de 2ª categoria com o salário mensal de € 388,80 (retribuição) x 14 + € 49,50 (sub. alimentação ) x 11 meses – resposta ao art. 2.º da base instrutória.
17 – Na sequência deste acidente, o A. foi de imediato assistido no Hospital HH – …. e, após ter sido observado e radiografado, foi então suturado, tendo tido alta clínica no mesmo dia – resposta ao art. 3.º da base instrutória.
18 - Entre 24/11/2004 e 15/12/2004 o A. efectuou curativos no Centro de Enfermagem de …. – resposta ao art. 4.º da base instrutória.
19 - Os tratamentos referidos nas alíneas B) e C) dos factos assentes foram efectuados nos HPP- Hospital Privado dos FF, Porto, por conta da 1ª Ré – resposta ao art. 5.º da base instrutória.
20 - Em termos práticos a lesão referida na alínea E) dos factos assentes traduzia-se para o A. numa situação de anestesia e rigidez acentuada do polegar – resposta ao art.
6.º da base instrutória.
21 - Na data de 2 de Março de 2005, o A. possuía mobilidade nas restantes articulações do membro superior esquerdo – resposta ao art. 7.º da base instrutória.
22 – (emergente da alteração levada a cabo pela Relação em resposta ao ponto 11.º da base instrutória) "O A. que até então apenas padecia de uma sequela de anestesia do polegar com alteração de sensibilidade também do indicador com rigidez acentuada do indicador e polegar, após a intervenção cirúrgica e consequência directa desta, ficou a padecer de: - limitação da mobilidade do dedo polegar (da qual já sofria antes da cirurgia); - rigidez discreta do cotovelo: flexo de 10 a 15º; flexão de 120º; - limitação da supinação; - retracção isquémica de Volkmann relativamente à mão esquerda; -contractura na flexão do punho; - rigidez de todos os dedos da mão esquerda e impossibilidade de usar esta mão, quer em movimentos de manipulação quer em movimentos de preensão; - rigidez não significativa do ombro esquerdo; - incapacidade total para posicionar a mão esquerda no espaço; - incapacidade para comunicar gestualmente com a mão esquerda.
23 – O A. não possui quaisquer conhecimentos de técnica cirúrgica e, durante a operação, estava em estado de inconsciência devido à anestesia que lhe foi administrada – resposta ao art. 13.º da base instrutória.
24 - Fruto da incapacidade permanente parcial para o trabalho de que é portador, bem como da incapacidade para a profissão habitual de marceneiro, aliado ao facto de ter sido marceneiro, sem formação profissional para qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, o A. tem dificuldades na obtenção de um trabalho remunerado – resposta ao art. 15.º da base instrutória.
25 - Não fora o acidente e sequelas com que ficou, desde a data da alta -2/2/2006 até Setembro de 2007 inclusive - da sua profissão de marceneiro, o A. poderia ter auferido mensalmente o equivalente ao salário mínimo nacional, mais subsídio de férias e de Natal – resposta ao art. 16.º da base instrutória.
26 - As sequelas de que padece causam-lhe dores, tristeza, ansiedade, revolta e medo do futuro – resposta ao art. 17.º da base instrutória.
27 - O A. padece de dores – resposta ao art. 18.º da base instrutória.
28 - Pessoa outrora alegre, sociável e bem disposto, está hoje o A. transformado num ser deprimido, triste e isolado – resposta ao art. 19.º da base instrutória.
28.º (acrescentado pela Relação) - Tais males são advindos da cirurgia, sem prejuízo dos inerentes à lesão resultante do acidente de trabalho.
29 (na redação conferida pela Relação à resposta ao ponto 21.º da BI) – O A. padece de atrofia dos músculos do antebraço, punho em flexão, dedos em garra e alterações tróficas na mão e o dano estético permanente fixável no grau 4 numa escala de 7
30 - Inclusivamente, o A. separou-se da sua cônjuge – resposta ao art. 22.º da base instrutória.
31 - O A. subscreveu as declarações de consentimentos constantes de fls. 77 e 78, do p.p., nos termos que delas consta e que aqui se dão por integralmente reproduzidas – resposta ao art. 23.º da base instrutória.
32 - A oponentoplastia com transferência do extensor radial do carpo é um procedimento adequado à recuperação funcional da mão, em casos, como o dos autos, em que existe incapacidade de abdução do polegar provocada por uma lesão de axonotmesis parcial do ramo tenar do nervo mediano esquerdo e dos colaterais sensitivos deste nervo para o polegar – resposta ao art. 24.º da base instrutória.
33 - A cirurgia descrita no quesito anterior é, inclusive, uma opção indicada pelo saber médico actualizado para a obtenção do resultado pretendido: a oponência do polegar – resposta ao art. 25 .º da base instrutória.
34 - Nenhum outro elemento do quadro clínico do autor desaconselhava a intervenção cirúrgica adoptada – resposta ao art. 26 .º da base instrutória.
35 - A execução daquele acto médico decorreu sem qualquer percalço – resposta ao art. 27 .º da base instrutória.
36 - No registo referente à intervenção médica do dia 10.11.2005, consta que foi feita manipulação ao autor sob anestesia, ficando o punho em posição neutra, com mobilidade completa e as MCF e IF sem limitação da mobilidade – resposta aos arts. 28 .º, 29.º e 30.º, da base instrutória.
37 - Ocorreu, em 02.11.2005, observação médica do A. e bem assim que a Dra. II, médica fisiatra, acompanhou o tratamento de fisioterapia do autor – resposta ao art. 31.º da base instrutória.
38 - O autor sofreu fractura do colo do úmero esquerdo no decurso do período de reabilitação, entre 17.06.2005 e 22.07.2005, num período fulcral da sua recuperação – resposta ao art. 32 .º da base instrutória.
39 - O tratamento desta fractura implica a imobilização do membro superior com o ombro em adução e rotação interna, e com o cotovelo em flexão, tendo tido este facto necessariamente um impacto prejudicial na recuperação funcional do membro superior esquerdo e no resultado da cirurgia efectuada – resposta ao art. 33 .º da base instrutória.
40 - O 3º Réu e o Interveniente Dr. EE fizeram o diagnóstico completo da lesão do A., confirmado pelos meios complementares de diagnóstico suficientes para a situação – resposta ao art. 35 .º da base instrutória.
41 - Tiveram em conta as necessidades individuais do doente – resposta ao art. 36 .º da base instrutória.
42 - Foi escolhida a técnica cirúrgica julgada adequada para tentar diminuir a deficiência do A., que executaram sem percalços – resposta ao art. 37.º da base instrutória.
43 – O A. foi acompanhado no período pós-operatório, tentando a sua reabilitação – resposta ao art. 38 .º da base instrutória.
44 - Em Abril de 2005, quando o Interveniente Dr. EE examinou pela primeira vez o A, este referia que estava incapacitado de exercer as suas funções laborais em virtude do deficiente funcionamento e alterações da sensibilidade do seu polegar esquerdo – resposta ao art. 39 .º da base instrutória.
45 - Apresentava atrofia tenar da mão esquerda, deficiência postural em supinação do polegar e incapacidade de efectuar movimentos de oposição – resposta ao art. 40 .º da base instrutória.
46 -A dificuldade em segurar e agarrar objectos de grande e pequeno volume era óbvia devido à incapacidade de oponência do polegar – resposta ao art. 41.º da base instrutória.
47 - As lesões do A. resultam de características de uma lesão axonotemesis parcial do ramo tenar do nervo mediano esquerdo e mais intensa dos ramos colaterais sensitivos deste nervo para o polegar – resposta ao art. 42 .º da base instrutória.
48 - É tendo em conta este quadro clínico que é proposta ao A uma operação para tentar diminuir a sua incapacidade funcional – resposta ao art. 43 .º da baseinstrutória.
49 – A operação proposta (e depois executada) consistia em cirurgia de transferência do “extensor carpi radialis longus” (oponentoplastia) – resposta ao art. 44.º da base instrutória.
50 – O resultado da operação estava dependente não apenas da técnica cirúrgica, mas também da motivação e cooperação do próprio doente na sua recuperação – resposta ao art. 45 .º da base instrutória.
51 - A unidade músculo-tendinosa escolhida para a transferência foi o músculo “extensor carpi radialis longus” ( ECRL) – resposta ao art. 46 .º da base instrutória.
52 - A unidade motora escolhida pode ser utilizada para recuperar a mobilidade do polegar em doentes com perda de função/paralisia do nervo mediano – resposta ao art. 48 .º da base instrutória.
53 - Outras técnicas podem ser utilizadas, entre as quais se contam, entre outras, a oponentoplastia com flexor “digitorum superficialis” com diferentes modificações, a oponentoplastia com extensor indicis proprius, a oponetoplastia com abdutor digiti minimi e a oponentoplastia com palmaris longus – resposta ao art. 49 .º da base instrutória.
54 - Em consulta/manipulação sob anestesia, o polegar ficava em oponência – resposta ao arts. 56º, 57º e 58º da base instrutória.
55 – A técnica cirúrgica utilizada foi a descrita no art. 44.º supra – resposta ao art. 68 .º da base instrutória.
56 - Ocorreu traumatismo do colo do úmero esquerdo numa fase fulcral do tratamento e reabilitação do A. com influência negativa no resultado final – resposta ao art. 72 .º da base instrutória. 14 . O presente recurso gira em torno de duas figuras, cuja interpenetração é manifesta:
O dever de esclarecimento do doente;
O seu consentimento para atos médicos que o visem.
Perante a revelação das atrocidades nazis sobre experiências médicas em seres humanos, veio a lume, em 1947, o Código de Nuremberga, cujo primeiro princípio logo dispunha que “o consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isto quer dizer que a pessoa implicada… deve ter conhecimento suficiente e compreensão do assunto nos seus vários aspetos para que possa tomar uma decisão consciente.” Este código serviu como ponto de partida para inúmeros diplomas que foram sendo publicados, quer na ordem interna de cada um dos países, quer na ordem internacional. Considerando-se o direito que vimos referindo, quer como integrado noutos de conteúdo mais abrangente, quer tutelado expressamente. Relativamente aos vigentes em Portugal, trazemos para aqui os seguintes textos:
Portugal é uma república soberana, baseada na dignidade da pessoa humana… A integridade moral e física das pessoas é inviolável Todos têm direito à liberdade… – artigos 1.º, 25.º, n.º1 e 27.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa;
1 . Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental.
2 . No domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados, designadamente:
Qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada… artigo 8.º da CEDH (considerando a integração do consentimento informado no âmbito da vida privada, conforme jurisprudência do TEDH, podendo ver-se, por todos, no sítio do próprio Tribunal, o Ac. de 7.10.2008, Bogumi contra Portugal):
Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido. Essa pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos. A pessoa em questão pode, em qualquer momento, revogar livremente o seu consentimento. – artigo 5.º da Convenção Para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina:
Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, vulgarmente conhecida por “Convenção de Oviedo” ou “CDHBio”, de 4.4.1997, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º1/2001, de 3.1 e pela Resolução da Assembleia da República n.º1/2001, da mesma data. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. – artigo 70.º, n.º1 do Código Civil.
1 – Os utentes têm direito a:
1 . As pessoas indicadas no artigo 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente, serão punidas com prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 . O facto não é punível quando o consentimento:
E não se verificarem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado. – artigo 156.º do Código Penal.
Para efeito do disposto no artigo anterior, o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica. – artigo 157.º do Código Penal. O doente tem o direito a receber e o médico o dever de prestar o esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico da sua doença. Só é válido o consentimento do doente se este tiver capacidade de decidir livremente, se estiver na posse de informação relevante e se for dado na ausência de coacções físicas ou morais. – artigos 44.º, n.º1 e 45.º, n.º1 do “Código Deontológico” da Ordem dos Médicos (publicado como “Regulamento” no Diário da República, 2.ª série, de 13.1.2009, sendo certo que, já mesmo relativamente a factos anteriores, sempre releva “o seu valor prático com efeitos jurídicos, servindo de auxiliar decisivo para apreciar uma conduta médica, num tribunal ordinário” – Guilherme de Oliveira, RLJ n.º 3923, 34 e seguintes).
15 . Destes textos – e outros o confirmariam, se necessário –emerge logo uma ideia incontornável: é o doente que está no centro referencial dos atos médicos. A prevenção de doenças suas e o seu tratamento constituem um escopo que supera tudo o mais envolvido em tal atividade.
16 . Constituindo o centro referencial do ato médico, a decisão sobre o tratamento é a ele que cabe em última instância. Assim, está nas suas mãos ser ou não informado do diagnóstico, da previsibilidade da evolução da doença, das possibilidades de tratamento, e dos riscos associados a este. Continuando nas suas mãos a decisão final sobre o que deve ser feito (cfr-se Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 399 in fine e Sérgio Deodato, Direito da Saúde, 42). Decerto que esta afirmação não pode ser absoluta, mas não nos interessam, para aqui, os casos de ressalva em que o doente por idade, moléstia ou outras razões não está em condições de apreender o que se passa ou de decidir.
17 . O supra referido texto criminal contém ressalvas, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia remete para a “lei”, a Convenção de Oviedo fala em “informação adequada”, de tudo nos ficando uma situação de exigência interpretativa grande quanto ao conteúdo do dever de esclarecimento. As ressalvas constantes do direito penal impõem-se com alguma evidência, de sorte que as vamos considerar também para aqui. Não recusando o doente os itens referidos no número anterior, ou qualquer deles, cabe ao médico, em primeira linha, informá-lo. Este dever de informação “não tem de obedecer a um modelo único de densidade e intensidade” (Costa Andrade, ob. e loc. citados). Mesmo que o doente o não exclua, pode o médico excluí-lo, em nome do chamado “privilégio terapêutico”, ou seja, nos casos em que o legitimamente se aperceba que a informação pode causar um perigo para a vida ou é susceptível de causar ao doente grave dano à saúde física e psíquica. A ação do médico visa o tratamento e não pode, ela mesma, constituir fonte de maior dano, nem colocar o clínico numa situação em que “pode ser condenado por não esclarecer e, ao mesmo tempo, poder ser também condenado pelos danos desencadeados pelo esclarecimento (violação das legis artis)” (mesmo Autor, loc. citado).
18 . Noutro prisma, há que ter sempre presente que a medicina não é uma ciência exata, não podendo o médico, em muitas ocasiões, afirmar o diagnóstico ou a evolução clínica. Além disso, não se pode “transformar” o ato médico numa lição de medicina em que o doente passe a “saber” o que demorou anos de estudo ao clínico. Basta pensar-se que a anestesia é dirigida por um médico especialista em tal área, diferente do cirurgião, e não será razoável impor que cada doente que vai ser anestesiado saiba antes tudo o que pode ter lugar como consequência do anestésico e até as reações clínicas que, em cada caso, se podem impor. Estamos, pois, com Álvaro Rodrigues (A Responsabilidade Médica em Direito Penal,
41) quando afirma:
“O que por todos é aceite é que em caso algum estará o médico obrigado a discutir todos os detalhes possíveis inerentes à execução de qualquer tratamento médico cirúrgico. Não se requer da parte do médico, uma discussão técnico-científica sobre a moléstia e o tratamento do paciente, nem é aconselhável o uso de terminologia técnica ou uma linguagem hermética inacessível à generalidade das pessoas.”
19 . Especificamente, no que respeita à informação dos riscos, não podemos impor a transformação do ato médico num ato eivado de envolvimento jurídico, em ordem a perder-se de vista o objetivo fundamental do tratamento. Conforme afirma André Pereira (O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica, in Responsabilidade Civil dos Médicos, Centro Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 11, página 457): “Podemos constatar que houve durante a última década uma clara evolução no sentido da proteção do consentimento informado e da autonomia do paciente. Recentemente, porém, alguns autores e tribunais têm assinalado que a hipertrofia do direito à informação está a criar um fenómeno de medicina defensiva, de burocratização da relação médico-paciente e de alguma desconfiança ou mesmo crispação entre médicos e pacientes que se deseja sejam parceiros na actividade médico-terapêutica.” Além disso, um simples tratamento, com o mais vulgar dos medicamentos, pode levar a consequências muito graves que nem o próprio médico legitimamente pensou (Repare-se na dispensa de esclarecimento afirmada por Costa Andrade, ob. e loc. citados, relativamente aos “tratamentos de rotina”). Na verdade, um mínimo de risco é inerente à quase totalidade dos atos médicos. A exigência para além dum plano de razoabilidade, pode levar, outrossim, à renúncia, por parte do médico, relativamente a certos tratamentos, despindo a ciência médica dum elemento que, sempre dentro de parâmetros de razoabilidade, a caracteriza que é a assunção deste risco (Cfr-se, a este propósito, Rute Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico Reflexões Sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, in Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 15, página 440).
20 . Mantendo-se sempre a obrigação de informação, mas assim pensada, não fica, nem poderia ficar clara a linha delimitativa que, perante cada caso, deve distinguir entre o que o médico deve dizer ao doente (podendo ser responsabilizado se o não disser) e o que o médico não carece de abordar. André Pereira, no seu citado Estudo, dá-nos conta da evolução em França. A Cour de Cassation terá decidido que o médico não fica dispensado de indicar ao doente os riscos pelo facto de estes só se realizarem excecionalmente (Acórdão de 7.10.1998), entendimento também subscrito pela jurisdição administrativa, mas tal levou a que a responsabilidade médica por violação dos deveres de informação se tenha tornado demasiado pesada “tendo começado a sentir-se uma forte carga indemnizatória quer sobre a clínica privada, quer sobre a medicina em hospitais públicos.” Os Tribunais - segundo afirma – continuam tal entendimento, apesar da vinda a lume, entretanto, da Lei de 4.3.2002 que alude apenas a riscos frequentes ou os riscos graves normalmente previsíveis, ignorando os riscos graves de verificação excecional. O Supremo Tribunal Alemão, no seu Acórdão de 22.12.2010 3StR 239/10[1], com citação abundante da sua própria jurisprudência, que mantém constante, reafirmou o entendimento de que deve ser prestada ao paciente informação base (“Grundaufklärung”) em termos “gerais e completos” (“Grossen und Ganzen”), com inclusão das chances e riscos da intervenção, nestes se compreendendo todos os riscos graves ligados à operação, mesmo os de verificação rara, mas sem necessidade duma descrição médica exata. José Lago (Consientemiento Informado y Responsabilidade Civil, Estudo inserto na revista Julgar, Número Especial de 2014, 163) dá-nos conta de que a Sala Civil do Tribunal Supremo Espanhol vem distinguido consoante se trate de intervenções de medicina curativa ou necessária ou apenas “satisfactiva, reparadora o no necessária”. Neste segundo caso, as exigências relativas ao conteúdo informativo são mais rigorosas, do que no primeiro, tendo em conta “a necessidade de evitar que se silenciem os riscos excecionais ante cujo conhecimento o paciente poderia subtrair-se a uma intervenção não necessária ou de uma necessidade relativa.” Entre nós, Álvaro Rodrigues (ob. citada, 346) defende que: “Quanto aos efeitos secundários, sequelas e riscos do tratamento a doutrina recomenda o esclarecimento daqueles que se verificam com frequência, não havendo necessidade de focar os riscos de carácter excepcional na sua verificação. Mais uma vez, aqui, como em tudo na vida, o melhor critério será o da ponderação dos interesses em jogo, mediante uma atitude ética e conscienciosa, que procurando devolver a saúde ao doente, tenha sempre no horizonte o direito deste à sua liberdade de decisão convenientemente esclarecida.” Também André Pereira, no seu apontado Estudo, após incursão detalhada pela jurisprudência e doutrina estrangeiras, escreve (página 478): “Assim, partindo da constatação de que a medicina é uma actividade que gera riscos, na tarefa da imputação objectiva dos danos, devemos destrinçar quais os riscos que a ordem jurídica pretende que sejam suportados pelo doente e quais devem ser suportados pelo médico. Os últimos devem ser comunicados ao paciente, para que este, em liberdade e em consciência decida sobre se autoriza a intervenção, autocolocando-se em perigo; não sendo esclarecidos, o médico deverá compensar do doente pelos danos causados. Os primeiros (os que deve ser suportados pelo paciente) por motivos vários como a extrema raridade, a sua imprevisibilidade, o conhecimento comum, entre outros motivos, não carecem de ser transmitidos; se se verificarem deverá ser o paciente a suportá-los: casum sentit dominus.” 21 . Em Portugal o esclarecimento médico está numa fase embrionária. Procura do médico como elemento “tranquilizador” e não “assustador”, baixo nível cultural dos doentes, principalmente dos idosos, algum “doutorismo” ou distanciação por parte de alguns médicos, ideia assente de que o doente, já fragilizado pela doença, não está interessado em acumular a revelação dos riscos à sua própria fragilidade, tradição de pouca atenção à envolvência jurídica dos atos médicos até algo correr mal e outras razões levam a que, por regra, os atos não preencham os requisitos que as jurisprudência francesa e alemã vêm exigindo. A interpretação da lei não pode nem deve abstrair da realidade social que visa disciplinar. De outro modo, pode abrir-se um caminho de ressarcimento, praticamente ilimitado e desadequado face à nossa realidade social, sempre que algo corre mal nos atos médicos. Não tendo havido negligência, o doente teria ao seu alcance, na esmagadora maioria dos casos, a deficiente informação médica. “O incumprimento de qualquer um destes deveres [de esclarecimento e de obtenção do consentimento esclarecido] tem servido, como veremos, de artifício para se alcançar a tutela do doente em situações em que dificilmente ele obteria o ressarcimento de danos sofridos aquando da prestação de assistência médica deficiente. Serviu para fundar o fenómeno ressarcitório em situações em que se constatava a produção de um dano por ocasião da prestação debitória do médico, mas em que não era possível identificar um comportamento desvalioso por parte daquele profissional. Tal aproveitamento ínvio permitiu um funcionamento eficaz do sistema de responsabilidade civil, em casos perante os quais ele, à primeira vista, sucumbiria.” – Rute Pedro, ob. citada, página 79. No outro prato da balança, o Direito não pode deixar de ser aplicado, encerrando também um efeito disciplinador. Na interpretação dos textos legais supra citados, hão-de os tribunais tudo ponderar em ordem a se situarem no ponto de equilíbrio dos interesses em jogo. Noutro prisma, a imposição da revelação de todos os riscos da intervenção médica, incluindo os de verificação rara ou excecional, determinaria a abertura dum leque de tal modo vasto que desembocaria na “lição” de medicina que supra afastámos e transcenderia até os conhecimentos necessários ao desempenho das próprias funções do médico que leva a cabo a essência do tratamento. Numa intervenção cirúrgica, como exemplo mais frequente, teria o doente de ser esclarecido primeiro pelo anestesista sobre as possíveis complicações da anestesia e sua probabilidade de não serem controladas, depois, pelo cardiologista, sobre o que pode acontecer a tal nível, depois, pelo pneumologista sobre os riscos da “respiração induzida” e aí por diante. E a prova de que assim é reside no facto de, perante complicações sérias emergentes dum tratamento, mormente duma cirurgia, o cirurgião se socorrer de colegas de outras especialidades. Havendo até casos de doentes que, perante tais complicações, são transferidos de hospital porque só o segundo está vocacionado para tratar o que, na visão mais abrangente, seriam riscos a comunicar ao doente antes da intervenção.
22 . Deste modo, ponderando tudo o que acaba de se escrever e sempre tendo em conta apenas o que pode interessar para a solução deste caso, cremos poder assentar nas seguintes ideias:
Com ressalvas que aqui não importam, o doente tem direito a ser informado, pelo médico, em ordem a poder decidir sobre se determinado ato médico que o vise deve ou não ser levado a cabo; Tal direito é disponível;
O conteúdo do dever de informação é elástico, não sendo, nomeadamente, igual para todos os doentes na mesma situação;
Abrange, salvo ressalvas que aqui não interessam e além do mais, o diagnóstico e as consequências do tratamento;
Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo tratamento e aos seus riscos;
Não se exigindo, todavia, uma referência à situação médica em detalhe;
Nem a referência aos riscos de verificação excecional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento.
23 . Aqui chegados, podemos atentar diretamente no caso presente.
O recorrente subscreveu as declarações de consentimento de folhas 77 e 78.
Pretende que as mesmas tenham a natureza de cláusulas contratuais gerais em ordem a beneficiar do regime de ónus de prova constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10. Ainda que o artigo 1.º deste normativo não esteja redigido em termos claramente definitórios, temos que as ccg se caracterizam pela pré-elaboração, generalidade e aceitação sem negociação. Como consta do Acórdão deste Tribunal de 10.5.2007, processo n.º 07B841, com texto disponível em www.dgsi.pt: “As ccg são aquelas que, numa realidade contratual, tiverem aquelas categorias e, sendo-o, regem-se pelo Decreto-Lei n.º 446/85. Mas, para se aferir se as têm ou não, já temos que atentar no regime deste normativo no que concerne ao ónus de prova. Ou seja, se, depois de atento tal regime, virmos que o proponente das cláusulas demonstrou que houve negociação prévia, por exemplo, as cláusulas deixam de ter tal natureza e afastado fica o normativo que já antes se aplicara. Aplicou-se e, depois, não podia ter-se aplicado. Um “non sense”. Da imposição, à cabeça, dos ónus de prova acabados de referir pode resultar ainda uma violência que o julgador/intérprete não pode cobrir. Em todas as cláusulas contratuais, a parte a quem não agradasse o respectivo cumprimento, invocava que as cláusulas dum contrato que lhe não convinham haviam sido rígidas, sem negociação prévia e com características de indeterminação e, só por aí, atirava para cima da contraparte ónus de prova terríveis, cominados com o afastamento das mesmas cláusulas. Na prática, um modo fácil de não cumprir, legalmente, contratos. O que também é inaceitável. Desta problemática deram conta os Acórdãos deste tribunal de 24.2.2005 e de 25.5.2006, cujos textos se podem ver em www.dgsi.pt., nos quais se decidiu que, previamente à demonstração a que os ónus de prova se reportam, teria de haver a demonstração, a cargo da parte que quer beneficiar da invalidade das cláusulas contratuais gerais, de que estamos em terreno próprio destas.” Escrevendo Menezes Cordeiro que “a exigência da falta de prévia negociação é um elemento necessário e autónomo, que deve ser invocado e demonstrado” (Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, I, Tomo I, 429). Ora, vem apenas demonstrado que o recorrente subscreveu os ditos documentos. Nada mais se tendo provado – ainda que agora alegado – que possa integrar os conceitos de pré-elaboração, rigidez e indeterminabilidade. Pelo contrário, consta do texto de tais documentos a alusão ao diagnóstico, ao tratamento médico proposto e a alusão a que o subscritor não deve hesitar “em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido”. Não pode, pois, ele beneficiar do regime próprio das ccg.
24 . É, assim, fora deste regime que temos de nos situar para tomarmos posição sobre se os ditos documentos são suficientes para preencherem o que a lei impõe no domínio do consentimento esclarecido. Foram subscritos pelo ora recorrente. Tem entendido este Tribunal que os documentos particulares subscritos por uma parte não fazem prova plena da exatidão das declarações neles insertas (por todos o Ac. de 23.11.2005, processo n.º 5B3318, com texto disponível no mesmo sítio). Mas, nos termos do artigo 376.º, n.º2 do Código Civil, fazem prova plena, contra o confitente e nas relações declarante/declaratário, de que as declarações ali referidas foram efetivamente prestadas.Não colhe, pois, agora a alegação da não comunicação ou da assinatura em branco, aliás, sem qualquer correspondência nos factos provados.
25 . O documento de folhas 77 – dos dois o único elaborado antes da intervenção cirúrgica referida em 22.º e 28.º do elenco factual – está redigido em termos vagos e conclusivos na parte que importa. Refere que “confirmo que expliquei ao doente… de forma adequada e inteligível…assim como os riscos e complicações e as alternativas possíveis à situação clínica.” Inexistem elementos donde se possa aferir se a explicação foi, efetivamente, adequada e inteligível e, fundamentalmente, não se referem quais os “riscos e complicações” que poderiam advir ao doente. No entanto, dali consta, na parte relativa ao ora autor:
“Leia com atenção o conteúdo de todo este documento. Não hesite em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido. Verifique se todas as informações estão correctas.” Com esta referência, o hospital e o médico colocaram nas mãos do doente o caminho para todos os esclarecimentos. Se ele se limitou a assinar, sem o percorrer, tem de se considerar que abdicou dum direito que, como dissemos supra, era inteiramente disponível. Decerto que poderia o documento estar redigido em termos muito mais claros e concludentes quanto à iniciativa do médico. Mas referindo-se que lhe foram explicados, de forma adequada e inteligível, os riscos e que lhe foi solicitada a assinatura do documento, no qual estava escrito que não hesitasse em solicitar mais informações ao médico se não estivesse completamente esclarecido, é de assacar ao próprio doente eventual falta de alusão aos riscos concretos, mormente àquele que incluía as sequelas que vieram a ter lugar. É sabido que, como deixámos dito em 21, com frequência, nada se cumpre como consta dos documentos. Recorre-se, num contexto emotivo de ida para uma intervenção cirúrgica, ao “assine aqui”, com uma explicação levada a cabo por um funcionário e totalmente eivada de laconismo ou mesmo inexistente. Só que, nestes casos existe uma grande responsabilização de quem assim subscreve um documento. Além do mais, terá de fazer valer em tribunal tudo aquilo que, de viciante, poderá ter estado na base da subscrição. O que aqui não ocorre. Acresce que, apesar de a Relação ter fixado que as sequelas foram consequência direta da intervenção cirúrgica (ponto 22.º), não deixou de ficar nos factos que o autor sofreu fratura do colo do úmero esquerdo num período fulcral da sua recuperação, com influência negativa no resultado final (pontos 38.º e 56.º).
26 . Finalmente não se provou que as sequelas correspondessem a riscos normais e não raros ou excecionais da cirurgia. Também não se provou o contrário, pelo que se levantaria aqui a discussão sobre o ónus de prova, prejudicada atento o que se referiu no número anterior (sendo certo que, no Acórdão deste Tribunal de 18.3.2010, processo n.º 301/06.4TVPRT.P1.S1, disponível no aludido sítio, se entendeu impender sobre a doente a demonstração de que “outros especiais riscos podiam ocorrer”).
27 . Face a todo o exposto, nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 9.10.2014
João Bernardo
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista
______________________
[1] Com acesso fácil, introduzindo no motor de busca da
internet “Bundesgerichtshof.de”, depois, “Entscheidungen” e, depois, a data
Fonte:"http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f80b5c5850afdfb780257d6d003027bf"
Responsabilidade Médica
Conceito de Resultado
Legis artis
RP202009018052/16.0T8PRT.P1
01/07/2010
- Na impugnação da decisão proferida em matéria de facto, efectuada a concretização dos meios de prova (discriminação desses meios, no caso de depoimentos, com temporização ao minuto e segundo das passagens da gravação tidas por relevantes, e até com sua transcrição), a não realização de correspondência, pelo recorrente, de cada um desses meios com cada um dos factos impugnados, ponto-por-ponto, só por si, não significa uma impugnação genérica da decisão e não implica um novo julgamento ou uma impugnação não especificada ou não circunscrita da decisão e, consequentemente, não acarreta a rejeição do recurso.
II - O conceito de “resultado” no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente, enquanto obrigação de meios, como deve ser qualificada na grande maioria das prestações clínicas, corresponde ao esforço na ação diligente (pura diligência), a observância das leges artis no diagnóstico e no tratamento.
III - Se, no pós-operatório de uma intervenção cirúrgica ortopédica ao tornozelo é necessariamente aplicada uma tala na perna do doente e, na zona desta surge fitina, é do lesado o ónus da prova da violação, pelos colaboradores do R. hospital, do cuidado devido segundo as regras da leges artis na acção médica ou de enfermagem, sem o que não há cumprimento defeituoso enquanto pressuposto de responsabilidade civil.
IV - A prática médica em consulta hospitalar de urgência implica decisões rápidas e visa sobretudo aliviar o sofrimento, sendo o erro de diagnóstico mais tolerável do que o erro na consulta da especialidade normal, onde o exame e a ponderação devem ser colocados num patamar de exigência superior.
Proc. nº 18052/16.0T8PRT.P l – 3ª Secção (apelação)
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
- Juízo Local Cível do Porto - Juiz 6
Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
B…, casada, com o NIF …….., residente na Rua …, …, …. – … … … – Maia, instaurou ação declarativa comum contra C…, S.A., com o NIPC ………, onde se integra a Unidade Hospital C1…, com sede na Avenida …, n.º …, …. - … Porto, alegando --- aqui sinopticamente --- que deu entrada nos serviços de urgência da R. em virtude de uma queda que lhe provocou uma torção no pé direito, recebeu ali, a seu pedido, assistência hospitalar, mas de modo deficiente, sem observância de elementares regras médicas. Primeiro, com um diagnóstico errado no episódio de urgência, por a sua lesão não se tratar de um simples entorse de tornozelo, como ali diagnosticado, mas de uma “fratura maléolo peroneal direita oblíqua” (vulgo, fratura do tornozelo) --- como foi posteriormente assegurado pelo médico ortopedista --- determinante de uma cirurgia àquele pé cujo pós-operatório, depois, também foi deficientemente acompanhado pelos serviços da R., daí tendo resultado despesas e dores desnecessárias, flitena ou ulceração do calcanhar e do peito do pé causada pela pressão das talas aplicadas, deixando marcas inestéticas que irão continuar para toda a sua vida e que lhe têm causado e continuarão a causar sofrimento psicológico e prejuízo na sua autoestima e afirmação social cuja compensação (dano não patrimonial) estima em €8.500,00.
Nas várias deslocações que teve de efetuar aos serviços da R. para tratar as úlceras, a A. alega que gastou €360,00, quantia pela qual entende dever ser reparada.
Concluiu como seguinte pedido:
«(…)
a) Ser a Ré condenada a pagar à Autora uma indemnização a título de dano não patrimonial no valor de €8.500,00 (oito mil e quinhentos Euros);
b) Ser a Ré condenada a pagar à Autora uma indemnização a título de dano patrimonial no valor de €360,00 (trezentos e sessenta Euros), bem como o montante que também a esse título se vier a apurar em liquidação de execução de sentença;
c) Ser a Ré condenada a pagar à Autora o montante dos juros legais vencidos e vincendos desde a data citação, à taxa legal em vigor, até total e efetivo pagamento;
d) Ser a Ré responsável pelo pagamento de custas e dos demais encargos do processo.» (sic)
Citada, a R. deduziu contestação. Começou por pedir a intervenção principal provocada da sociedade seguradora D… – Companhia de Seguros, S.A., invocando um contrato de seguro entre elas celebrado, designado por contrato de seguro de responsabilidade civil geral e profissional, com cobertura de indemnização por danos que lhe viesse a ser exigida, e que resultassem, nomeadamente, de atos de negligência médica praticados no exercício da sua atividade médica.
Por impugnação, a R. opôs-se a grande parte da matéria de facto alegada na petição inicial, defendendo que os médicos assistiram a A. nos seus serviços de modo adequado, praticando os atos médicos exigíveis, adequados e necessários, tendo em conta a situação clínica da A. em cada momento, em conformidade com a leges artis.
Terminou no sentido de que deve ser absolvida do pedido e de que seja a D… chamada à ação.
O tribunal admitiu a D… – Companhia de Seguros, S.A. como interveniente principal, ordenando a sua citação.
A interveniente também contestou a ação, alegando que não tem qualquer responsabilidade perante a A. e que deveria intervir apenas como parte acessória.
Invocou a prescrição do direito da A., a inaplicabilidade do contrato de seguro e ainda que a A. não podia ter relegado para oportuna liquidação quantias que alega ter suportado, por já estarem quantificadas.
Concluiu pela absolvição das RR. do pedido.
Foi depois proferido despacho saneador, onde o tribunal julgou improcedente a exceção a prescrição.
Foi realizado exame médico pelo INML, cujos relatórios foram juntos a 22.3.2018 e a 27.5.2019.
Teve lugar a audiência final, após a qual foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Nestes termos, julgando a ação totalmente improcedente, decido, absolver as rés do pedido.
Custas pela autora.»
*
Inconformada com a decisão final, a A. apelou, CONCLUINDO as suas alegações nos seguintes termos:
«A) O presente recurso incide sobre a matéria de facto e de direito.
B) Impõe-se a alteração da matéria de facto dada como não provada, nos seguintes termos: Deve ser alterado para provado o ponto 1 dos factos não provados nos seguintes termos “e informou a autora de que não via qualquer problema a nível ósseo”.
Devem ainda ser alterados para provados os seguintes factos não provados: pontos 9, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 21 e 22.
C) No que concerne aos pontos 13 e 17 da factualidade não provada, por força da factualidade dada como provada sob o ponto P, impõe-se necessariamente a alteração desses factos para provados.
D) Acresce que, a prova documental junta aos autos impõe a alteração para provada da matéria de facto não provada acima descrita, nomeadamente: As fotografias juntas à petição inicial que são demonstrativas do estado em se encontra o pé direito da A. e os relatórios da Delegação do Instituto de Medicina Legal Ciências Forenses de 22.03.2018 e 27.05.2018, dos quais consta que a A. apresenta área cicatricial na face dorsal do pé direito com cerca de 5 cm por 2 cm de maiores dimensões e que as cicatrizes não são passíveis de melhoria do ponto de vista estético, podendo apenas ser melhorada do ponto de vista de qualidade cicatricial com enxerto de gordura.
E) Também a prova testemunhal impõe decisão diferente da matéria de facto supra referida.
F) A Sra. Juiz do Tribunal a quo não valorou os depoimentos do marido (veja-se Audiência de julgamento do dia 15/11/2019, às 09h30, gravada em CD, aos 2min36-2min39, 9min34-9min40, 18min08-18min37, 19min34-19min45, 27min05-27min42, 28min15-28min20, 30min22-30min35, 31min24-31min55, 32min09-32min16, 35min11-35min25, 37min07-37min31, 37min32-38min12, 41min45-41min50) e filho da A. (veja-se Audiência de julgamento do dia 15/11/2019, às 09h30, gravada em CD, aos minutos 3min57-4min08, 9min15-9min36, 9min39-9min44, 9min44-9min53, 12min21-12min28, 12min59-13min07) que foram particularmente importantes para provar o estado pós-operatório da A. e o estado em que ficou o seu pé.
G) Os depoimentos das aludidas testemunhas revestiram-se de segurança, consistência, credibilidade, revelando perfeito conhecimento dos factos aqui em causa, por neles terem tido intervenção.
H) A Sra. Juiz do Tribunal a quo não analisou ainda criticamente o depoimento do médico E… (veja-se Audiência de julgamento do dia 15/11/2019, às 09h30, gravada em CD, aos minutos 5min55-6min15, 11min11-11min24, 15min55-16min01, 20min01-20min21, 34min37-34min49, 42min20-42min36, 42min47-42min50, 47min33-47min48) que de modo encapotado, tentou esconder qual a verdadeira razão do aparecimento da úlcera de pressão no pé da A., fazendo um depoimento vago e genérico, do qual se concluiu que disse muito menos do que aquilo que podia e sabia dizer.
I) Finalmente, temos o depoimento da testemunha – enfermeira F… (veja-se Audiência de julgamento do dia 15/11/2019, às 09h30, gravada em CD, aos minutos 7min08-7min21), que disse sem qualquer dúvida que a úlcera de pressão é causada pela tala. Daí a necessidade de os pensos serem realizados com frequência para vigiar a pele; para evitar este tipo de situações, de flitena ou úlcera de pressão.
J) De todo o exposto, conclui-se QUE A MATÉRIA DE FACTO DOS PONTOS 1, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 21 e 22 DA FACTUALIDADE NÃO PROVADA DEVE SER ALTERADA PARA PROVADA, sendo o ponto 1 apenas nesses termos “e informou a autora de que não via qualquer problema a nível ósseo”.
K) Com efeito, dúvidas não há que a R. C… não cumpriu os deveres de cuidado a que estava obrigada:
L) Não diagnosticou corretamente a lesão sofrida pela A. no pé, pois inicialmente diagnosticou com sendo uma simples entorse, tendo apurado uma semana depois tratar-se de uma fratura, a A. foi operada de imediato, operação que se não fosse a conduta da R. já teria ocorrido aquando do primeiro diagnóstico, ou seja, 8 dias antes, tudo isto evitando sobretudo que a A. sofresse as dores que sofreu.
M) A R. C… não cumpriu os deveres a que estava obrigada, pois não evitou que a pressão da tala causasse como causou a ulceração do calcanhar e do peito do pé da A., o que originou marcas que ainda hoje permanecem no pé da A.
N) Como resulta da douta sentença recorrida, in casu, foi estabelecido um vínculo jurídico entre a Autora e a R. C…, nomeadamente um contrato de prestação de serviços médicos.
O) Ora, o devedor que faltar culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causar ao credor (artigo 798.º do CC), sendo o devedor responsável pelos atos das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor (artigo 800.º, nº 1 do CC).
P) No caso dos autos, face à alteração da matéria de facto nos termos supra descritos, resulta que a R. C… não diagnosticou corretamente a lesão sofrida pela A. no pé, pois inicialmente diagnosticou com sendo uma simples entorse, tendo apurado uma semana depois tratar-se de uma fratura, a A. foi operada de imediato, operação que se não fosse a conduta da R. já teria ocorrido aquando do primeiro diagnóstico, ou seja, 8 dias antes, tudo isto evitando sobretudo que a A. sofresse as dores que sofreu.
Q) Ademais, a R. C… não cumpriu os deveres a que estava obrigada, pois não evitou que a pressão da tala causasse como causou a ulceração do calcanhar e do peito do pé da A., o que originou marcas que ainda hoje permanecem no pé da A.
R) Ora, in casu, se a R. C… não omitisse os deveres de cuidado a que estava obrigada, jamais a A. ficaria com o pé no estado em que ficou.
S) Na verdade, não fosse a Acão omissiva das mais elementares legis artis por parte dos profissionais da ré, a autora não teria o pé no estado em que o mesmo se encontra.
T) Verifica-se, assim, que a R. praticou um facto ilícito (cumprimento defeituoso dos deveres emergentes do contrato), com culpa (que, aliás, se presume, sendo que o devedor não logrou ilidir essa presunção de culpa), provocou um dano e existe nexo de causalidade entre o facto e o dano.
U) Em face do exposto, a sentença ora recorrida enferma claramente de um erro na aplicação da norma jurídica que deveria ter sido aplicada face aos factos e matéria de facto apurada em audiência de julgamento, não decidindo, como deveria ter feito, pela condenação dos réus no pedido.
V) Assim, deve ser dado provimento ao recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, substituindo-se por outra que condene os Réus no pedido formulado pela Autora.» (sic)
Pediu, assim, a revogação da decisão e a sua substituição por outra decisão que julgue a ação totalmente procedente, por provada.
*
A D…, S.A. respondeu em contra-alegações que sintetizou assim:
«1. O recurso apresentado pela Autora não poderá merecer qualquer acolhimento, nem provimento, uma vez que não se verifica erro notório na apreciação da prova que justifique a pretendida alteração da decisão da matéria de facto.
2. O Autor não logrou demonstrar, com recurso à prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento e demais elementos existentes nos presentes autos, de que forma se justifica a pretendida alteração da matéria de facto, concretamente, os pontos considerados não provados constantes dos números 1, 9, 11, 73, 14 7 c 17, 18, 21 e 22.
3. Não existe qualquer prova documental, pericial ou testemunhai que fundamente a alteração da referida matéria de facto.
4. Para além disto, a sentença encontra-se devidamente fundamentada e corresponde a uma correta aplicação da Justiça.
5. Também não merece qualquer reparo o julgamento da matéria de Direito realizado pelo Tribunal a quo.
6. Assim sendo, deverá improceder o recurso apresentado pela Autora.» (sic)
*
A C…, S.A. também apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
«i. A Autora, ora Recorrente, assenta o seu recurso, desde logo, na alteração da matéria de facto dada como não provada.
ii. Quanto a esta, o Código de Processo Civil, no seu artigo 640º, impõe nomeadamente que a Recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; os meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
iii. Aquilo que a Recorrente faz, salvo o devido respeito, é uma mera impugnação em bloco de um conjunto vasto de pontos da matéria de facto, limitando-se depois a fazer longas transcrições dos depoimentos. Não fazendo uma relação entre os meios probatórios e cada um dos pontos da matéria de facto, com a respetiva apreciação critica.
iv. Analisando o caso concreto, aquilo que parece ocorrer é que a Recorrente se limita a impugnar um vasto conjunto da matéria de facto (os pontos 1, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 21 e 22) e que a seguir transcreve longas passagens dos depoimentos.
v. Muito pouco mais faz do que isso, para além de umas escassas, genéricas e vagas considerações sobre os depoimentos das testemunhas. Não existindo a mínima preocupação, em tentar relacionar os meios de prova com cada um dos pontos impugnados e fazendo a respetiva apreciação critica.
vi. Podendo verificar-se que os próprios factos elencados pela Recorrente nem todos estão ligados entre si, ou seja, estamos perante matérias diferentes que não permitem uma apreciação em bloco e acrítica como aquela que a Recorrente efetua.
vii. Em suma, salvo melhor opinião, por inadmissível, deve-se rejeitar a impugnação do julgamento da matéria de facto.
viii. Sem conceder,
ix. Relembramos que é alegado pela Recorrente a omissão da Recorrida dos procedimentos exigíveis de acordo com a legis artis, no fundo, que o ato médico não teve lugar de acordo com as melhores práticas médicas.
x. Ora, da prova produzida (documental, pericial e testemunhal), não resulta um único indício de má prática médica. Desde logo, e em relação à prova pericial, a única que teve lugar refere-se à avaliação do dano corporal, logo, não teve por objeto a prática médica.
xi. Depois, é preciso analisar com cuidado o depoimento do único médico ouvido em sede de julgamento, E…. Este depoimento é particularmente relevante na medida em que este médico foi aquele que operou por duas vezes a Autora.
xii. Tendo diagnosticado a fratura e recomendado a cirurgia no dia seguinte, a qual se terá processado de forma normal e sem ocorrências, com as dores normais e usuais neste tipo de cirurgia.
xiii. De acordo com as notas de enfermagem, a testemunha referiu que existiu uma normal cicatrização e na verdade, consultado, o processo clinico / diário de enfermagem (junto pela Ré por requerimento datado de 12 de julho de 2017), pode-se ler que no dia da alta (dia 26 de setembro de 2013), a Autora não apresentava queixas alérgicas; que o penso da ferida cirúrgica no membro inferior direito tinha a ligadura externamente seca e limpa; que o membro inferior direito não apresentava comprometimento neuro vascular e que a sutura não tinha sinais inflamatórios – vide factos provados F´, G´ e I´.
xiv. Sendo que na consulta oito dias depois da cirurgia, notou-se a existência de uma flitena (ou seja, uma bolha), num processo que por vezes ocorre e descrito pelo médico, reafirmando que a flitena não existia no momento da alta, ou seja, a flitena surgiu já depois da alta e antes da primeira consulta, oito dias depois da cirurgia.
xv. Sendo que tal flitena estava no dorso do pé, não tendo qualquer relação com a cicatriz (que é lateral, na parte externa do tornozelo), nem com a tala que tinha sido colocada.
xvi. Sendo que tal ocorrência não era evitável e é um risco da própria intervenção. Podendo ocorrer por um conjunto vasto e incerto de razões como excesso de gelo ou de movimentos da paciente, entre outras razões.
xvii. Tendo a Recorrente recuperado a mobilidade total e passados dois anos voltado a recorrer aos serviços deste médico para realizar a segunda cirurgia, o que não deixa de ser sintomático que a própria Recorrente nunca perdeu a confiança na Ré e no médico que a tratou.
xviii. A testemunha refere ainda que eventuais dores que a paciente tenha sofrido ou que sofra hoje, bem como problemas de mobilidade, em nada estão relacionadas com a flitena mas apenas com a fratura, sendo que os registos clínicos só confirmam esta opinião.
xix. Também as testemunhas G…, H… e F… confirmaram o depoimento da testemunha Dr. E….
xx. Assim, em relação a esta flitena, aquilo que se pode afirmar, sem margem para dúvidas, é que a mesma efetivamente ocorreu e que tal ocorrência se terá verificado já após a alta (isto porque de acordo com os registos clínicos, nomeadamente, as notas de enfermagem e de acordo com os depoimentos das testemunhas acima citadas, quando foi dada alta, não existia qualquer flitena).
xxi. A causa e razão de ser da flitena não foi apurada, podendo se especular como referiu muito detalhadamente, e por diversas vezes, no seu depoimento, a testemunha Dr. E…, inclusive por um maior descuido da Autora no colocar do gelo ou nos movimentos enquanto esteve em casa ou por uma mera reação do corpo.
xxii. A Recorrente não conseguiu produzir uma única prova que pudesse contrariar esta tese, limitando-se a arrolar como testemunhas o seu marido e filho que (até por falta de formação médica) nada acrescentaram de relevante limitando-se a reproduzir os queixumes daquela e a ensaiar tímidas explicações para a dita flitena.
xxiii. A Recorrente refere ainda que existiu um diagnóstico incorreto da lesão numa fase inicial, ao não ter sido apurada a existência da fratura, o que evitava as dores que alegadamente a aquela sofreu.
xxiv. Ora, a Recorrente aqui altera por completo aquilo que referiu na sua Petição Inicial e a forma como desenhou a sua pretensão e causa de pedir. Em nenhum momento da sua Petição Inicial, a Autora invoca a existência de danos e reclama o pagamento de indemnização fruto do primeiro diagnóstico.
xxv. Toda a pretensão da Recorrente assenta naquilo que (alegadamente) ocorreu na cirurgia e no aparecimento da dita flitena.
xxvi. Por isso mesmo é que a Recorrente vem invocar a existência de um dano estético (artigo 46º da Petição Inicial) acrescido de um dano patrimonial com despesas para tratamento daquilo que designa por “úlceras do pé e calcanhar” (artigo 53º da Petição Inicial). Não existe qualquer dano descrito fruto do alegado errado diagnóstico na primeira observação / consulta.
xxvii. Aliás, lendo a própria Petição Inicial, não resulta claro a existência e a alegação de qualquer erro de diagnóstico ou erro médico aquando dessa primeira observação.
xxviii. Sem conceder, note-se que não está demonstrado que a Recorrida deva ser responsabilizada por qualquer alegado erro e, mais do que isso, que a Recorrente tenha sofrido quaisquer danos fruto desse facto.
xxix. Não existe, uma vez mais, uma testemunha, um documento, que tenha confirmado a existência do erro aquando dessa primeira observação e qualquer nexo de causalidade com qualquer dano.
xxx. Aliás, a demonstração mais óbvia da improcedência da pretensão da Recorrente está no facto da flitena não existir aquando da cirurgia, logo, a flitena nunca pode ter tido origem no alegado atraso de diagnóstico, aquando da primeira observação (a flictena, na verdade, só apareceu durante o período de tempo em que a Recorrente esteve em causa, após a alta médica – vide facto provado E´´).
xxxi. Faça-se ainda notar que de acordo com o facto provado H), “A autora transmitiu à médica em causa que melhorava das dores depois de colocar gelo no pé e de tomar anti-inflamatórios, mais tendo relatado um bom estado geral à médica e negando limitações funcionais”.
xxxii. Assim, nada fazendo prever a necessidade ou urgência da realização de qualquer cirurgia. Tendo a mesma médica, tido o cuidado de escrever “no processo clinico que a situação clinica da doente teria de ser revista em consulta de ortopedia”, facto provado M).
xxxiii. Daqui decorre que não se encontra nestes factos provados, a imputação de qualquer responsabilidade ou má prática da médica em causa.
xxxiv. Por tudo o que se disse acima, é mais do que evidente que a Recorrente não conseguiu fazer prova dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso das legis artis e da diligência que é exigida às equipas médicas.
xxxv. Devendo, deste modo, manter-se a douta sentença agora objeto de recurso, sendo este julgado improcedente e assim se fazendo JUSTIÇA!» (sic)
*
Foram colhidos os vistos legais.
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II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da A. recorrente (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º, do Código de Processo Civil).
Para apreciar, na apelação, estão:
1 - O invocado erro de julgamento na decisão proferida em matéria de facto;
2 - As consequências jurídicas da (eventual) modificação daquela decisão.
Previamente, porém, há que apreciar e decidir a questão suscitada nas contra-alegações da R. C…, S.A.:
- Falta de uma relação entre os meios probatórios e cada um dos pontos da matéria de facto impugnada, com a respetiva apreciação crítica.
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III.
A 1ª instância deu como provada a seguinte matéria: Por transcrição.
A) - A autora é professora do ensino secundário e exerce a sua profissão no Agrupamento de Escolas I… (artigo 7.º da petição inicial).
B) - A ré é um grupo empresarial que se dedica à gestão e exploração de estabelecimentos de saúde com internamento, atividades de prática médica de clínica especializada, clínica geral em ambulatório, atividades de ambulância e transporte de doentes, no qual se enquadra o Hospital C1… (artigo 8.º da petição inicial).
C) - No dia 16 de setembro de 2013 (segunda-feira) a autora, logo pela manhã, deu entrada nas urgências do Hospital C1…, em virtude de ter sofrido uma queda que lhe provocou uma torção no membro inferior direito (pé direito) (artigo 9.º da petição inicial).
D) - A autora que apresentava notório inchaço no pé direito, dificuldade de locomoção e intensa dor, foi observada pela médica Dr. J… que ordenou a realização de uma Radiografia ao referido membro inferior (artigo 10.º da petição inicial – matéria aceite).
E) - A referida médica analisou o resultado do exame e recomendou aplicação de gelo na zona inchada, bem como a aconselhou a andar apoiada em duas canadianas – muletas (artigo 11.º da petição inicial).
F) - Em consequência, foi atribuída à autora uma incapacidade temporária para o trabalho pelo período de 5 (cinco) dias, com términus a 20 de setembro de 2013 (sexta – feira) (artigo 12.º da petição inicial – matéria aceite).
G) - A autora relatou à médica de serviço, a Dra. J…, no referido dia 16.09.2013, que tinha “feito entorse tornozelo D há 2 dias (escorregou)” (artigo 13.º da contestação da 1.ª ré).
H) - A autora transmitiu à médica em causa que melhorava das dores depois de colocar gelo no pé e de tomar anti-inflamatórios, mais tendo relatado um bom estado geral à médica e negando limitações funcionais (artigo 15.º da contestação).
I) - A médica em causa, depois observação clínica, pediu nesse dia a realização de um Raio x de Tíbio-társica (2 incisões), lado direito, e medicou a autora (artigo 16.º da contestação).
J) - A médica informou ainda que seria importante que a autora ficasse atenta à evolução dos sintomas, designadamente ao edema lateral e também às dores (artigo 18.º da contestação).
L) - Advertindo-a de que deveria retornar imediatamente ao serviço caso os sintomas piorassem ou persistissem, para reavaliação (artigo 19.º da contestação).
M) - A Dra. J… escreveu no processo clínico que a situação clínica da doente teria que ser revista em consulta de ortopedia (artigo 20.º da contestação da 1.ª ré).
N) - Foi dito à autora pela médica (i) para colocar gelo no pé para reduzir o edema, (ii) para não forçar o pé e (iii) o manter elevado e em repouso, recomendações adequadas em face da lesão sofrida (artigo 23.º da contestação da 1.ª ré).
O) - Tendo a médica emitido atestado de doença para permitir uma situação de repouso durante o período de 5 dias, até dia 20.09.2013 – sexta-feira (artigo 24.º da contestação da 1.ª ré).
P) - Assim que terminou o período de incapacidade temporária absoluta, e no dia em que teria a autora que regressar ao trabalho é que esta decidiu voltar ao Serviço de Urgência, para indicar que as dores se mantinham (se bem que frisou que estava melhor do edema) (artigo 25.º da contestação da 1.ª ré).
Q) - Decorrida a referida semana, a autora apenas sentiu melhoria no inchaço do pé, sendo que as dores e a dificuldade em caminhar persistiam (artigo 13.º da petição inicial – matéria aceite).
R) - No dia 23 de setembro de 2013 (segunda-feira) dirigiu-se novamente ao Serviço de Urgências do Hospital C1… (artigo 14.º da petição inicial – matéria aceite).
S) - Nesta nova deslocação a autora foi observada por uma outra médica (artigo 15.º da petição inicial).
T) - Logo após informou esta de que seria necessário ser observada por um médico ortopedista (artigo 16.º da petição inicial).
U) - Tendo sido observada pelo Dr. E…, médico ortopedista, foi-lhe explicado à autora que a correção da “fractura meleolo peroneal direita oblíqua”, vulgo fratura do tornozelo direito, teria indicação cirúrgica para redução e osteossíntese com 2 parafusos interfragmentários (artigo 29.º da contestação da 1.ª ré e artigo 17.º da petição inicial).
V) - A cirurgia foi agendada para o dia seguinte, 24 de setembro de 2013 (terça – feira), pelas 17:00h (artigo 18.º da petição inicial – matéria aceite).
X) - A autora deu entrada no Hospital C1… na manhã de dia 24, tendo sido encaminhada para o 4.º andar onde a prepararam para a cirurgia (artigo 19.º da petição inicial – matéria aceite).
Z) - A cirurgia correu sem intercorrências (artigo 37.º da contestação da 1.ª ré).
A)’ O pós-operatório envolveria – como envolveu – a verificação inevitável de dores (artigo 38.º da contestação da 1.ª ré).
B)’ - Por se saber que o pé da autora iria inchar, e consequentemente abarcar a existência de dores, foi colocada, no final da cirurgia, uma tala na parte posterior do tornozelo e pé, e depois na frente do pé (no dorso), uma ligadura elástica, para permitir a elasticidade dos tecidos que iria ocorrer pelo inchaço em questão (artigo 41.º da contestação da 1.ª ré).
C)’ - É normal que tenha a autora tido dores no período imediatamente posterior à cirurgia, designadamente no internamento (artigo 42.º da contestação da 1.ª ré).
D)’ - Em face desse quadro de dor, sempre a Equipa de Enfermagem tomou os atos necessários que a boas práticas aplicáveis ao caso impunham: ora administrando a medicação prescrita pelo médico, ora recomendando medidas tendentes a permitir um alívio da dor, como sejam a colocação de gelo e a elevação dos membros inferiores – que ajudariam à redução do inchaço (artigo 43.º da contestação da 1.ª ré).
E)’ - Resulta no Diário de Enfermagem que as dores sentidas pela autora foram melhorando ao longo dos dias do internamento: 1. No dia 25.09.2013 consta registado pelas 3:55 que, cerca das 1:00, “por referir dor no pé direito foi administrado petidine IM em SOS, que surtiu efeito”, “02:30: Acordada, mas refere melhoria da dor. Menciona ter dormido por curtos períodos.”, “7:00: Refere dor moderada no pé direito e fica a aguardar efeito da analgesia prescrita a horas fixas”, 2. No dia 25.09.2013 consta ainda registado pelas 14.12 que “passou o turno sem queixas, na companhia de visitas”, situação que se repete pelas 21:33; 3. No dia 26.09.2013, pelas 4:57 consta que “pelas 01h por referir queixas álgicas foi administrado petidina que surtiu efeito” e “passou o turno sem queixas”; 4. No dia 26.09.2013 “passou bem a noite, sem referir queixas álgicas ou outras” e de manhã “sem queixas álgicas” (artigo 46.º da contestação da 1.ª ré).
F)’ - Em momento algum consta quer do Diário Médico quer do Diário de Enfermagem a verificação de qualquer situação relativa à existência de uma equimose, de uma úlcera, de um edema ou de uma flitena no pé da autora durante o período de internamento e até à alta médica (artigo 47.º da contestação da 1.ª ré).
G)’ - Sempre constando que o penso da ferida cirúrgica estava externamente limpo e seco e que não apresentava quaisquer sinais de comprometimento neuro vascular no membro operado, durante todo o período de internamento (artigo 48.º da contestação da 1.ª ré).
H)’ - Quando foi retirado o hemodreno, aos 26.09.2013, a Enfermeira de serviço escreve do registo de enfermagem o seguinte: “Tratamento realizado à ferida cirúrgica hoje dia 26/09 – lavagem com soro fisiológico – sutura sem sinais inflamatórios – foi retirado dreno aspirativo” (artigo 49.º da contestação da 1.ª ré).
I)’ - Sem mencionar qualquer tipo de lesão na pele da autora, seja no dorso do pé, seja na zona lateral ou outra, relacionada com algum tipo de ulceração de pressão ou qualquer outro tipo de lesão da pele, nomeadamente flitena ou edem (artigo 50.º da contestação da 1.ª ré).
J)’ - O médico-cirurgião, no dia 26.09.2013, depois de observar a doente, em particular o membro intervencionado, lhe concedeu alta médica, apenas indicando que a doente estava bem, e que iria para casa com alta medicada (artigo 52.º da contestação da 1.ª ré).
L)’ - Indicou o médico os cuidados a ter em ambulatório, designadamente que deveria manter o pé elevado, não poderia andar, e que deveria colocar um saco com gelo no membro operado (artigo 53.º da contestação da 1.ª ré).
M)’ - Na primeira noite após a intervenção cirúrgica, a autora queixou-se de dores por todo o pé que identificou como sendo de dois tipos: “como facadas” (artigo 20.º da petição inicial).
N)’ - Dadas estas dores a autora chamou as Sras. Enfermeiras que estavam de serviço nessa noite, tendo reportado a estas as dores que sentia (artigo 21.º da petição inicial),
O)’ - Ao que, as mesmas lhe disseram que “é normal após a cirurgia”, tendo-lhe aplicado gelo e reforçado a medicação (artigo 22.º da petição inicial).
P)’ - No dia seguinte, 25 de setembro de 2013, as dores persistiam (artigo 23.º da petição inicial).
Q)’ - As enfermeiras continuaram a aplicar gelo no membro operado (artigo 24.º da petição inicial).
R)’ - Na tarde desse mesmo dia, o médico Dr. E… fez uma rápida visita à autora (artigo 25.º da petição inicial).
S)’ - Tendo este verificado o estado do dreno e informou-a que no dia seguinte iria ter alta médica (artigo 26.º da petição inicial).
T)’ - Nessa noite de 25 de setembro, porque as dores eram agudas, violentas e insuportáveis, impedindo a autora de dormir, esta chamou a Sra. Enfermeira que estava de serviço (artigo 27.º da petição inicial – matéria aceite).
U)’ - Tendo esta aplicado à autora uma injeção na perna operada e referiu-lhe que “agora já vai dormir” (artigo 28.º da petição inicial – matéria aceite).
V)’ - Na manhã seguinte, o médico Dr. E… fez uma última visita à autora, com o intuito de lhe dar alta médica e informá-la dos procedimentos e cuidados a tomar (artigo 29.º da petição inicial).
X)’ - Face ao exposto, a autora por causa da intervenção cirúrgica a que foi sujeita esteve internada durante 2 (dois) dias, tendo tido alta médica no dia 26 de setembro de 2013 (artigo 31.º da petição inicial – matéria aceite).
Z)’ - Entretanto, no dia 30 de setembro de 2013 a autora regressou ao Hospital para fazer o penso (artigo 32.º da petição inicial).
A)’’ Sucede que, depois de 4 dias passados desde a alta médica, aos 30.09.2013, regressa a autora ao Hospital apresentando, pela primeira vez, uma flitena com zona de necrose cutânea (artigo 55.º da contestação da 1.ª ré).
B)’’ - Face a esta observação este médico constatou a existência de «flitena com zona de necrose cutânea e dores no dorso do pé, edema distal ainda acentuado» (artigo 33.º da petição inicial e fls. 201-verso, 3.º parágrafo).
C)’’ - Nas semanas seguintes, a autora foi obrigada a deslocar-se ao Hospital «dia sim, dia não» para fazer o penso e para vigiar a evolução da ferida, tendo sido sempre observada pelo médico Dr. E… (artigo 35.º da petição inicial).
D)’’ - Foi observada pelo médico-cirurgião, tendo sido feito novo penso no membro inferior, tendo sido dada recomendação para voltar passados dois dias para reobservação e nova mudança de penso para cicatrização da pele da autora (artigo 56.º da contestação da 1.ª ré).
E)’’ - A situação decorrente da flitena que surgiu na pele da autora apareceu durante o período de tempo em que a autora esteve em casa, após a alta médica (artigo 57.º da contestação da 1.ª ré).
F)’’ - Esta situação causou, como ainda causa, elevados incómodos, aborrecimentos e sofrimento, dores e mau estar quer à autora como à sua família (artigos 42.º e 44.º da petição inicial).
G)’’ - A autora é uma mulher que tem uma imagem bastante cuidada, preocupando-se diariamente com a mesma (artigo 47.º da petição inicial).
H)’’ - Desde a cirurgia que evita calçar sapatos que exponham a marca no pé, recorrendo muitas vezes a meias com tonalidade mais escura, para disfarçar a referida alteração da tonalidade da pele e protuberância, porque lhe provoca complexos de inferioridade e considera inestético (artigo 48.º da petição inicial).
I)’’ - O que naturalmente lhe causa tristeza, complexos e embaraço (artigo 50.º da petição inicial).
J)’’ - A autora teve durante o período de 6 (seis) semanas de se deslocar da Maia para o Porto (artigo 52.º da petição inicial).
L)’’ - Regressar 3 (três) vezes por semana para tratamento das úlceras do pé e calcanhar, sendo sempre acompanhada por uma pessoa, dada a sua falta de autonomia, por não poder apoiar o pé no chão- sempre dependente de terceiros (artigo 53.º da petição inicial).
M)’’ - A autora foi obrigada durante todo esse período de tempo a recorrer ao apoio de transporte do marido, filho e nora para assegurar as suas necessidades de mobilidade, com todos os incómodos e transtornos que a situação acarreta (artigo 54.º da petição inicial).
N)’’ - A autora teve também de fazer face às despesas com as consultas do 2.º episódio de urgência e as de tratamento dos pés, que ainda que as mesmas tivessem sido parcialmente comparticipadas pela ADSE (artigo 57.º da petição inicial).
O)’’ - No dia 16 de setembro não lhe foi feito o diagnostico clinico correto (artigo 63.º da petição inicial).
P)’’ - A autora está diminuída física e esteticamente, pois possuí uma cicatriz no pé direito com uma coloração de pele muito escura e uma saliente protuberância e coloração escura, lesões essas bem visíveis e inestéticas (artigo 69.º da petição inicial).
Q)’’ - Este aspeto físico prejudica a autora na sua imagem feminina, que passou a causar-lhe vergonha e embaraço, procurando sempre esconder a lesão (artigo 70.º da petição inicial).
R)’’ - O prazer de exibir publicamente os pés, em concreto o pé direito, utilizando calçado aberto e usar saias (artigo 71.º da petição inicial).
S)’’ - Sentindo-se triste por causa do atual aspeto do seu pé (artigo 72.º da petição inicial).
T)’’ - A ré celebrou com a D… – Companhia de Seguros, S.A., um contrato designado por contrato de seguro de responsabilidade civil geral e profissional, com o número da Apólice ……., por efeito do qual se previu que a segunda seria responsável, até aos limites do capital seguro, pela indemnização dos danos que viesse a ser exigida à primeira, e que resultassem, nomeadamente, de atos de negligência médica praticados no exercício da sua atividade (artigo 1.º da contestação da 1.ª ré) (v. doc. fls. 53).
U)’’ Nos termos da cláusula V do referido contrato, sob a epígrafe «cláusula temporal»: «O presente contrato garante o ressarcimento dos danos resultantes dos atos ou omissões ocorridos durante o período da sua vigência, desde que os mesmos se manifestem e sejam participados à seguradora até 24 meses após a 1.ª data geradora do dano, sem prejuízo da data termo ou de resolução do contrato» (v. artigo 16.º da contestação da 2.ª ré e doc. de fls. 74).
V)’’ A 2.ª ré apenas teve conhecimento dos factos em análise com a citação para a presente ação (artigo 17.º da contestação da 2.ª ré).
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Foi dada como não provada, pela instância recorrida, a seguinte matéria: Por transcrição.
1.º- “e informou a autora de que “não via qualquer problema a nível ósseo”, tendo receitado comprimidos Exxiv” (artigo 11.º da petição inicial).
2.º- “que, após ter visualizado a Radiografia efetuada no 1.º episódio de urgência, chamou a médica Dra. J… e na sua presença apontou naquela para determinada zona” (artigo 15.º da petição inicial).
3.º- “e sem qualquer explicação à aqui autora” (artigo 16.º da petição inicial).
4.º- “agudas” “e “esticar a pele” (artigo 20.º da petição inicial).
5.º- “insuportáveis e persistentes” (artigo 21.º da petição inicial),
6.º- “continuou insistentemente a queixar-se às enfermeiras referindo que “as dores violentas apenas atenuavam quando se levantava para ir à casa de banho” (artigo 23.º da petição inicial).
7.º- As enfermeiras desvalorizaram tais queixas e continuaram a dizer ser normal após a cirurgia (artigo 24.º da petição inicial).
8.º- “tendo esta informado o mesmo das dores que sentia” (artigo 25.º da petição inicial).
9.º- A Sra. Enfermeira que efetuou o penso, quando retirou as ligaduras e a tala, o que aliviou imenso as dores da autora, fez o seguinte reparo “tem a pele muito escura” (artigo 30.º da petição inicial).
10.º- viu pela primeira vez o estado do pé após a cirurgia” (artigo 32.º da petição inicial).
11.º- “duma enorme úlcera de pressão por todo o peito do pé intervencionado e uma outra no calcanhar, tendo feito o seguinte comentário: “isto era desnecessário”” (artigo 33.º da petição inicial).
12.º- A autora referiu “queixei-me com dores, mas ninguém as valorizou” (artigo 34.º da petição inicial).
13.º- Quanto à ulceração do calcanhar e do peito do pé ainda hoje persistem as marcas, apesar de serem de menor dimensão -Documento n.º 1 – que se junta e se dá por integralmente reproduzido (artigo 36.º da petição inicial).
14.º- “A qual poderia ter sido evitada não fosse a referida omissão dos deveres de cuidado nos serviços prestados pelos profissionais da ré” (artigo 42.º da petição inicial).
15.º- “Essa omissão provocou sofrimento, dores, mau estar, recuperação da cirurgia e dano estético (artigo 44.º da petição inicial).
16.º- “bem como a frustração por ter sido necessário um período de recuperação maior do que o previsto, o que implicou que a autora ficasse totalmente dependente do apoio do seu marido, filho e nora, nomeadamente para fazer a sua higiene pessoal, preparar as refeições, compras de mercearias, entre outras tarefas básicas” (artigo 45.º da petição inicial).
17.º- “dano que vai acompanhar a autora por toda a sua vida, designadamente o dano estético que se traduz na existência de protuberância e alteração da cor da pele (que se apresenta bem mais escura) no pé direito em resultado das úlceras (cfr. Documento n.º 1) (artigo 46.º da petição inicial).
18.º- Não fosse a ação omissiva das mais elementares legis artis por parte dos profissionais da ré, a autora não teria o pé no estado em que o mesmo se encontra (artigo 49.º da petição inicial).
19.º- Serviço esse que representa um custo no montante aproximado de €20,00 (vinte Euros) por cada viagem, o que totaliza uma despesa total de €360,00 (trezentos e sessenta Euros) (€20,00 x 3 dias x 6 semanas) (artigo 55.º da petição inicial).
20.º- “pela equipa médica e de enfermagem” “bem como, após a cirurgia a que foi sujeita” (artigo 63.º da petição inicial).
21.º- Os danos são consequência direta e necessária da observação e deficiente análise clínica, bem como do cumprimento dos procedimentos necessários implementar após um pós-operatório, serviços clínicos esses prestados pela ré (artigo 68.º da petição inicial).
22.º- A autoestima da autora é nula, sentindo-se triste e inconsolável por causa do atual aspeto do seu pé (artigo 72.º da petição inicial).
23.º- “da devida”, “adequadamente” “tendo em conta a situação clínica apresentada” (artigo 16.º da contestação).
24.º- Em segundo lugar, a atuação da médica não levou a qualquer tipo de dores ou sofrimento acrescidos, pelos simples motivos de (i) Ter sido aconselhada devidamente a autora no dia 16.09.2016, no sentido de reduzir o edema e consequentemente as dores ocasionadas por via disso, e também por ter sido medicada apropriadamente para as dores em causa, e de (ii) Não ter sido a fratura existente agravada durante este período de tempo (artigo 33.º da contestação da 1.ª ré).
25.º- Sendo que sintomas como “facadas” ou sensação de “esticar a pele” seriam normais e expectáveis, em função do inchaço natural do pé da autora, provocado pela intervenção cirúrgica (artigo 38.º da contestação da 1.ª ré).
26.º- O facto de ter sido colocado um hemodreno para remoção do conteúdo hemático (colocado para evitar hematomas no local da ferida cirúrgica), muitas vezes também leva à verificação de dores, pelo contacto que tem com a pele do doente, o que pode também ter contribuído para a sensação de dores nos dias imediatamente seguintes à intervenção cirúrgica, durante o internamento - perfeitamente normais (artigo 40.º da contestação da 1.ª ré).
27.º- Não podendo ser imputada a qualquer má prática médica ou de enfermagem, não tendo resultando por qualquer ato ou omissão do pessoal ao serviço da ré (artigo 57.º da contestação da 1.ª ré).
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IV.
Conhecendo…
- Falta de uma relação entre os meios probatórios e cada um dos pontos da matéria de facto impugnada, com a respetiva apreciação crítica, como causa de rejeição do recurso
Dispõe o referido art.º 640º, nº 1, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativas à matéria de facto”:
«1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- (…)».
Dúvidas não se suscitam nem as temos quanto à concretização dos pontos da matéria de facto impugnados e da decisão que, em alternativa, a A. ambiciona para a decisão. Foram regularmente cumpridos os ónus de impugnação a que se referem as al.s a) e c) do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil. Também foram identificadas e até transcritas as passagens da gravação que a recorrente tem por relevantes para a modificação pretendida, assim havendo cumprimento do ónus que aquele mesmo artigo prevê sob a al. a) do seu nº 2.
Diz-nos simplesmente a R. recorrida que a recorrente não cumpriu o ónus de impugnação previsto na al.s b) do nº 1 do art.º 640º, devendo, por isso, ser rejeitado o recurso em matéria de facto. Não fez tal cumprimento, no entender da apelante, porque não efetuou uma indicação das provas que considera relevantes, ponto-por-ponto em vez uma devida análise crítica; só indicou as provas para o conjunto da matéria impugnada.
Como vimos, a citada al. b) exige a especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
Basta que os meios de prova constem do corpo das alegações.
Literalmente, aquela norma não refere que a indicação dos meios probatórios seja efetuada ponto-por-ponto. Basta que os meios probatórios sejam concretizados e que se tornem facilmente apreensíveis, seja pela parte contrária para o exercício do contraditório, seja pelo tribunal para apreciação e decisão da impugnação.
A apelante indicou os depoimentos testemunhais de K…, L…, E… e F…, precisou os respetivos excertos da gravação que tem por relevantes e até transcreveu as passagens da gravação que também temporizou ao minuto e segundo, tornando facilmente apreciável a relevância que cada uma delas possa ter para cada um dos factos impugnados.
A perfeita circunscrição da matéria objeto da impugnação não permite a conclusão da R. C…, S.A. de que foi feita uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto. Não é genérica a impugnação dos pontos de facto da decisão, por estarem identificados com precisão determinados pontos: l, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 21 e 22; não é genérica a indicação da versão factual pretendida pela recorrente, por ter sido, aliás, muito clara e precisa na indicação dos factos que pretende que sejam dados como provados; não é genérica a indicação dos meios de prova que considera relevantes, sejam os documentos, sejam as testemunhas, por os ter identificado também com rigor. A indicação daquelas provas, pela recorrente, como sendo relevantes para a alteração do conjunto dos pontos da matéria impugnada não é ilegal nem abusiva, desde logo por não contrariar a al. b) do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil.
A indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração são o ónus que verdadeiramente permite circunscrever o objeto do recurso no que concerne à matéria de facto.
As recorridas compreenderam bem o objeto da impugnação e ficaram em perfeitas condições para discutirem as provas indicadas relativamente à matéria impugnada e defenderem a confirmação do julgado, como efetivamente defendem.
A R. cita o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.9.2018 Proc. 2611/12.2TBSTS.L1.S1, in www.dgsi.pt. para defender a sua posição, mas deve notar-se que ali se tratou uma situação de vasto incumprimento dos ónus em causa. Extrai-se daquele aresto a seguinte passagem, bem significativa: «(…) Ora, quando se verifica uma falta de conclusões sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, quando existe uma falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados e quando se verifica também uma falta de especificação dos concretos meios probatórios e uma falta de posição expressa sobre o resultado pretendido, uma análise crítica da prova, as conclusões são deficientes impondo-se a rejeição do recurso (quanto á pretendida impugnação da decisão sobre a matéria de facto).»
Já a posição sufragada no acórdão do mesmo Alto Tribunal de 5.9.2018 Proc. 15787/15.8T8PRT.P1.S2, in www.dgsi.pt, também citado pela recorrida. nos parece, com o devido respeito, excessiva e demasiado exigente face à letra da lei (referida al. b)). Como se refere noutro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.12.2019 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, in www.dgsi.pt., na interpretação do art.º 640º não se vislumbra o sentido de acrescida exigência, como é a referência às razões pelas quais aqueles meios de prova conduzem à alteração pretendida, desde logo por falta de suporte nos elementos literal, sistemático ou teleológico da interpretação, “entendimento que se afigura inteiramente consonante com a orientação consolidada da jurisprudência do STJ no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo”. Acrescenta-se ali que “não se afigura que a falta da indicação dessas razões conduza à afectação do princípio do contraditório, na medida em que o apelado, conhecendo os meios de prova em que o apelante sustenta a pretendida alteração da decisão relativa à matéria de facto, dispõe das condições para contraditar tal pretensão”.
A verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no art.º 640º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteada pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
As condições formais de impugnação da decisão de facto radicam em normas de direito processual disciplinadoras dos limites cognitivos e do exercício dos poderes da Relação em sede de reapreciação dessa decisão, que o facto de, nas circunstâncias do caso, os meios de prova - perfeitamente identificados e circunscritos - não terem sido indicados ponto-por-ponto, não prejudica.
Aproximamo-nos mais destas teses menos formalistas e mais complacentes que vêm sendo seguidas na jurisprudência V.g. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.2015, proc. 1426/08.7TCSNT.L1.S1, de 19.1.2016, proc. 3316/10.4TBLRA.C1.S1 e de 11.2.2016, proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt. e na doutrina V.g. Miguel Teixeira de Sousa, comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.10.2015, proc. 212/06.3TBSBG.C2.S1, blog do IPPC, a propósito da suficiência de algumas referências apenas constantes nom corpo das alegações de recurso (não nas conclusões). que, no entanto e de um modo geral, impõem como fronteira a possibilidade da parte contrária compreender e do tribunal de recurso conhecer, sem esforço acrescido, a pretensão do recorrente, ou seja, de apreender o objeto do recurso sem ter que se substituir ao recorrente nessa tarefa que sobre si impende. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.05.2018, proc. n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1 e acórdão da Relação de Évora de 12.7.2018, proc. 581/15.4T8ABT.E1, ambos in www.dgsi.pt.
Temos assim como aceitável a indicação efetuada pela apelante, no corpo das alegações e nas conclusões, das passagens concretas da gravação de depoimentos para o conjunto dos factos impugnados (com a sua temporização ao minuto e ao segundo na gravação e transcrição), todos eles interrelacionados com matéria da ação/omissão ilícita da R. e as suas consequências danosas. A falta de indicação dos meios de prova ponto-por-ponto está, só por si, longe de significar uma impugnação genérica da decisão e de implicar um novo julgamento ou uma impugnação não especificada ou não circunscrita da decisão, indicados que foram, com absoluto rigor, os pontos impugnados e a decisão que, em sua substituição, a apelante pretende que seja proferida, assim como os meios de prova que considera relevantes.
Improcede a questão prévia da rejeição do recurso.
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As questões da apelação
Entende-se atualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, agora largamente acolhida no art.º 662º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do atual Código), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225., “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que“não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Usaremos os meios de provas e as regras de experiência, fazendo o devido juízo crítico com a mesma liberdade com que a 1ª instância o fez, motivados pela busca da verdade e pela realização da justiça material e concreta.
Citando Antunes Varela, escrevia já Baltazar Coelho Sob o título “Os Ónus da Alegação e da Prova, em Geral …”, Colectânea de Jurisprudência, Ano VII, T.I, pág. 19. que “a prova jurídica de determinado facto … não visa obter a certeza absoluta, irremovível da (sua) verificação, antes se reporta apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador ou, o que vale por dizer, apenas aponta para a certeza relativa dos factos pretéritos da vida social e não para a certeza absoluta do fenómeno de carácter científico”.
Na mesma linha, ensina Vaz Serra “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171. que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto.
A necessidade de esgotar, tanto quanto possível, a dúvida que resulta do confronto dos fundamentos da apelação com o teor da motivação da sentença e da argumentação utilizada nas contra-alegações da R. C…, S.A., que acusa a A. recorrente de descontextualizar alguns dos excertos de depoimentos, conduz-nos, com grandes vantagens, à audição integral das gravações dos depoimentos indicados por aquelas duas partes e à sua conjugação com os documentos juntos ao processo, realizando um juízo crítico livre e autónomo quanto à matéria impugnada, como imperativo de justiça, ao abrigo da primeira parte da al. b) do nº 2 do citado art.º 640º. Ouvimos ainda o depoimento da testemunha M…, a enfermeira que efetuou a admissão da A. no pré-operatório e confirmou a inexistência de impedimentos de natureza clínica à realização da cirurgia segundo os parâmetros de avaliação a que está obrigada.
K… é o cônjuge da A. Foi o familiar que mais a acompanhou nas deslocações aos serviços clínicos da R., desde logo no episódio de urgência que teve lugar no dia 16.9.2016, na consulta seguinte (dia 23.9. 2016) em que a A. foi remetida para a consulta de ortopedia por suspeita de fratura do tornozelo do pé direito e nas visitas seguintes até à data da alta hospitalar (26.9.2013). Conviveu regularmente com a A. no pós-operatório imediato e posterior à alta hospitalar, acompanhou-a pelo menos em grande parte das consultas que fez no hospital da R. para verificação do estado clínico e mudança de pensos a que foi submetida após se ter diagnosticado, em 30.9.2013, a existência de flictena no peito do pé direito e a lesão do calcanhar.
L… é filho da A. e da testemunha anterior e também visitou a mãe no hospital e depois do internamento. Sendo residente na mesma rua, referiu-se, sobretudo, às suas queixas álgicas, dificuldade em colocar o pé direito no chão, a uma mancha escura que permaneceu no peito desse pé e às dificuldade da mãe em aceitar aquela imperfeição no seu corpo, procurando escondê-la com o calçado. Não foi um depoimento revelador de conhecimento pormenorizado; o depoente não hesitou em afirmações como “não sei” ou “isso não me recordo”, aparentando-se, também por isso, de um modo geral, verdadeiro.
E… é o médico ortopedista, ainda hoje funcionário no hospital da R., executante da cirurgia ao maléolo direito em causa. Depôs sobre a forma como decorreu a operação cirúrgica, o seu sucesso, no geral, as causas e condições em que podem surgir as flictenas ou bolhas e edema na região da intervenção por aplicação de talas e o modo de reacção devida para tratamento. A sua explicação em tudo se mostrou lógica e coerente. Foi confrontado com as fotografias juntas com a petição inicial, aceitando-as facilmente como referentes aos pés da A., assim como a cicatriz como sendo resultante das flictenas que foram tratadas após o seu aparecimento confirmado na consulta pós-cirúrgica que marcara para o dia 30.9.2013. Alguma dificuldade em se recordar de certos pormenores do caso - dado o tempo já decorrido e a intensidade da sua vida diária profissional, com cerca de 300 cirurgias por ano - foram ultrapassadas pela análise dos elementos clínicos documentados nos autos, como o processo clínico, o diário de enfermagem e o exame médico-legal realizado pelo INML, elementos que já conhecia, mas reanalisou parcialmente em audiência. As explicações que deu para o aparecimento de edema e das flictenas foram de tal modo credíveis que qualquer pedido de reforço de fundamentação foi facilmente prestado pela testemunha, com segurança, sem sério e significativo rebatimento.
G…, H… e F… são as enfermeiras que lidaram mais proximamente com a A. durante o processo de recobro em internamento até à alta hospitalar do dia 26 de setembro. A primeira, que já não é funcionária da R., apenas no pós-operatório imediato (tarde e noite do dia da cirurgia), a segunda, no dia seguinte até às 22 horas e, a terceira, no dia 26, incluindo a alta hospitalar.
Não foi ouvida a médica que assistiu a A. no dia da urgência (Dr.ª J…), nem a médica responsável pela consulta do dia 23 de setembro que suspeitou da existência da fratura e remeteu imediatamente a A. para consulta da especialidade de ortopedia, do Dr. E….
Quer pela prestação do médico ortopedista, quer pelos depoimentos das referidas enfermeiras, temos como seguro afirmar que, caso existissem fictenas ou bolhas no pé direito da A. antes da cirurgia ou depois dela até à alta hospitalar, as mesmas teriam sido necessariamente objeto de registo clínico designadamente no processo clínico e no diário de enfermagem. A existirem antes, seriam mesmo impeditivas da cirurgia e, a existirem depois teriam que ser também anotadas como aconteceu a partir do momento da sua verificação, na consulta de 30 de setembro de 2013, data a partir da qual se iniciou também o seu tratamento. Nunca antes houvera queixa nesse sentido e a tala, colocada no final da cirurgia, foi revista (apenas) no momento da alta hospitalar, momento em que se verificou o bom estado do tornozelo e do pé, tendo-se feito constar do diário de enfermagem:
«(…)
Passou o turno sem queixas, na companhia de visitas.
(…)
- Penso da ferida cirúrgica no membro inferior direito com ligadura externamente limpa e seca + Tala gessada posterior + Inserção de um hemodreno com vestígios de conteúdo hemático na tubuladura. Tem indicação para remover o hemodreno às 48h. Apresenta membro inferior direito sem sinais aparentes de comprometimento neurovascular;
(…)».
Durante o internamento, a A. referiu dor moderada no pé direito, foi medicada especialmente e referiu melhoria de dor. O penso cirúrgico e a ligadura mostraram-se sempre extremamente limpos e secos.
Passou outras fases do curto internamento sem queixas álgicas ou outras, como se extrai também do diário de enfermagem.
As enfermeiras foram perentórias ao afirmarem que aquele relatório diário corresponde, como sempre, à realidade dos factos, confirmando-o sem qualquer rebuço ou reserva, considerando que até à data da alta hospitalar não existiam bolhas, flictenas ou qualquer situação de anormalidade que justificasse preocupação, encontrando-se o caso dentro da regularidade absoluta. Se assim não tivesse sido, outros seriam, seguramente, os elementos do registo diário.
A enfermeira F… esteve na alta hospitalar da A., confirma a retirada da tela naquela ocasião e a sua reposição, sem que fossem observados quaisquer sinais de inflamação ou comprometimento neuro-vascular. Estava tudo dentro da normalidade, afirmou também. Se naquela altura ou em qualquer outra a A. se tivesse queixado de excesso de pressão da tela sobre o pé, facilmente teria sido recolocada com menos tensão, como se imporia, se faria facilmente e se faz normalmente quando solicitado e justificado.
O Dr. E… deu conta de que o surgimento de edema, de bolha ou flitena é recorrente após as cirurgias com aplicação de talas, apresentando-se mais ou menos grave conforme fatores variáveis que determinam o aumento de pressão da tela sobre o corpo, na zona da sua aplicação e que pode resultar do inchaço do corpo nessa zona motivado por fatores variáveis, pessoais e normais, resultantes do traumatismo cirúrgico, abuso na utilização de gelo (causadora da queimadura) ou deficiente utilização do corpo (no caso a perna deveria permanecer quase sempre elevada, por recomendação médica), entre outros fatores.
Nunca chegaram à R. queixas da A. indicadoras de excesso de pressão da tela entre a cirurgia e a consulta de 30.9.2013; e também não chegaram às enfermeiras, por não constarem designadamente dos referidos registos documentais.
Logo que a fitina foi revelada, a R. tratou-a.
De acordo com processo clínico da A. documentado nos autos (pág. 720 do histórico) e confirmado pelas testemunhas responsáveis pelo tratamento (médico e enfermeiras G…, H… e F…), apenas se formou uma flictena, no peito do pé direito, entre a alta hospitalar e a consulta de 30.9.2013.
A prestação probatória do marido da A., a mais completa das testemunhas por ela indicadas e com melhor razão de ciência, por a ter acompanhado nas deslocações ao hospital e com ela habitar, observando as suas queixas (sempre subjetivas) e as suas limitações no decorrer do dia-a-dia, antes e depois da cirurgia, no sentido de “dores insuportáveis”, foi, no entanto, em larga medida, contrariada pelos dados clínicos objetivos documentados, plenamente justificados nos depoimentos dos profissionais clínicos, formando estes elementos probatórios um todo coerente de referência a factos que desmereceu a versão de K… e afastou a ideia de que a A. se queixou recorrentemente de dores anormais, imprevisíveis e insuportáveis. Aqueles dados clínicos apontam ainda, com pertinência, para o aparecimento da fitina no peito do pé entre os efeitos indesejáveis da utilização da tala (indispensável à estabilização da fratura pós cirurgia), mas como um risco normal dessa utilização, que pode ser atenuado pelo seu reajustamento, normalmente a pedido do lesado por ser este que sente maior ou menor desconforto, pressão ou dor.
De resto, tratou-se de uma tala em acrílico que percorreu apenas a parte posterior da perna direita, entre o joelho e o calcanhar, sendo a parte anterior coberta por peças de algodão e ligadura com elasticidade, ainda assim justificando-se a pressão, sem a qual a tala não surte o efeito estabilizador necessário.
Feita esta abordagem crítica à prova produzida, atendendo também às regras da experiência comum, e sem prejuízo de alguma melhor concretização ou explicação, entendemos que a matéria de facto impugnada deverá ser decidida como se segue.
Item 1º
Este ponto tem a ver com o episódio de urgência do dia 16.9.2013.
Do relatório médico respetivo (pág. 719 do histórico) não constam estes elementos. Porém, o facto de ter diagnosticado uma entorse, remetendo a doente para o domicílio, leva-nos a acreditar que afirmou não ter visto no RX tibiotársico qualquer problema ósseo, como referiu K… que assistiu à consulta.
Referiu o Dr. E… que, caso se tivesse evidenciado uma fratura (na articulação, onde, de facto ocorreu), a A. deveria ter sido remetida imediatamente para cirurgia ortopédica (não para a residência, apenas com repouso).
Este item transita parcialmente para os factos provados, com o seguinte teor esclarecido:
E1- A Dr. J…, no episódio de urgência de 16.9.2013, informou a A. de que não observava no RX efetuado qualquer problema a nível ósseo, mas sugeriu revisão em consulta de ortopedia e regresso à urgência para reavaliação, caso os sintomas piorassem ou persistissem.
Item 9º
A A. tem tez morena. A enfermeira F… que, no dia da alta hospitalar, fez o penso à A., teve que retirar a tala para mudar o penso cirúrgico, mas nada registou de anormal no diário de enfermagem. Se a pele estivesse escurecida no peito do pé poderia ser por haver alguma necrose, facto que não poderia deixar de ter sido registado. O médico-cirurgião foi muito claro ao afirmar que apenas dois dias depois da cirurgia é impossível o peito do pé apresentar negritude ou necrose cutânea. Quanto muito estaria em tom encarnado, por inchaço, o que sempre seria normal naquela situação traumática.
Esta matéria mantém-se não provada.
Item 11º
O médico confirmou ter constatado apenas uma flitena no peito do pé direito da A. no dia 30 de setembro de 2013. É o que resulta também dos documentos clínicos, assim se compreendendo o surgimento posterior da cicatriz revelada numa das fotografias juntas com a petição inicial. Mas o médico não confirma aquela afirmação e todo o seu depoimento, aparentemente isento e credível, por bem justificado, aponta no sentido de que não fez aquela afirmação ou que, se a fez, não terá excluído qualquer comportamento negligente da A. no pós-operatório nem a possibilidade desta se ter queixado de qualquer excesso de pressão, caso em que seria imediatamente aliviada.
De resto, a testemunha K… cita duas expressões diferentes que atribui ao médico para este mesmo facto: “isto não era necessário ter acontecido” e “isto não devia ter acontecido”.
Não estamos convencidos da utilização pelo médico de qualquer uma destas expressões, nem do sentido que a A. pretende tirar do item em causa.
Deve este ponto manter-se como “não provado”.
Item 13º
Quanto a este ponto, apenas está demonstrada uma cicatriz como resultado permanente da cicatrização do peito do pé, onde correu a flitena, facto que já foi dado como provado sob os pontos A”, B” e P”. Nada há a acrescentar-lhes.
Item 14º
Este ponto é manifestamente conclusivo e, como tal, não deve ser objeto de prova.
Item 15º
Ao pressupor uma omissão de deveres de cuidado por parte da R., este ponto também é conclusivo. Os danos sofridos pela A. já foram dados como provados nos pontos F”, P”,Q” e S”.
Item 16º
Do depoimento das testemunhas K… e filho, L…, em conjugação com os documentos clínicos e o relatório do INML de 23.5.2019, assim como dos depoimentos dos profissionais clínicos evidenciou-se que, por causa da flitena no peito do pé e da ulceração do calcanhar, a A. sentiu-se mais deprimida e necessitou de fazer recuperação a tais lesões durante cerca de 6 semanas. Porém, sendo comum ou, pelo menos, frequente, surgirem flitenas no pós-operatório ortopédico - embora nem sempre com sequelas aparentes e cicatriciais - não era imprevisível o seu surgimento e a necessidade de tratamento. Desconhece-se qualquer previsão inicial de tempo necessário para a recuperação da A., que, aliás, só retirou o material de osteossíntese cerca de 2 anos depois da cirurgia, pela mão do mesmo cirurgião.
As testemunhas K… e L… prestaram depoimento relevante nesta matéria, reconhecendo-se as maiores dificuldades passadas pela A. durante a sua recuperação da flitena e da lesão do calcanhar direito.
Assim, este ponto está parcialmente provado, como se segue.
- A A. sentiu grande tristeza por ter necessitado de recuperar da flictena do peito do pé e da lesão do calcanhar direito, durante cerca de 6 semanas, tendo ficado por isso mais dependente do apoio do seu marido, do filho e da nora, nomeadamente para fazer a sua higiene pessoal, preparar as refeições e desempenhar outras tarefas básicas do seu dia-a-dia.
Item 17º
Vão acompanhar a A. ao longo da sua vida a cicatriz cirúrgica com cerca de 7 cm de comprimento, disposta verticalmente e localizada no terço inferior da face lateral da pena direita e, além dela, uma área cicatricial hipocrómica, no dorso do mesmo pé, com bordos irregulares e rebordo hipercrómico acastanhado, com cerca de 5 cm por 2 cm, com ligeira reação queloide e sem retrações. Assim se observa nas fotografias juntas com a petição inicial e se descreve, sem qualquer oposição testemunhal, no relatório do INML.
Dá-se como provado, esclarecidamente:
- Vão acompanhar a A. ao longo da sua vida a cicatriz cirúrgica com cerca de 7 cm de comprimento, disposta verticalmente e localizada no terço inferior da face lateral da pena direita e, além dela, uma área cicatricial hipocrómica, no dorso do mesmo pé, com bordos irregulares e rebordo hipercrómico acastanhado, com cerca de 5 cm por 2 cm, com ligeira reação queloide e sem retrações, sendo aquela resultante do corte cirúrgico realizado na intervenção de 25 de setembro de 2013 e, a última, resultante da fitina no dorso do pé direito.
Item 18º
A matéria é manifestamente conclusiva, não pode ser objeto de prova.
Item 21º
Este ponto não está provado, como resulta já do que acima deixámos expresso. A análise crítica da prova não deixa dúvida quanto à possibilidade de surgirem bolhas ou flitenas causadas pelo aperto da tala, aperto este necessário à estabilização da fratura e à recuperação cirúrgica. Mas esse aperto, essa pressão exercida sobre a perna na zona da tala, sofre variações significativas ao longo do tempo, designadamente por inchaço ou edema que muito podem variar em função da condição pessoal de cada doente e da forma como utilizam o corpo, sendo de todo desaconselhável, no caso, deixar de manter o pé elevado, exceto por pequenos períodos de tempo indispensáveis à satisfação de necessidades primárias, ou fazer uso excessivo de gelo, para evitar queimaduras na zona da sua aplicação. Quando a A. saiu do hospital a pressão da tala era normal. Não se queixou então de excesso, nem em momento posterior até à consulta de 30 de setembro, onde a fictena foi observada.
Este ponto mantém-se como não provado.
Item 22º
As marcas cicatriciais são, pela experiência da vida, indesejadas e prejudiciais à vida em sociedade. Deixam os lesados tristes e algo diminuídos, dependendo o grau do prejuízo da sensibilidade de cada um. O sofrimento é muito pessoal, psicológico e subjetivo.
Os dados objetivos e os depoimentos dos familiares da A. levam-nos a acreditar que, no seu conjunto, a cicatriz cirúrgica e a área cicatricial resultante de fictena surgida no peito do pé reduzem um pouco (de modo nenhum anulam) a autoestima da A., causando-lhe algum desconsolo por tornarem desagradável o aspeto do pé direito. As conclusões do exame médico-legal apontam também neste sentido ao fixarem uma desvalorização permanente de 3 pontos (porém, considerando as duas cicatrizes).
Assim, dá-se como provado apenas e esclarecidamente:
- A cicatriz cirúrgica e a área cicatricial resultante de fictena surgida no peito do pé direito reduzem um pouco a autoestima da A., causando-lhe algum desconsolo por tornarem desagradável o aspeto do pé direito, evidenciado sem o uso de calçado ou com o uso de calçado aberto.
Termos em que procede parcialmente a impugnação da decisão proferida em matéria de facto.
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2. As consequências jurídicas da modificação daquela decisão e a responsabilidade civil
A recorrente não discorda do enquadramento jurídico efetuado na sentença. Antes parte da modificação da decisão proferida em matéria de facto que propôs para defender que a aplicação do Direito há de conduzir à procedência da ação. Como só parcialmente obteve aquela modificação factual, vamos reponderar a aplicação do Direito, atendendo agora à nova realidade demonstrada, averiguando se releva no âmbito qualificação que foi feita e da solução encontrada, de improcedência da ação.
A questão assenta na responsabilidade civil médica e na análise dos respetivos pressupostos.
Sustenta o Prof. Miguel Teixeira de Sousa In “O Ónus da Prova nas Ações de Responsabilidade Civil Médica”, comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”, Lisboa, 1996, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 127. que a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”; “em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art.º 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”.
Temos para nós que estas formas de responsabilidade médica não podem ser vista de forma estanque. Nesta possibilidade, de ser convocada a responsabilidade civil contratual e a responsabilidade extracontratual, dada a natureza obrigacional da relação jurídica estabelecida entre a A. e a R. e o direito pessoal e absoluto à proteção da saúde e da integridade física tutelado pelo princípio geral de responsabilidade civil delitual do art.º 483º, nº 1, do Código Civil, a jurisprudência tem-se inclinado par a aplicação das regras da responsabilidade contratual por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser também, em regra, mais favorável ao lesado. Acórdão. do Supremo Tribunal de Justiça de 136/12.5TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
A violação do contrato de prestação de serviços médicos acarreta responsabilidade civil (contratual) desde que o devedor da prestação (in casu, a R. através dos seus colaboradores: o médico e as enfermeiras ao seu serviço) tenha agido voluntariamente, em violação do contrato e com culpa, causando dano.
Qualquer que seja a natureza da responsabilidade civil que impende sobre o lesante, ela traduz-se numa obrigação de indemnizar, ou seja, de reparar os danos sofridos pelo ofendido.
Hoje é, aliás, tendencialmente pacífica aquela posição doutrinária no sentido de que, estando em causa atos médicos contratados entre o médico e o paciente, pelos quais se prestam serviços clínicos, como ocorre no caso em análise, existe um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as regras próprias do contrato de mandato, previstas nos art.ºs 1157º e seg.s, por força dos art.ºs 1154º e 1156º, do Código Civil, já que a lei não regula a contratação da prestação de serviços médicos de modo especial Cf., entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.7.2006, in Coletânea de Jurisprudência, T. I, pág. 144, e acórdão da Relação do Porto de 20.7.2006, nº RP200607200633598, in www.dgsi.pt. . Esta qualificação jurídica conduz-nos à responsabilidade contratual ou obrigacional, pela qual começaremos no tratamento da questão da responsabilidade que nos é colocada.
Os elementos da responsabilidade obrigacional não diferem, em grande parte dos seus aspetos, daqueles que dizem respeito à responsabilidade extracontratual ou aquiliana. Numa e noutra formas de responsabilidade é necessário que haja uma ação humana que constitua um ato ilícito, que haja culpa, um prejuízo e nexo causal, assim, uma relação de causa-efeito, entre o facto e o dano.
A responsabilidade contratual distingue-se da responsabilidade por atos ilícitos, sobretudo, pela natureza do ato ilícito que, naquela constitui a violação de uma obrigação, e pelas regras de distribuição do ónus da prova já que ali é imposta ao devedor a prova de que agiu sem culpa no incumprimento ou no cumprimento defeituoso da obrigação (art.º 799º, nº 1, do Código Civil), enquanto na responsabilidade aquiliana cabe a lesado a prova da culpa do lesante (art.º 487º, nº 1, do Código Civil), sendo a culpa, em qualquer caso, apurada com base num critério abstrato, pela “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso” (nº 2 de uma e outra disposições legais acabadas de citar).
Consta do acórdão da Relação de Lisboa de 8.01.2008, citado no acórdão da Relação do Porto de 16.11.2010 Com o nº RP201011161347/04.2TBPNF.P1, in www.dgsi.pt. , que “a atividade médica perdeu o carácter quase mágico de que durante muito tempo se revestiu, impeditivo não só da indagação sobre a bondade das práticas, mas sobretudo sobre a sua inadequação às situações sobre as quais incidiam, maxime em termos de eventuais erros cometidos, geradores da obrigação de reparar. A tal dessacralização não foram estranhas as sucessivas descobertas científicas, com constantes progressos no debelar de doenças ou lesões anteriormente tidas por fatais ou sem qualquer solução de alívio, muito menos de cura, aliadas a uma crescente massificação dos cuidados de saúde, não só em termos da procura de remédio, mas também no que concerne aos meios terapêuticos que devem ser utilizados para tanto e as consequências que deles podem decorrer”.
No que respeita a obrigações/deveres do médico, dispõe o artigo 31º (Princípio geral) do Código Deontológico da Ordem dos Médicos que “o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano”. Continua o n.º 1 do artigo 35º do mesmo diploma (Tratamentos vedados ou condicionados) que “o médico deve abster-se de quaisquer atos que não estejam de acordo com as leges artis”. Impõe o art.º 9º ainda do mesmo código (Actualização e preparação científica) que “o médico deve cuidar da permanente atualização da sua cultura científica e da sua preparação técnica, sendo dever ético fundamental o exercício profissional diligente e tecnicamente adequado às regras da arte médica (leges artis)”.
Tais disposições são eco do princípio proclamado no Código Internacional da Ética Médica segundo o qual “o médico deve ter sempre presente o cuidado de conservar a vida humana”, sendo, assim, sua obrigação prestar ao doente os cuidados ao seu alcance, de acordo com os seus conhecimentos e o estado actual da ciência médica, por forma a preservar-lhe a saúde na medida do possível. Tudo isto tem a ver com a leges artis, entendida como o conjunto de regras da arte médica, isto é, das regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico na concreta situação em que tal abordagem ocorre.
Nesta perspetiva, apesar de considerar o contrato médico um contrato de prestação de serviços, como a doutrina e a jurisprudência afirmam, o «resultado» a que alude o art.º 1154° do Código Civil deve considerar-se não a cura em si, mas os cuidados de saúde. O conceito de “resultado” no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente, enquanto obrigação de meios, como deve ser qualificada na grande maioria das prestações clínicas, corresponde ao esforço na ação diligente do diagnóstico e do tratamento, e não o resultado da cura que, no entanto, não deixa de ser o grande objectivo clínico, quando possível. A obrigação de meios (ou de pura diligência, como também é conhecida) existe quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”. Sustentam os defensores desta orientação que tal profissional só está obrigado a utilizar os meios adequados para atingir um certo diagnóstico ou definir uma terapia, não lhe sendo exigível alcançar qualquer resultado efetivo, ou seja, a cura do paciente, não assegurando nem podendo, naturalmente, assegurar a cura da sua enfermidade Miguel Teixeira de Sousa, Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica, pág. 125, Direito da Saúde e Bioética, AAFDL e Carlos Ferreira de Almeida, Os contratos civis de prestação de serviço médico, mesma revista, pág. 110.. Por regra, o desiderato pretendido não pode ser atendido para a invocação de incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, já que o médico apenas promete a diligência em ordem a obter um resultado, a prestação consistirá num “meio” de lograr o cumprimento. Aos médicos cabe a obrigação legal e contratual de desenvolver prudente e diligentemente, atento o estádio científico actual das leges artis, certa atividade para se obter um determinado efeito útil, que se traduza em empregar a sua ciência no tratamento do paciente, sem que se exija a este a obtenção vinculada de um certo resultado, como seja a “cura”.
O médico deve agir segundo as exigências da leges artis e os conhecimentos científicos então existentes, atuando de acordo com um dever objetivo de cuidado, assim como de certos deveres específicos, como seja o dever de informar sobre tudo o que interessa à saúde ou o dever de empregar a técnica adequada, que pode prolongar-se mesmo cipós a alta do paciente.
O ponto de partida para qualquer ação de responsabilidade médica é, assim, o da desconformidade da concreta atuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na mesma data. A responsabilidade médica supõe culpa por não ter sido usado o instrumental de conhecimentos e o esforço técnico que se pode esperar de qualquer médico numa certa época e lugar. Acórdão da Relação de Lisboa de 20.4.2006, Colectânea de Jurisprudência, T. II, pág. 110.
Sendo assim, age com culpa, não o médico que não cura, mas o médico que viole os deveres objetivos de cuidado, de tal forma que a sua conduta deva ser pessoalmente censurada e reprovada, culpa a ser apreciada, como se disse, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos dos art.ºs 487° nº 2, e 799°, nº 2, do Código Civil.
Não vemos razão que justifique a necessidade do afastamento da presunção de culpa prevista no nº 1 daquele art.º 799º quando seja respeitada a natureza da obrigação de meios a que o médico está adstrito.
Nesta perspetiva, caberá, antes de mais, ao credor da obrigação, ao lesado, a prova da ilicitude do ato, ou seja, que a conduta do médico é ilícita no sentido de que, objetivamente considerada, se mostra contrária ao Direito, com desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado, mais concretamente, o burden of proof do incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. Tratando-se de uma obrigação de meios, caberá ao credor (lesado) fazer a demonstração em Juízo de que a conduta (ato ou omissão) do devedor (ou prestador obrigado) não foi conforme com as regras de atuação suscetíveis de, em abstrato, virem a propiciar a produção do almejado resultado. Cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2010, citando acórdão também daquele tribunal superior de 5.7.2001, in Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 166 e seg.s e João Álvaro Dias, in “Da Natureza Jurídica da Responsabilidade Médica” – conf. João Álvaro Dias, pág. 225. É o lesado que tem de assumir o encargo probatório da violação da leges artis por parte do médico (assim, a ilicitude), enquanto este último deverá afastar o juízo de censurabilidade fazendo a prova de que naquelas circunstâncias, não podia e não devia ter agido de maneira diferente.
Como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.7.2010 Proc. 398/1999.E1.S1, in www.dgsi.pt. , neste tipo de contratos, o cumprimento defeituoso existe sempre que ocorra desconformidade entre as prestações devidas e aquelas que foram efetivamente realizadas pelo prestador do serviço médico. Considerando-se que o tratamento é defeituoso, em relação à obrigação principal quando seja desconforme com as “leis da arte médica”, com as leges artis, de harmonia com os estádios do conhecimento da ciência ao tempo da prestação dos cuidados de saúde. Só haverá violação ilícita do direito de outrem se a intervenção médica se processar ao arrepio das leges artis, também aqui se podendo falar em cumprimento defeituoso.
Em geral, para que haja culpa torna-se necessário que o agente não só conheça, ou tivesse que conhecer, o desvalor da ação que cometeu, como tenha a possibilidade de escolher a sua conduta e ainda que, nas circunstâncias concretas do caso, possa ser censurável a sua conduta, ou seja, é preciso não apenas que o facto seja imputável ao agente, mas que lhe seja censurável.
Sendo a culpa apreciada em abstrato, nela incorre o profissional clínico que agiu em desconformidade com a conduta que um profissional normalmente diligente teria tomado nas circunstâncias concretas, tendo em atenção aquela atividade clínica. A atuação do médico não será culposa quando, consideradas as circunstâncias de cada caso, ele não possa ser reprovado ou censurado por ter atuado como atuou.
A inobservância de quaisquer deveres objetivos de cuidado torna a conduta (do médico) culposa, sendo que a culpa se traduz na violação de um dever geral de diligência que o agente conhecia ou podia conhecer aquando da respetiva atuação e que comporta dois elementos: um de natureza objetiva – o dever concretamente violado – e outro de cariz subjetivo traduzido na imputabilidade do agente. A utilização da técnica incorreta dentro dos padrões científicos atuais traduz a chamada imperícia do médico, pelo que, se o médico se equivoca na eleição da melhor técnica a ser aplicada no paciente, age com culpa e consequentemente, torna-se responsável pelas lesões causadas ao doente. Cf. citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2010.
Dentro desta conceção, a lei inclina-se para a consideração da negligência como erro de conduta, a qual envolve a imperícia ou a incapacidade técnica do lesante, a sua falta de aptidão, mais que a simples deficiência da vontade, não esquecendo as atenuações da lei ao ordenar a apreciação da culpa em face das circunstâncias do caso concreto. André Dias Pereira, in Da Responsabilidade Civil por Actos Médicos – Alguns Aspectos”, polic., Lisboa, 2001, pág.s 29 a 34. A atuação do médico rege-se pela lex artis ad hoc, o que significa que é em relação ao preciso caso concreto situado temporalmente que a intervenção médica se afere, de acordo com as circunstâncias em que esta se desenrola. Só assim poderemos ponderar a qualificação de certo ato médico como conforme ou não com a técnica normal requerida. Manuel Rosário Nunes, ob. cit., pág. 54, na continuação da nota 94 da pág. 46.
Efetuadas estas considerações, cremos que a sentença recorrida foi assertiva quando ali se escreveu:
«Na sua maioria, os contratos de prestação de serviços médicos integram, como se referiu, uma obrigação de meios, não implicando, assim, a não obtenção do resultado final visado com os tratamentos e intervenções, a inadimplência contratual, cabendo por isso ao paciente provar a falta de diligência do médico, a falta de utilização de meios adequados de harmonia com as leges artis, o defeito do cumprimento, ou que o médico não praticou todos os atos normalmente considerados necessários para alcançar a finalidade desejada: é essa falta que integra erro médico e constitui incumprimento ou cumprimento defeituoso.
E só depois dessa prova funcionará, no domínio da responsabilidade contratual, a conhecida presunção de culpa. (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-03-2017, processo 6669/11.3TBVNG.S1, www.dgsi.pt, que aqui sigo de perto).
Como referem Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, em Responsabilidade Médica em Portugal (cit. por Dias Pereira, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, vol. 9 da coleção do CDB da FDUC, pág. 424), “só por absurdo se pode admitir que o doente, para obter uma indemnização, além de outros pressupostos gerais, tenha apenas de provar a não obtenção de um resultado, isto é, de forma típica, a não recuperação da saúde”, concluindo que “a natureza de obrigação de meios só tem por consequência que o paciente tenha de provar o incumprimento das obrigações do médico, isto é, tem de provar objetivamente que não lhe foram prestados os melhores cuidados possíveis”.
Deste modo, aos profissionais médicos ou outros não será assacada responsabilidade por facto ilícito se, nas concretas circunstâncias, usar da diligência que é exigível, cuja dimensão é medida segundo as leges artis, cujo cumprimento ou incumprimento, com relevo para efeitos de verificação ou não de responsabilidade civil, deve ser aferido em função do empenho, da diligência ou da aplicação dos conhecimentos e técnicas adequadas à concreta situação. Em tais circunstâncias, o facto de não ser alcançado o resultado projetado pelo interessado que solicita ou que é submetido aos serviços médicos não corresponde necessariamente a uma situação de incumprimento dos deveres legais ou contratuais, sendo relevante, isso sim, apreciar se existiu ou não incumprimento das leges artis que, em concreto, se mostravam exigíveis.
Nem as partes nem o intérprete podem deixar de ponderar que toda a atuação médica comporta uma certa margem de risco. Dependendo das concretas circunstâncias objetivas, assim será maior ou menor a possibilidade de o profissional de saúde controlar todo o processo, desde o diagnóstico da situação, à sua cura, passando pela prescrição ou pelo tratamento.
Como refere Álvaro Dias, “o ponto de partida essencial para qualquer ação de responsabilidade médica é, por conseguinte, a desconformidade da concreta atuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes, naquela data” (Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios, pág. 440).
(…)
Para Germano de Sousa, erro médico é «a conduta profissional inadequada resultante de utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorretas que se revelam lesivas para a saúde ou vida do doente» (J. Germano de Sousa, Negligência e Erro Médico, Boletim da Ordem dos Advogados, nº 6, pg 12-14).
Temos ainda quer o erro de diagnóstico, quer o erro de execução. Com efeito pode ocorrer um erro de perceção ou cognitivo (ausência de conhecimentos técnico-científicos, da errada interpretação da sintomatologia do paciente ou de dados laboratoriais, imagiológicos ou clínicos, ou um erro de diagnóstico, de profilaxia ou de terapêutica) ou um erro de execução (como o manejo indevido de instrumentos na realização do ato clínico ou cirúrgico ou troca de produtos farmacológicos no tratamento do paciente).
Caberá ao autor alegar e provar a desconformidade objetiva entre os ato praticados/omitidos e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais atos e o dano. O lesado tem de identificar e demonstrar a diligência devida, tem de individualizar uma concreta falta de cumprimento (ilícita) (Carneiro da Frada, Direito Civil, Responsabilidade Civil, p. 81).
Ou seja, o lesado/doente tem de demonstrar a inobservância de um dever específico por parte do devedor/médico. O ponto de partida essencial para qualquer ação de responsabilidade médica é a desconformidade da concreta atuação do agente, no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura.
(…)».
A doutrina dos deveres de proteção, acessórios em relação aos deveres principais do contrato Seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça a respeito da violação de outro direito absoluto, a propriedade, no acórdão de 1 de Julho de 2010, proc. nº 623/09.2YFLSB, in www.dgsi.pt. tem especial acuidade quando aplicada ao contrato de prestação de serviços médicos, no qual “a protecção dos ‘danos concomitantes’ é incorporada no vínculo contratual, na medida em que, ao lado da obrigação principal – a de curar, a de minorar o sofrimento, a de aumentar a expectativa de vida – existe uma obrigação de não causar danos noutros bens pessoais ou patrimoniais do doente, diferentes daquele que constitui o objecto do negócio jurídico.” Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, 2008, pág. 80.
No caso em apreciação, a obrigação principal - a função curativa do defeito ortopédico no pé direito - era acompanhada do dever de não afetar qualquer outro bem da A. A lesão cutânea verificada pode constituir o desrespeito de um tal dever.
Podemos estar perante um dever de agir com precaução, mas a prova da violação desse dever cabe também ao lesado enquanto elemento caraterizador do cumprimento defeituoso da obrigação.
Aliás, a recorrente não discordou diretamente da argumentação jurídica exposta na sentença, antes fundamentou o seu recurso numa determinada modificação da decisão em matéria de facto, sobre a qual esta mesma argumentação jurídica haveria de levar a um resultado diferente, de procedência da ação.
Embora nos pareça ser uma tese minoritária, Álvaro Dias Breves considerações em torno da responsabilidade civil médica, RPDC, 1993, Ano II, nº 3, 27/59. e Ribeiro de Faria Da prova na responsabilidade civil médica-Reflexões em torno do direito alemão, RFDUP, Ano I, 2004, 115/118. fazem até retirar da diferença entre os dois tipos de obrigações, de meios e de resultado, consequências ao nível da repartição do ónus da prova da culpa, existindo a presunção aludida no artigo 799º, nº 1 do Código Civil, na responsabilidade pelo não cumprimento das obrigações de resultado mas não na responsabilidade pelo não cumprimento das obrigações de meios, em que aquela presunção seria de afastar. Para maior desenvolvimento, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.1.2013, proc. 9434/06.6TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
A prova do nexo causal, como um dos pressupostos da obrigação de indemnizar e medida da mesma, cabe ao credor da obrigação, independentemente da sua fonte. É um dos pressupostos do direito que se aciona, com vista ao ressarcimento do dano (art.ºs 563º e 342º, nº 1, do Código Civil). Daí que o doente tenha de provar que um certo diagnóstico, tratamento ou intervenção foi omitido e conduziu ao dano, sendo certo que se outro ato médico tivesse sido (ou não tivesse sido) praticado, teria levado à cura, atenuado a doença, evitado o seu agravamento ou mesmo a morte, consoante o caso. É necessário estabelecer uma ligação positiva entre a lesão e o dano, através da previsibilidade deste em face daquela.
No citado art.º 563º quis adotar-se a teoria da causalidade adequada, segundo a qual determinada ação ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa ação ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar. Galvão Telles Manual do Direito das Obrigações, nº 229 e Direito das Obrigações, pág.s 409 e 410. Releva a relação que razoavelmente conduza à imposição ao agente da responsabilidade por esse mesmo resultado, só sendo causa jurídica de um dano no paciente, a conduta (culposa) do médico que, segundo um juízo a posteriori formulado, se revela idónea para a produção de tal resultado. Citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.7.2010.
Retomemos o caso concreto para dizer que nada se alterou em matéria de facto que releve ao nível dos pressupostos da ilicitude, do nexo causal e da culpa no que respeita aos atos praticados pelo médico ortopedista e pela equipa de enfermagem da R. desde o ato cirúrgico de 24.9.2013 até à cura clínica da fictena do dorso do pé direito e da lesão do calcanhar da A. Todos os factos novos, à exceção do indicado item 1º, concernem aos danos que a A. sofreu em consequência daquelas lesões e a sua ponderação - para efeitos indemnizatórios - só se justifica após a verificação dos anteriores pressuposto da responsabilidade civil.
Tal como decorre da sentença recorrida, os factos provados não consentem a extração da conclusão de que existiu cumprimento defeituoso quer da obrigação médica do cirurgião de agir segundo o critério de boas práticas acima enunciado, quer da obrigação da R. prestar os adequados cuidados de enfermagem que as circunstâncias do caso justificaram.
A cirurgia foi realizada imediatamente após efectuado o diagnóstico correto e não teve intercorrências. O pós-operatório envolveria, como envolveu, a verificação inevitável de dores e desconforto. É normal a existência de dores no período imediatamente posterior à cirurgia, designadamente no internamento que, no caso, foi de apenas dois dias. O grau de intensidade de dor é muito subjetivo e a equipa de enfermagem tomou os atos necessários que a boas práticas aplicáveis ao caso impunham: ora administrando a medicação analgésica prescrita pelo médico, ora recomendando medidas tendentes a permitir um alívio da dor, como sejam a colocação de gelo e a elevação dos membros inferiores. A A. foi melhorando das dores ao longo dos dias do internamento.
Não houve comprometimento neuro-vascular no membro operado, durante todo o período de internamento, sempre constando também que o penso da ferida cirúrgica estava externamente limpo e seco e que não apresentava quaisquer sinais de comprometimento. Quando, em 26.9.2013, foi retirado o hemodreno, a ferida cirúrgica foi lavada com soro fisiológico, a sutura não apresentava sinais de inflamação, não se tendo verificado então qualquer sinal de lesão na pele do pé direito da A., fosse no dorso do pé, fosse na zona lateral ou no calcanhar, relacionada com algum tipo de ulceração de pressão, nomeadamente flictena ou edema. A tala estabilizadora, então retirada, foi reposta, como se impunha, dando o médico alta hospitalar à A., com indicação dos cuidados a ter em ambulatório, designadamente que deveria manter o pé elevado, não poderia andar com o pé suspenso, e que deveria colocar um saco com gelo no membro operado.
A A. apresentou flictena pela primeira vez quando, no dia 30 de setembro regressou ao hospital para mudar o penso. Estava então em ambulatório desde o anterior dia 26. A flictena surgiu num daqueles 4 dias.
Desconhecemos as causas concretas do aparecimento da flictena no dorso do pé direito da A. e o edema no seu calcanhar. A A. não demonstrou qualquer relação causa-efeito entre a cirurgia ou os tratamentos pós-cirúrgicos e o aparecimento daquelas lesões do pé. Não demonstrou a A. que essas lesões resultaram da violação pelo cirurgião e pela enfermagem de boas regras de prática clínica, de que seria exemplo um método cirúrgico despropositado e errado, o uso de uma tala inadequada, excessivo aperto, necessidade de um internamento mais prolongado para vigilância da evolução da situação, ou a necessidade de observação do estado da doente por período mais curto no ambulatório.
Não está demonstrada, em face do conjunto de circunstâncias, uma prática clínica incorreta, violadora da leges artis. Não há prova de que o médico ou a equipa de enfermagem atuante, assim, a R. através dos seus colaboradores e auxiliares (art.º 800º, nº 1, do Código Civil), tivessem cumprido defeituosamente as suas obrigações funcionais, seja quanto à cirurgia (bem sucedida, aliás) seja quanto aos tratamentos posteriores. O surgimento da flitena/edema e todos os prejuízos não lhes é imputável, como assim também à R.
Ainda, na conclusão L) das alegações do recurso, a recorrente escreveu que a R. “não diagnosticou corretamente a lesão sofrida pela A. no pé, pois inicialmente diagnosticou com sendo uma simples entorse, tendo apurado uma semana depois tratar-se de uma fractura, a A. foi operada de imediato, operação que se não fosse a conduta da R. já teria ocorrido aquando do primeiro diagnóstico, ou seja, 8 dias antes, tudo isto evitando sobretudo que a A. sofresse as dores que sofreu”.
É verdade que a Dr. J…, no episódio de urgência de 16.9.2013, informou a A. de que não observava no RX então efetuado qualquer problema a nível ósseo. Todavia, na realidade, esse problema existia: uma “fratura meleolo peroneal direita oblíqua”, ou seja, uma fratura do tornozelo direito que - diagnosticado posteriormente - justificou uma intervenção cirúrgica imediata para redução e osteossíntese com dois parafusos interfragmentários, que teve lugar 8 dias depois, dia 24 no mesmo mês.
Um erro de diagnóstico não é necessariamente um erro médico relevante para efeito de responsabilidade.
Não esqueçamos que se tratou de um episódio de urgência, que foi sugerida revisão em consulta de ortopedia e regresso ao hospital para reavaliação, caso os sintomas piorassem ou simplesmente persistissem.
Presumivelmente, por terem persistido ou por se terem agravado as dores da A. ou outros sinais de alerta, esta regressou ao hospital no dia 23, tendo sido imediatamente dirigida par a consulta de ortopedia, por então se ter suspeitado de uma fratura óssea. Foi nesta última consulta que foi efetuado o diagnóstico correto e definitivo que conduziu à cirurgia no dia seguinte.
O exercício da medicina comporta um risco razoável e tolerável, a que não são alheias, designadamente, as condições da sua prática, a formação e os conhecimentos exigíveis do médico prestador do serviço, em cada caso concreto.
Conforme excerto da sentença recorrida, citando doutrina, e que atrás se transcreveu, “nem as partes nem o intérprete podem deixar de ponderar que toda a atuação médica comporta uma certa margem de risco. Dependendo das concretas circunstâncias objetivas, assim será maior ou menor a possibilidade de o profissional de saúde controlar todo o processo, desde o diagnóstico da situação, à sua cura, passando pela prescrição ou pelo tratamento”.
É sabido que o médico da urgência não é necessariamente um ortopedista, nem um médico experiente, ali sendo recebidas diariamente patologias muito diversas, algumas delas a implicar encaminhamento imediato para uma consulta de especialidade, outras nem tanto ou mesmo nada. A observação, na urgência, de um RX, por traumatismo num pé resultante de uma queda, não oferece as mesmas garantias que a leitura do mesmo exame por um médico da especialidade e com larga experiência profissional, em ambiente de consulta normal, e ainda assim, as leituras podem divergir em função a experiência do médico, da sua formação, da qualidade da imagem e de outros fatores muito variáveis.
Para além dos casos concretos de lesão grave e evidenciada em exame de diagnóstico, em que o doente deve ser imediatamente encaminhado para a especialidade, outros casos existem que, surgidos na urgência hospitalar, não justificam essa emergência, agindo-se então no sentido de aliviar a dor maior, na esperança de que o tratamento recomendado surta efeito sem necessidade de mais diligências clínicas. A urgência visa sobretudo o objectivo e por cobro ao sofrimento e não substituir ou antecipar muitas das vezes um tratamento que só a especialidade concede.
No segundo episódio de urgência, no dia 23, outra médica foi mais longe do que a médica da primeira consulta. Mas contou então já com os efeitos da evolução da situação e referiu que seria necessário a A. ser vista por um ortopedista.
Assim, e ainda que tendo falhado no diagnóstico, as circunstâncias em que agiu a Dr.ª J… e as reservas de diagnóstico que salvaguardou afastam o juízo de negligência que poderia relevar ao nível da responsabilidade da R. Não deixou de sugerir a existência de dúvida ao informar a A. da necessidade de revisão da situação em consulta de ortopedia e o regresso à urgência para reavaliação, caso os sintomas piorassem ou persistissem.
Este comportamento, nas referidas condições e circunstâncias em que a primeira abordagem de urgência foi efectuada, é razoavelmente tolerado pelo risco próprio do exercício da medicina, não sendo de situar ao nível da responsabilidade médica.
Também não há qualquer nexo causal entre o atraso (desculpável) na realização do diagnóstico definitivo e os prejuízos sofrido após a cirurgia cujo sucesso nem sequer foi posto em causa.
De resto, a própria A. terá compreendido isto aquando da dedução da petição inicial em cujos fundamentos descreve também esta situação inicial, mas sobretudo com sentido ilustrativo e globalizante, realçando e concretizando na descrição dos danos (respetivos art.ºs 44º e seg.s, e 68º e seg.s) os que considerou resultarem no estado pós-cirúrgico, por causa da cirurgia e do tratamento subsequente (ulceração/fictena e seus efeitos prejudiciais).
Nesta decorrência não se verificando os indispensáveis pressupostos da responsabilidade contratual, não há obrigação de indemnizar e o pedido da ação deve improceder.
Na improcedência do recurso, a sentença recorrida merece confirmação.
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SUMÁRIO (art.º 662º, nº 7, do Código de Processo Civil)
....................................................................................
....................................................................................
....................................................................................
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas da apelação pela A. recorrente, dado o seu total decaimento (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 8 de setembro de 2020
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
__________________________
[1] Por transcrição.
[2] Por transcrição.
[3] Proc. 2611/12.2TBSTS.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[4] Proc. 15787/15.8T8PRT.P1.S2, in www.dgsi.pt, também citado pela recorrida.
[5] 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, in www.dgsi.pt.
[6] V.g. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.2015, proc. 1426/08.7TCSNT.L1.S1, de 19.1.2016, proc. 3316/10.4TBLRA.C1.S1 e de 11.2.2016, proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] V.g. Miguel Teixeira de Sousa, comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.10.2015, proc. 212/06.3TBSBG.C2.S1, blog do IPPC, a propósito da suficiência de algumas referências apenas constantes nom corpo das alegações de recurso (não nas conclusões).
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.05.2018, proc. n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1 e acórdão da Relação de Évora de 12.7.2018, proc. 581/15.4T8ABT.E1, ambos in www.dgsi.pt.
[9] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[10] Sob o título “Os Ónus da Alegação e da Prova, em Geral …”, Colectânea de Jurisprudência, Ano VII, T.I, pág. 19.
[11] “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171.
[12] In “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”, Lisboa, 1996, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 127.
[13] Acórdão. do Supremo Tribunal de Justiça de 136/12.5TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[14] Cf., entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.7.2006, in Colectânea de Jurisprudência, T. I, pág. 144, e acórdão da Relação do Porto de 20.7.2006, nº RP200607200633598, in www.dgsi.pt.
[15] Com o nº RP201011161347/04.2TBPNF.P1, in www.dgsi.pt.
[16] Miguel Teixeira de Sousa, Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica, pág. 125, Direito da Saúde e Bioética, AAFDL e Carlos Ferreira de Almeida, Os contratos civis de prestação de serviço médico, mesma revista, pág. 110.
[17] Acórdão da Relação de Lisboa de 20.4.2006, Colectânea de Jurisprudência, T. II, pág. 110.
[18] Cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2010, citando acórdão também daquele tribunal superior de 5.7.2001, in Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 166 e seg.s e João Álvaro Dias, in “Da Natureza Jurídica da Responsabilidade Médica” – conf. João Álvaro Dias, pág. 225.
[19] Proc. 398/1999.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[20] Cf. citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2010.
[21] André Dias Pereira, in Da Responsabilidade Civil por Actos Médicos – Alguns Aspectos”, polic., Lisboa, 2001, pág.s 29 a 34.
[22] Manuel Rosário Nunes, ob. cit., pág. 54, na continuação da nota 94 da pág. 46.
[23] Seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça a respeito da violação de outro direito absoluto, a propriedade, no acórdão de 1 de Julho de 2010, proc. nº 623/09.2YFLSB, in www.dgsi.pt.
[24] Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, 2008, pág. 80.
[25] Breves considerações em torno da responsabilidade civil médica, RPDC, 1993, Ano II, nº 3, 27/59.
[26] Da prova na responsabilidade civil médica-Reflexões em torno do direito alemão, RFDUP, Ano I, 2004, 115/118.
[27] Para maior desenvolvimento, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.1.2013, proc. 9434/06.6TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[28] Galvão Telles Manual do Direito das Obrigações, nº 229 e Direito das Obrigações, pág.s 409 e 410.
[29] Citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.7.2010.
Homicídio por Negligência
Negligencia Medica
Legis artis
30/01/2019
Recurso Penal
A violação do dever de cuidado objetivamente devido é elemento essencial e característico do tipo de ilícito negligente, com o que se pretende designar a violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, para evitar o preenchimento de um tipo objetivo de ilícito.
II - Entre os critérios concretizadores do cuidado objetivamente devido importa destacar os seguintes:
- As normas corporativas, normas (não jurídicas) fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos destinadas a conformar as atividades respetivas dentro de padrões de qualidade e, nomeadamente, a evitar a concretização de perigos para bens jurídicos que de tais atividades pode resultar, como é o caso das legis artis da atividade médica.
- Os costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional padrão. O critério é a não correspondência do comportamento àquele que, em idêntica situação, teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e consciencioso.
III - A violação do dever de cuidado tanto pode traduzir-se numa ação como numa omissão; neste último caso é necessário que sobre o agente recaia um dever de garante.
IV - A negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, procurar saber que comportamento era objetivamente devido numa situação de perigo em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro lado, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.
V - Numa cirurgia com internamento, há legis artis impostas por “guide lines” comummente seguidas na prática médica e hospitalar. A vigilância pós-operatória por médico especialista é fundamental e, por regra, cabe ao anestesiologista o dever de vigiar o restabelecimento da capacidade geral de funcionamento do organismo do paciente, competindo-lhe, também, o controlo efetivo da saída do doente da unidade de cuidados pós-anestésicos.
VI - Se depois de intervenção cirúrgica (adenoidectomia e meringotomia), no pós-operatório, entre as 9:45 e as 16:45 a doente criança teve sete vómitos com vestígios de sangue, a persistência dos vómitos não pode ser considerada uma ocorrência normal e exigia que a criança fosse observada por um médico e reavaliado o seu estado clínico. Se assim não aconteceu e a criança acabou por ser transferida para o serviço de pediatria, por ordem do arguido, sem qualquer informação e sem que a situação clínica fosse reavaliada, concluiu-se que o arguido não procedeu com o cuidado devido a que estava obrigado e era capaz.
VII - Abandonando o arguido o Centro Hospitalar sem cuidar de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da criança nem tratando de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes sobre a criança, também, deste modo, violou o seu dever de cuidado.
VIII - A decisão sobre a existência, ou não, de nexo causal entre uma conduta omissiva do arguido e o resultado morte compete ao tribunal e não aos peritos.
IX - Não tendo o juiz conhecimentos técnico-científicos de medicina, as conclusões dos peritos médicos e os pareceres dos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos são fundamentais para o juízo sobre a violação, ou não, das legis artis pelo médico e na avaliação da existência, ou não, dessa relação de causalidade, mas, na reconstituição histórica dos factos, o tribunal não pode ater-se, exclusivamente, a esses meios, antes se lhe impõe que proceda a uma avaliação complexiva e contextualizada da atuação do agente, levando em consideração a globalidade das circunstâncias e fatores, endógenos e exógenos, e meios disponibilizados para o juízo de prognose póstuma que tem de formular.
X - Se o arguido com a sua experiência e saber não tratou de obter elementos necessários para diagnosticar a patologia na paciente a seu cargo e sob a sua vigilância e iniciar, o mais precocemente possível, o seu tratamento, terá de concluir-se que não foi um profissional previdente e por isso terá de ser penalmente responsabilizado pelas consequências da sua conduta negligente.
Processo n.º 15849/13.6TDPRT.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 15849/13.6 TDPRT, corre termos pelo Juízo Criminal da Instância Local de Penafiel, Comarca de Porto Este, B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de omissão de tratamentos médico-cirúrgicos e um crime de homicídio por negligência, previstos e puníveis, respetivamente, pelos artigos 150.º e 137.º, n.º 2, do Código Penal.
C… e D…, melhor identificados nos autos, requereram e foram admitidos a intervir nos autos como assistentes.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença (fls. 710 e seg.s), datada de 03.05.2018 e depositada na mesma data, que absolveu o arguido da acusação de ambos os crimes que o Ministério Público lhe imputava.
Inconformados, quer o Ministério Público, quer os assistentes interpuseram recurso da sentença absolutória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados nas respetivas motivações, que condensaram nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
Recurso do Ministério Público
«1 - O tribunal a quo absolveu o arguido B… da prática do crime de omissão de tratamentos médicos e cirúrgicos e de homicídio por negligência, p. (s) e p. (s) respetivamente, pelos artigos 150.º e 137.º, n.º 1 e 2, todos do C. Penal.
2 - Não se conformando com a decisão proferida quanto ao crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2 do C. Penal, vem o Ministério Público interpor recurso da decisão proferida que se fundamenta tão só na afirmação do nexo de causalidade da conduta omitida pelo arguido e a produção do resultado morte, devendo tal nexo de causalidade ser dado como provado.
4 - Com efeito, entendeu a Mm.ª Juiz a quo ter resultado não provado da prova produzida em audiência de julgamento que se o arguido tivesse procedido como devia e estava obrigado, fazendo uma avaliação clínica da E… antes da sua transferência e enquanto esteve no Recobro II teria prescrito uma medicação e/ou teria pedido uma gasometria, considerando assim não verificado o nexo de causalidade entre o comportamento omissivo e a produção do dano morte.
5 - Entende porém o Ministério Público que o acervo fáctico que resultou provado da audiência de julgamento é suficiente para afirmar o nexo de causalidade na medida em que o comportamento omissivo do arguido potenciou o risco de morte, o que veio efetivamente a suceder.
6 - Na verdade, tendo resultado provado que “o acompanhamento e a vigilância da E… no período pós-operatório imediato, Recobro I e Recobro II eram da responsabilidade do médico anestesista, in casu, o arguido;
7 - Que a persistência dos vómitos, decorridas duas/três horas de período pós-operatório (tendo em conta a cirurgia realizada), impunha que o estado clínico da E… tivesse sido reavaliado, o que cabia in casu ao arguido (anestesista responsável pela cirurgia), o que não aconteceu;
8 - Que, o arguido abandonou as instalações do Centro Hospitalar sem observar e reavaliar a situação clínica da E…; sem cuidar de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da E…; sem cuidar de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes;
9 - E que, o arguido não procedeu com o cuidado que era devido, a que estava obrigado e era capaz, tendo em conta o estado da paciente e a sintomatologia que esta após a cirurgia e no período que estava sob a sua responsabilidade apresentou;
10 - Entende o Ministério Público que é forçoso concluir que a conduta omitida pelo arguido B… podia, com toda a probabilidade evitar o evento.
Com efeito,
11 - A afirmação do nexo de causalidade deve ser feita, in casu, com recurso à denominada "conexão do risco", de acordo com a qual a ação esperada ou devida dever ser uma tal que teria diminuído o risco de produção do resultado, a menos que se comprove (posteriormente ao evento) que a ação omitida em nada teria servido para evitar o evento.
12 - O não cumprimento dos deveres de vigilância e acompanhamento por parte arguido B…, que depois da cirurgia não mais observou a E… abandonando-a á sua sorte, não permitiram que outros sintomas da Hiponatremia, para além dos vómitos e náuseas, pudessem ser detetados ou detetados de forma precoce.
13 - O arguido desvalorizou a persistência dos vómitos, mesmo decorridos mais de duas horas após a cirurgia, e deu indicação que a E… fosse transferida para a Pediatria sem reavaliar o seu estado clínico, sem tentar perceber se a persistência dos vómitos eram sintomas de que algo de errado se passava e sem cuidar de que outro médico o fazia, omitindo a assistência médica a que a E… tinha direito.
14 - A Hiponatremia é frequente em contexto pós-operatório, de instalação rápida nas crianças, em alguns casos assintomática, o que não podia ser nem era ignorado pelo arguido, anestesista há mais de vinte anos.
15 - O Ministério Público não tem dúvidas de que com o seu comportamento o arguido aumentou o perigo de vida e o risco de morte da E…, afirmando-se portanto o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado».
Recurso dos assistentes
«A - A sentença de que ora se recorre violou os artigos 130, nº 2, 410.º, n.º 2, a) e c) do C.P.P. e art. 32.°, n.° 2, da CRP.
B - De referir, desde logo, que na literatura médica e como resulta de toda a prova produzida nos autos, a hiponatremia é o distúrbio hidroelectrolítico mais comum em pacientes hospitalares.
C - Tal como concluiu a perícia de anestesiologia, sabendo da alta probabilidade da instalação de hiponatremia numa criança de 4 anos, cabia ao Arguido avaliar a mesma, procedendo ao diagnóstico e ao tratamento mais precoce, o que teria certamente evitado a morte.
D - Na Sentença de que se recorre reduziu-se o tribunal ao facto de não resultar provado o excesso de soro profundido,
E - Sendo certo que, como resulta da perícia em apreço, cabia ao Arguido a perceção ou atempado conhecimento em conjunto com sinais clínicos.
F - Com a sua conduta omissiva e grosseiramente negligente, atenta a sua retirada do hospital sem sequer informar os seus pares, o Arguido conformou-se com o desfecho verificado, não cuidando de avaliar a menor,
G - Mas, sobretudo, sabendo da vulgaridade do quadro de hiponatremia no contexto pós-operatório (especialmente em crianças de tenra idade) a sua conduta manifestamente criou ou aumentou um risco para a vida da menor.
H - Na verdade, atentos os sucessivos vómitos, tendo a menor já tomado a respetiva medicação, tal como referido pelo perito de anestesiologia, persistindo tal quadro impunha-se uma avaliação médica da menor.
I - Ao não avaliar, o Arguido criou e aumentou claramente o risco da morte da menor.
J - Apesar de referir a Sentença que não ignorou o que nos diz a teoria da conexão do risco, na verdade olvidou em absoluto tal teoria.
L - A gasometria trata-se de um ato médico (como ficou expresso pelos vários depoimentos prestados), apenas estando presente junto da menor poderia o Arguido prescrever tal exame e assim evitar o desfecho verificado.
M - Estivera o Arguido presente e teria diminuído ou extinguido qualquer risco para a vida da menor.
N - Pelo que, contrariamente ao raciocínio plasmado na sentença, a ausência do Arguido veio claramente aumentar o risco da produção do resultado morte.
O - Houvera a Meritíssima Juiz a quo considerado efetivamente a teoria da conexão do risco nos crimes praticados por omissão e redundaria tal interpretação da doutrina e do tipo legal de crime em apreço na condenação do Arguido.
P - Pelo que deveria ser considerado como provado que a reavaliação clínica da menor diminuiria o risco da produção do evento.
Q - Assim, e em consequência, se condenando o Arguido pela prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137º, nº 1 e 2, 13º e 15º, todos do C.P.».
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Admitidos os recursos (despacho a fls. 760) e notificado o arguido, veio este responder à motivação de ambos, rematando com o seguinte quadro conclusivo:
«1. Considerando o teor dos recursos interpostos, verifica-se que o âmbito do presente recurso circunscreve-se ao crime de homicídio por negligência.
2. Entre os factos provados, saliente-se que a E… foi transferida para o Serviço de Pediatria, estando acordada, colaborante e sem dores, sendo que, imprevisivelmente, cerca de meia hora depois iniciou convulsões generalizadas.
3. Sendo que não se provou que: i) "A observação e a reavaliação clinica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, e perante a sintomatologia que apresentou teria permitido a perceção e o atempado conhecimento do excesso de volume de soro profundido, teria permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce e teria evitado o resultado morte"; ii) "O arguido representou como possível que ao agir como descrito daí poderia advir a morte da E…, atuando, porém, sem se conformar com essa realização.
4. Ou seja, como refere a sentença recorrida, não resultou provado que a observação e reavaliação clínica da E… pelo arguido, antes da sua transferência para pediatria, teria permitido um diagnóstico e um tratamento mais precoce que teria evitado o resultado morte; inclusivamente, como referiu em audiência a médica pediatra que assistiu a menina, Dra. F…, a hiponatremia nas crianças instala-se de forma muito rápida e normalmente é, até assintomática, não se sabendo se com a realização da gasometria em momento anterior se teria diagnosticado essa patologia, por os valores poderem estar normais.
5. Aliás, conclui-se de toda a prova dos autos (testemunhas e relatórios), sem margem para dúvidas, que: i) O resultado produzir-se-ia independentemente da alegada comissão do arguido; ii) Não existe nexo causal entre o dever alegadamente violado pelo arguido e o resultado que se veio a verificar.
6. Em face disto, não poderia haver outro enquadramento jurídico diferente do que consta da sentença recorrida.
7. Concretamente, porque não resultou provado que, ao não proceder à reavaliação clinica da vítima não diminuiu o risco da produção do evento (inexistência do nexo de causalidade entre o comportamento omissivo e violador de um dever objetivo de cuidado do arguido e a produção do dano morte), vai o arguido absolvido do crime de homicídio por negligencia, previsto e punido pelo artigo 137°, n°1 e 2 do Código Penal por que vinha acusado.
8. Não estão, pois, preenchidos os pressupostos necessários para condenar o arguido pelo crime de homicídio por negligência (muito menos grosseira) de que vem acusado.
9. Pelo que a douta sentença ao absolver o arguido cumpriu a Lei e o Direito e, assim, decidiu bem».
Subiram os autos ao tribunal de recurso e, já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, de que destacamos as seguintes passagens:
«Haverá responsabilidade penal do arguido, por negligência, se se provar, por um lado, que ele não atuou com a diligência que, segundo as circunstâncias concretas, era exigida para evitar o evento, violando deveres decorrentes da lei ou do uso e experiência comum, e, por outro, que só o facto de o arguido ter omitido esses deveres impediu a justa previsão do resultado, previsibilidade e dever de previsão, que, como refere Eduardo Correia, in Direito Criminal, I, pg. 426, “…não são todavia uma previsibilidade absoluta mas uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem”.
Há, portanto, possibilidade de negligência se se considerar que o arguido, tendo tido, pelo menos, a possibilidade de representar o perigo da sua conduta (negligência inconsciente), violou os deveres de previsão do resultado típico, atuando sem as cautelas que a lei, a experiência comum ou a experiência da classe profissional em que está inserido lhe exigem e cuja observância evitaria aquele resultado.
Atentemos na cronologia dos factos ocorridos no dia 16/11/2013:
Parece-nos claro, face à descrita factualidade, que o arguido errou ao não observar presencialmente a E… e a evolução do seu quadro clínico, violando os deveres a que estava adstrito em função da profissão que exercia e das tarefas que, em concreto, lhe competiam, no que se refere à observação e vigilância do estado de saúde da E… no “pós-operatório” imediato.
Dito isto, salvo o devido respeito, não nos parece admissível afastar a responsabilidade penal do arguido – sem incorrer em manifesto erro de apreciação da prova – afirmando que, tendo embora errado por não ter observado presencialmente a E… e a evolução do seu estado clínico, não se pode, no entanto, dar como assente que, caso tivesse ocorrido essa observação presencial, o arguido teria determinado a realização dos exames que permitiriam um diagnóstico precoce e a realização dos tratamentos adequados a evitar o desfecho fatal.
A verdade é que – como revela a matéria provada e resulta das regras da experiência – perante a persistência dos sintomas, a evolução do quadro clínico e a tenra idade da E…, um médico anestesista experiente (como era o arguido) e normalmente diligente, teria determinado a realização de exames tendentes a averiguar as causas da anormalidade da evolução do quadro clínico apresentado pela E… e a permitir, como é lógico e normal, o diagnóstico e o tratamento mais precoce da hiponatremia, suscetível de evitar a morte.
Não tendo procedido dessa forma – e não se tendo sequer disposto a observar presencialmente a E…, apesar da persistência dos sintomas para além do tempo considerado normal e da evolução do quadro clínico, atuando com ligeireza – o arguido, médico experiente, podendo e devendo representar o perigo da sua conduta, violou o dever de cuidado a que sabia estar obrigado, ao deixar de providenciar pela realização dos exames clínicos e atos médicos que a situação impunha e assim desprezando, necessariamente, o significativo (não desprezível) e acrescido grau de probabilidade de sobrevivência da E… que aquela intervenção teria proporcionado.
Procedendo como procedeu, o arguido, voluntária, livre e conscientemente, deixou de poder controlar a situação, ficando a integridade do bem jurídico em causa (a vida humana) dependente do acaso, o que, na nossa perspetiva, o torna passível de censura penal, a título de negligência.
É, pois, patente, na nossa ótica, face ao texto da sentença e às regras da experiência, que o tribunal a quo errou na apreciação da prova, e incorreu no vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P. Penal, impondo-se que sejam dados como provados os seguintes factos:
- A observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, e perante a sintomatologia que apresentou, teria permitido a perceção e o atempado conhecimento do excesso de soro profundido, teria permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce e teria evitado o resultado morte [ponto 6 dos factos não provados].
- O arguido podia e devia ter representado o perigo da sua conduta para a vida da E… e atuado por forma a evitar o resultado verificado, o que só não logrou por ter agido sem as cautelas que as legis artis e a experiência da classe profissional em que estava inserido lhe exigiam e a sua própria experiência profissional lhe permitia.
- Sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei penal [ponto 8 dos factos não provados].
Assim e uma vez que o tribunal de recurso dispõe, para tal, de todos os elementos necessários, entendemos que, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 426º, n.º 1, do C.P. Penal, deve, neste âmbito, proceder à pertinente alteração da decisão sobre matéria de facto, determinando que passem a constar do elenco dos factos provados os factos que vimos de referir».
Conclui, então, o Ex.mo PGA no seu parecer que o recurso deve proceder e, em consequência, que seja
a) declarado verificado o vício a que alude a alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P. Penal – erro notório na apreciação da prova e, consequentemente,
b) alterada a decisão sobre a matéria de facto, como acima propugnado, e
c) revogada a sentença absolutória, seja o arguido B… condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137.º, n.º 1, e 15.º, al. b), do C.Penal.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, com resposta do arguido a rebater as conclusões do parecer do Ex.mo PGA quanto à existência, na sentença recorrida, do vício de erro notório na apreciação da prova e que, por isso, se impõe a alteração da decisão sobre matéria de facto.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II – Fundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, in www.dgsi.pt) e, portanto, delimitam o objeto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso (como são as nulidades da sentença e os vícios decisórios em matéria de facto).
O Ministério Público recorrente não impugna a decisão sobre matéria de facto, pois afirma que “o acervo fáctico dado como provado é suficiente para afirmar o nexo de causalidade entre o comportamento omissivo do arguido e o resultado morte”.
Parece, assim, que a sua discordância em relação à decisão recorrida se cinge à subsunção jurídico-penal dos factos considerados provados.
No entanto, os assistentes alegam que a sentença recorrida está afetada pelos vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e pelo erro notório na apreciação da prova.
Erro notório na apreciação da prova é, como já sabemos, o vício decisório que, também o Ex.mo PGA, no seu parecer, aponta à sentença em crise.
Podemos, pois, enunciar como questões a apreciar e decidir:
- se há vícios decisórios que inquinem a sentença recorrida;
- se, mesmo em face da factualidade provada, é possível afirmar o nexo de causalidade (ou nexo de adequação causal) entre uma eventual conduta omissiva do arguido e a morte da E….
Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade considerada provada e não provada.
Factos provados
2. À data da ocorrência dos factos que se descreverão, o arguido exercia funções de Assistente Graduado Sénior de Anestesiologia no Centro Hospitalar G…, sita …, n.º …, …, área desta comarca e era também Coordenador da Unidade de Cirurgia do Ambulatório daquele Centro Hospitalar.
3. A menor E…, nascida a .. Maio de 2009, filha de D… e de C…, desde 2012 era acompanhada no Centro Hospitalar G…, na consulta externa de Otorrinolaringologia pela médica I….
4. Com diagnóstico de adenoides, a menor foi indicada para realização de cirurgia adicional em ambulatório, designadamente de adenoidectomia e miringotomia, tendo sido realizada uma consulta pré-anestésica em 13 de Setembro de 2013 efetuada pela médica J…, Assistente de Anestesiologia, que constatou que a criança não tinha antecedentes patológicos relevantes, com exceção das adenoides.
5. No dia 16 de Novembro de 2013, cerca das 08H40M, no Centro Hospitalar G…, a equipa médica composta por K…, Médica Assistente de Otorrinolaringologia, I…, Médica Assistente Graduada de Otorrinolaringologia, e B…, Assistente Graduado sénior de Anestesiologia aqui arguido, foi responsável pela intervenção cirúrgica realizada à menor E….
6. Compunham ainda a equipa três enfermeiros, enfermeiro instrumentista L…, enfermeiro circulante M… e enfermeira de anestesia N….
7. A cirurgia iniciou-se às 08H40M e terminou às 09H05M, decorreu sem intercorrências tendo sido da responsabilidade da médica, K….
8. Após a cirurgia a E… foi levada para a sala de Recobro I, onde se queixou de dores de garganta cerca de 10 minutos após a cirurgia tendo o arguido prescrito 1 mg de morfina.
9. A E… manteve-se no Recobro I até cerca das 09H45M, altura em que passou para a sala de Recobro II, por se encontrar hemodinamicamente e em termos de função respiratória estável, aí permanecendo acompanhada pela mãe, C….
10. De acordo com a "Folha de Enfermagem", entre as 9H45M e as 16H 15M, altura em que a E… foi transferida para o Serviço de Pediatria, foram registados pelo menos 7 (sete) vómitos por parte da E… sem que esta fosse observada por um médico e fosse reavaliado o seu estado clínico.
11. Entre as 9H45M e as 11H50M, a E… teve três vómitos com sangue semi-digerido e, contactado o arguido, este deu instruções para que lhe fosse administrado 1 mg de Ondasetron e 0,625 mg de Droperidol IV.
12. A E… adormeceu por período não determinado e cerca das 13H40M, acordou e teve mais dois vómitos alimentares com vestígios de sangue após ter ingerido uma pequena quantidade de gelatina e sumo.
13. Cerca das 14H, posto ao corrente do sucedido, o arguido determinou que lhe fosse administrado 2,5 mg de Dexametasona e que reiniciasse soroterapia.
14. Às 15H20M a E… teve um outro vómito desta feita com secreções e vestígios de sangue e às 16H05M, voltou a ter outro vómito aquoso e com vestígios de sangue, pelo que a enfermeira N… considerando que a mesma não poderia ter alta entrou em contacto, via telefone, com o arguido, que após contacto com o Assistente Hospitalar de Otorrinolaringologia, Dr. O…, determinou que a E… não teria alta e ficaria em vigilância no serviço de internamento de Pediatria.
15. A hora não determinada mas cerca das 16H30M, a E… foi transferida para o Serviço de Pediatria onde se encontravam as enfermeiras P… e Q…, estando acordada, colaborante e sem dores.
16. Cerca das 17H, a E… referiu dores e passado alguns minutos encontrava-se com olhar fixo e diminuição de resposta a estímulos verbais tendo iniciado convulsões generalizadas.
17. Contactado o serviço de urgência de pediatria do G… a médica pediatra, D… efetuou a primeira observação da E… por voltas das 18H, efetuando uma avaliação conjunta com o médico S….
18. Face à ausência de registos clínicos que permitissem perceber se tinha existido alguma intercorrência durante a cirúrgica bem como a medicação que a E… até ao momento tinha feito, os clínicos tentaram falar com o arguido, contactando-o telefonicamente, sem sucesso, acabando tal informação por lhes ser transmitida pela enfermeira N….
19. Face ao quadro clínico que E… apresentava designadamente, oscilação do estado de consciência e movimentos anómalos dos membros, a médica F…, determinou a realização de TAC e Gasimetria, tendo concluído através da análise dos resultados obtidos, designadamente pelos valores de sódio no sangue, que se tratava de uma Hiponatremia grave (caracterizada por uma baixa de sódio no sangue).
20. Face ao tal diagnóstico a E… iniciou o tratamento para a Hiponatremia, foi sedada, entubada e transferida via TIP (transporte inter-hospitalar pediátrico) para a unidade de cuidados intensivos pediátricos do Hospital T…, onde deu entrada cerca das 23H09M, com o seguinte diagnóstico "Coma. Edema Cerebral. Hiponatremia sintomática" e suspeita de "morte cerebral".
21. O óbito da E… veio a ser declarado no dia 19 de Novembro de 2013, às 02H13M.
22. Realizada autópsia médico-legal ao cadáver de E…, o perito médico-legal concluiu que a morte foi devida a "trombose dos seios venosos da dura mater" sendo esta causa de morte natural.
23. O acompanhamento e vigilância do doente no período pós-operatório imediato, no Recobro I e Recobro II, está essencialmente sob responsabilidade do médico anestesista.
24. E, pese embora, o surgimento de vómitos seja um evento normal, com cerca de duas/três horas de período pós-operatório (tendo em conta a cirurgia a que havia sido submetida e morfina que lhe foi prescrita), a persistência destes sintomas impunha que o estado clínico da E… tivesse sido reavaliado, o que cabia in casu ao arguido, anestesista responsável pela cirurgia, o que não aconteceu.
25. Ao invés, o arguido abandonou as instalações do Centro Hospitalar sem observar e reavaliar a situação clínica da E…, comunicando, via telefone, a decisão de não dar alta e transferi-la para a Pediatria aos enfermeiros.
26. O arguido não cuidou de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da E…, nem cuidou de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes da criança.
27. A E… foi acometida de uma Hiponatremia grave (caracterizada por uma baixa de sódio no sangue).
28. Esta foi causa do edema cerebral e dos sintomas neurológicos apresentados, ou seja, oscilação do estado de consciência e movimentos anómalos dos membros inferiores e superiores e foi causa adequada e necessária da sua morte.
29. As manifestações associadas à Hiponatremia, relacionam-se predominantemente com a disfunção do sistema nervoso central. A desidratação hiponatrémica severa, de instalação em poucas horas, provoca a nível celular, uma transferência de água do líquido extracelular para o espaço intracelular provocando edema das células cerebrais, com aumento do volume cerebral e o aparecimento da sintomatologia manifestada pela E…, sendo as crianças particularmente vulneráveis a esta encefalopatia hiponatrémica, apresentando sintomas com concentrações plasmáticas de sódio relativamente superiores em relação aos adultos, pois a relação cérebro/cavidade craniana é superior, ocasionando um conflito de espaço mais precocemente.
30. Esta situação aliada a eventuais momentos de hipoxia cerebral (diminuição de concentração de oxigénio), certamente verificada durante as convulsões, e nos procedimentos de entubação endotraqueal, é compatível com os resultados verificados na autópsia e com a causa de morte "lesões sugestivas de trombose dos seios venosos".
31. Ao agir da forma descrita o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, não procedendo com o cuidado devido, a que estava obrigado e era capaz, tendo em conta o estado da paciente e a sintomatologia que esta após a cirurgia e no período que estava sob a sua responsabilidade apresentou.
32. O arguido não tem antecedentes criminais.
33. B… reside em habitação própria dotada de boas condições de habitabilidade, inserida em meio sem problemáticas sociais dignas de registo, com o seu agregado familiar, composto pelo cônjuge e dois filhos do casal, de 24 e 21 anos, num ambiente familiar securizante e gratificante.
34. Assegura cuidados à sua progenitora idosa, que integra o seu agregado familiar durante períodos de tempo, responsabilidade esta alternada e partilhada com o irmão.
35. Trabalha como médico – especialista em anestesia – em exclusivo no Centro Hospitalar G…, EP., prestando ainda serviço em horário extra, na urgência desse mesmo hospital. O cônjuge é doméstica, o filho mais velho encontra-se em estágio profissional na área da engenharia mecânica e o filho mais novo frequenta o terceiro ano do ensino superior.
36. Aufere rendimento médio mensal cerca de 4.000,00€. Não refere despesa habitacional e despende com eletricidade, água e gás cerca de 250€, referindo-se à sua situação económica como acima da média.
37. Apresenta um quotidiano preenchido em função das rotinas laborais. Nos tempos livres mantém-se maioritariamente em casa, privilegiando o convívio familiar nuclear e alargado. Afirma ainda, no tempo livre, investimento na sua formação clínica especializada, para evolução pessoal e profissional. Frequenta on-line, atualmente, um curso na área de gestão que também o ocupa.
38. No meio sociocomunitário projeta uma imagem favorável, sendo referenciado positivamente também no contexto profissional e associado a um estilo de vida pró-social. No que concerne ao relacionamento interpessoal é avaliado como respeitador, cordial e de fácil trato.
39. O cônjuge do arguido e comunidade do meio social e profissional, revelam que o arguido manteve desde sempre um estilo de vida pautado pela estabilidade. Profissionalmente é avaliado pelos seus superiores hierárquicos como um elemento muito responsável e inteiramente dedicado às funções que desempenha.
40. À data dos factos subjacentes aos presentes autos B… mantinha a situação sociofamiliar e laboral supra descrita.
41. Este é o primeiro contacto do arguido com o sistema de justiça penal, considerando que o seu envolvimento no presente processo, decorre diretamente das suas regulares vivências profissionais.
42. O arguido verbalizou constrangimento pela eventual mediatização da natureza dos factos subjacentes ao presente processo, por considerar que tal poderá prejudicar a imagem positiva que acredita projetar social e profissionalmente.
43. Face ao bem jurídico em causa, subjacente ao presente processo, aceita a sua tutela jurídica, apresentando elevado raciocínio crítico e de valorização suprema da vida humana, reportando-se neste contexto ao Juramento de Hipócrates efetuado por ocasião de sua formatura como médico.
44. Consequentemente, em abstrato e em relação a factos de idêntica natureza, reconhece a sua ilicitude, bem como a existência de vítimas e danos.
45. Manifesta atitude tradutora de colaboração para com o sistema de justiça penal numa eventual condenação.
Factos não provados
2. A E… foi transferida para pediatria por ver agravado o seu estado de saúde.
3. No que respeita aos factos vertidos em 13 dos factos provados o arguido foi contactado via telefone uma vez que havia já abandonado as instalações do CH G….
4. A soroterapia mencionada em 13 dos factos provados era: 1500 ml de soro Glicose a 5% e NACL a 3%.
5. A Hiponatremia grave que acometeu a E… teve origem numa perfusão inapropriada de soro tendo em conta a sua idade e o seu peso (cerca de 1000 ml de soro em poucas horas).
6. A observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, e perante a sintomatologia que apresentou teria permitido a perceção e o atempado conhecimento do excesso de volume de soro profundido, teria permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce e teria evitado o resultado morte.
7. O arguido representou como possível que ao agir como descrito daí poderia advir a morte da E…, atuando, porém, sem se conformar com essa realização.
8. Sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
Os vícios do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei, ou, como é afirmação recorrente, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir, tanto ao nível da matéria de facto, como de direito.
Tais vícios não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambas as situações se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
Aqueles (vícios decisórios) examinam-se, indagam-se, através da análise do texto da sentença; esta (a errada apreciação e valoração das provas), porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas, do que resulta a formulação de um juízo que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto (cfr. acórdão do STJ, de 15.09.2010, www.dgsi.pt/jstj; Cons. Fernando Fróis).
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova são vícios da sentença cuja verificação dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art.º 426.º, n.º 1, podendo, no entanto, ser supridos no tribunal de recurso nas seguintes situações:
- se requerida a renovação da prova e havendo razões para crer que ela permitirá evitar o reenvio (artigos 430.º, n.º 1, e 431.º, do Cód. Proc. Penal);
- se o processo fornecer os elementos de prova que possibilitem/imponham a modificação da decisão de facto (artigo 431.º, al. a), do CPP).
É a segunda hipótese desta alternativa que teremos de considerar.
Verifica-se o vício da contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou na própria motivação probatória da decisão sobre matéria de facto.
Como se esclarece no acórdão do STJ, de 19.11.2008 (Proc. n.º 3453/08-3.ª), “a contradição insanável da fundamentação, ou entre esta e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluem mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão…”.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável i) entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou ii) entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Dizendo de outro modo, haverá contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica(va) decisão oposta, ou não justificava a decisão. Ou seja, “a fundamentação pode apontar para uma dada decisão e a decisão recorrida nada ter a ver com a fundamentação apresentada” (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2.ª edição, 2000, pág. 339).
Estaremos perante um erro notório na apreciação da prova quando um “juiz normal” (nas palavras de Castanheira Neves[1], um juiz com a cultura e experiência de vida e dos homens, que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados de um processo probatório), perante o texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência, facilmente se dá conta que ela (decisão) se baseia em juízos ilógicos, arbitrários ou até contraditórios, ou foram desrespeitadas as regras de valoração da prova ou da leges artis de julgar.
Há erro notório “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” (acórdão do STJ, de 04.10.2001, CJ/Ac STJ, IX, T. III, 182)[2].
Numa formulação de síntese, pode dizer-se que o “erro notório na apreciação da prova” é uma deficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação do homem médio.
Quando se apela ao homem médio, pretende-se aludir ao cidadão medianamente informado, com capacidade de discernimento e dotado de bom senso e não a alguém com conhecimentos jurídicos.
Como se afirmou no acórdão do STJ de 02.02.2011, “o erro notório na apreciação da prova (…) verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”.
A observação e verificação do homem médio constituem o modelo referencial tribunal (acórdão do STJ, de 06.10.2010; Cons. Henriques Gaspar).
Mas, como faz notar o Ex.mo PGA no seu parecer, há que entender esta referência ao homem medianamente informado e sensato em termos hábeis, ou melhor, não se deve ser exigente ao ponto de deixar que “situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum” fiquem sem correção. Erro notório, sim, mas “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”[3].
Na perspetiva dos assistentes, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (absolutória) proferida revelar-se-ia no facto de se ter considerado que “a realização de uma gasometria mais cedo podia diminuir o risco da produção do resultado morte”.
Se bem entendemos o raciocínio dos assistentes/recorrentes, face a essa circunstância, lógico e normal seria que se imputasse o resultado (morte da criança) à conduta omissiva do arguido, ao contrário do que foi a decisão do tribunal.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova, não se lobriga na motivação do recurso dos assistentes a concretização desse vício, onde é que, no texto da decisão, se revelam, na perspetiva dos recorrentes, distorções de ordem lógica ou apreciações manifestamente ilógicas ou arbitrárias.
Já o Exmo. PGA é, a este propósito, bem claro no seu parecer: a notoriedade do erro de apreciação está em que, tendo-se concluído que o arguido errou ao não ter observado presencialmente a E… e reavaliado o seu estado clínico, ainda assim, não se deu como assente que, caso tivesse ocorrido essa observação presencial, o arguido teria determinado a realização dos exames que permitiriam um diagnóstico precoce e a realização dos tratamentos adequados a evitar o desfecho fatal para a criança.
Bem vistas as coisas, aquilo que os assistentes classificam como contradição insanável entre a fundamentação e a decisão é visto pelo Exmo. PGA como erro notório na apreciação da prova.
Vejamos.
É matéria de facto considerada assente e não suscita controvérsia que:
- a morte da E… foi devida a "trombose dos seios venosos da dura mater";
- a E… foi acometida de uma hiponatremia grave (caracterizada por uma baixa de sódio no sangue), que originou edema cerebral, causa adequada e necessária da sua morte;
- as manifestações associadas à hiponatremia relacionam-se predominantemente com a disfunção do sistema nervoso central. A desidratação hiponatremia severa, de instalação em poucas horas, provoca, a nível celular, uma transferência de água do líquido extracelular para o espaço intracelular provocando edema das células cerebrais, com aumento do volume cerebral e o aparecimento da sintomatologia manifestada pela E…, sendo as crianças particularmente vulneráveis a esta encefalopatia hiponatrémica;
- o acompanhamento e vigilância do doente no período pós-operatório imediato, no Recobro I e Recobro II, é da responsabilidade do médico anestesista, no caso, o arguido;
- entre as 09:45 (hora a que a E… passou do Recobro I para o Recobro II) e as 16:15, foram registados, pelo menos, 7 (sete) vómitos por parte da E…, sem que esta fosse observada por um médico e reavaliado o seu estado clínico;
- entre as 09:45 e as 11:50, a E… teve três vómitos com sangue semi-digerido e, contactado o arguido, este deu instruções para que lhe fosse administrado 1 mg de ondasetron e 0,625 mg de Droperidol IV;
- cerca das 13:40, a E… teve mais dois vómitos alimentares com vestígios de sangue;
- cerca das 14:00 horas, posto ao corrente, via telefone, do sucedido, o arguido determinou que fosse administrado à E… 2,5 mg de dexametasona e que reiniciasse soroterapia;
- às 15:20, a E… teve um outro vómito, desta feita, com secreções e vestígios de sangue e, pelas 16H05M, novo vómito aquoso e com vestígios de sangue, pelo que a enfermeira N…, considerando que ela não poderia ter alta, entrou em contacto, via telefone, com o arguido, que após contacto com o assistente hospitalar de Otorrinolaringologia, Dr. O…, determinou que a E… não teria alta e ficaria em vigilância no serviço de internamento de Pediatria;
- cerca das 16:30, a E… foi transferida para o Serviço de Pediatria;
- cerca das 17:00, a E… estava com olhar fixo, revelava diminuição de resposta a estímulos verbais e iniciou convulsões generalizadas;
- contactado o serviço de urgência de pediatria do G…, a médica pediatra, Dra. F…, efetuou a primeira observação da E… por voltas das 18H, fazendo uma avaliação conjunta com o médico Dr. S…;
- face à ausência de registos clínicos que permitissem perceber se tinha existido alguma intercorrência durante a cirurgia, bem como da medicação que a E… até ao momento tinha feito, aqueles clínicos tentaram falar, por contacto telefónico, com o arguido, mas sem sucesso, acabando por obter essa informação da enfermeira N…;
- face ao quadro clínico que a E… apresentava, designadamente oscilação do estado de consciência e movimentos anómalos dos membros, a médica F…, determinou a realização de TAC e gasometria, tendo concluído, através da análise dos resultados obtidos, designadamente pelos valores de sódio no sangue, que se tratava de uma hiponatremia grave;
- face a tal diagnóstico, iniciou-se o tratamento para a hiponatremia, a E… foi sedada, entubada e transferida para a unidade de cuidados intensivos pediátricos do Hospital T…, onde deu entrada cerca das 23:09 do dia 18.11.2013, com o seguinte diagnóstico: "Coma. Edema Cerebral. Hiponatremia sintomática" e suspeita de "morte cerebral";
- o óbito da E… veio a ser declarado no dia 19 de Novembro de 2013, às 02:13.
Como julgamos ser de primeira evidência, eram duas as questões de facto fundamentais a que tribunal de primeira instância tinha que responder:
- se, em face dos sintomas revelados pela E… no período pós-operatório (persistência dos vómitos com vestígios de sangue, apesar da medicação prescrita), que eram do conhecimento do arguido, se impunha a observação presencial da paciente pelo médico responsável (o arguido) e a reavaliação do seu estado clínico;
- se essa vigilância e controlo por médico especialista da equipa que levou a cabo a intervenção cirúrgica, designadamente pelo anestesista, teria permitido diagnosticar e iniciar o tratamento precoce da hiponatremia e, com razoável probabilidade, evitar o resultado (morte da E…), ou seja, se é possível estabelecer um laço causal entre a conduta omissiva do arguido e o resultado morte.
À primeira questão, respondeu o tribunal de primeira instância afirmativamente.
Com efeito, o tribunal apurou, ainda, que:
- é normal que, nas primeiras duas/três horas do período pós-operatório, tendo em conta a natureza da cirurgia e o facto de ter sido administrada morfina à paciente, ocorram vómitos;
- no entanto, a persistência desses sintomas impunha que o estado clínico da E… tivesse sido reavaliado, tarefa que era da responsabilidade do arguido, anestesista responsável pela cirurgia, o que não aconteceu;
- o arguido abandonou as instalações do Centro Hospitalar sem observar e reavaliar a situação clínica da E…, limitando-se a comunicar aos enfermeiros, por telefone, a decisão de não dar alta e de transferi-la para o Serviço de Pediatria;
- além disso, o arguido não cuidou de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da E…, nem cuidou de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes da criança;
À segunda questão, o tribunal respondeu negativamente, pois considerou não provado que:
- a observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, e perante a sintomatologia que apresentou teria permitido a perceção e o atempado conhecimento do excesso de volume de soro perfundido, teria permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce e teria evitado o resultado morte.
Esta resposta foi assim justificada pelo tribunal a quo:
«Cumpre, então, verificar se resultou provado que a observação e reavaliação clínica da E… pelo arguido, antes da sua transferência para pediatria, teria permitido um diagnóstico e um tratamento mais precoce que teria evitado o resultado morte. E a resposta é que estes factos não resultaram provados.
Desde logo, dos relatórios periciais juntos aos autos, dos esclarecimentos prestados pelos peritos em audiência, e dos depoimentos dos vários médicos anestesistas ouvidos em toda a audiência de julgamento, resulta que a hiponetremia tem várias causas e diferentes sintomas. Sendo verdade que as náuseas e vómitos são um dos sintomas dessa patologia (como o são de muitas outras), a verdade é que sem estarem associados a outros sintomas de disfunção do sistema nervoso central (como sonolência, irritação, prostração, apatia) não estamos perante um quadro que faça suspeitar de uma hiponatremia. Isto foi referido pelos médicos anestesistas V…, W… (que elaborou o parecer junto ao processo no apenso da inspeção elaborada pelo IGS e que referiu que até a menina ter convulsões nada fazia suspeitar de algo mais grave) e X… (relator do parecer da especialidade junta aos autos que claramente mencionou que se o único sintoma for náuseas e vómitos não se suspeita de hiponatremia).
Ora, não resultou provado que a E… tivesse tido algum sintoma além de náuseas e vómitos antes do momento em que estava em pediatria e ficou com o olhar parado (sintoma este neurológico) e pouco depois entrou em convulsões (também sintoma neurológico). De facto, nem a mãe da E… mencionou qualquer outro sintoma além de náuseas e vómitos, nem a enfermeira N… os mencionou na ficha de enfermagem ou em audiência, constando dos registos, pelo contrário, que a menina, na altura que foi para a pediatria, estava acordada e colaborante o que foi confirmado pela enfermeira N… que disse que, com exceção dos vómitos, a menina estava normal.
Face a este quadro, concluímos que não resulta provado que se o arguido tivesse procedido como devia e estava obrigado, fazendo uma avaliação clinica da E… antes da sua transferência e enquanto esteve no recobro II, teria prescrito outra medicação (que todos os médicos anestesistas e peritos referiram ser a correta para os sintomas apresentados) e/ou teria pedido uma gaseometria.
Face aos sintomas apresentados pela E… não podemos considerar estes factos provados.
Do parecer do colégio de anestesiologia e respetivo aditamento (fls. 273 e seguintes e 360 e seguintes) consta que a existência de vómitos (mesmo com vestígios de sangue) no período pós-operatório é normal e que os fármacos prescritos foram os adequados. A decisão de protelar a alta foi adequada e a decisão de transferência para pediatria foi tomada em função da organização interna do Hospital e dos recursos humanos disponíveis, mas que não era suficiente face à adinamia e prostração. Porém, estes sintomas não se verificavam na E…, apenas os vómitos. Conclui referindo que a perceção ou atempado conhecimento de um eventual excesso do soro profundido, em conjunto com sinais clínicos, podia ter permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce, que poderia evitar o resultado morte. Sucede, porém, que não resultou provado que houve excesso de soro profundido, pelo que, tal não poderia ser detetado.
A médica pediatra que assistiu a menina, D…, chegou a referir em audiência que a hiponatremia nas crianças instala-se de forma muito rápida e normalmente é, até assintomática, não se sabendo se com a realização da gaseometria em momento anterior se teria diagnosticado essa patologia, por os valores poderem estar normais.
O tribunal ao considerar estes factos não provados não ignorou o que nos diz a teoria da conexão do risco nos crimes praticados por omissão (que mais à frente se explanará). Porém, se podemos afirmar que a realização de uma gaseometria mais cedo podia diminuir o risco da produção do resultado morte (sem certezas), a verdade é que resultou que, face aos sintomas da E…, a observação e avaliação clinica da mesma pelo arguido não faria com que aquela análise fosse requisitada (conforme supra se referiu)».
E, mais adiante, em sede de fundamentação jurídica, discorreu-se assim:
«…no que ao comportamento omissivo do arguido diz respeito, importa deixar claro que o mesmo foi violador das legis artis, sendo claro que deveria ter procedido a uma reavaliação clinica da E… antes de determinar o seu internamento/transferência para pediatria. O facto de não ter ido ver a menina ou explicado presencialmente aos pais o que se estava a passar, tendo abandonado as instalações do hospital, além de violar as legis artis, é um comportamento ética e socialmente reprovável. Porém, não resultou provado o nexo de causalidade entre este comportamento omissivo e o resultado morte, uma vez que, face à sintomatologia apresentada pela E…, a avaliação pelo médico não o iria determinar a realização do exame que poderia (sem certezas) permitir um diagnóstico mais precoce e um tratamento mais cedo que poderia (sem certezas) evitar o resultado morte.
Assim sendo, porque não resultou provado que o arguido tivesse violado um dever objetivo de cuidado quando prescreveu soro nas quantidades que o fez à vítima e porque não resultou provado que, ao não proceder à reavaliação clinica da vítima não diminuiu o risco da produção do evento (inexistência do nexo de causalidade entre o comportamento omissivo e violador de um dever objetivo de cuidado do arguido e a produção do dano morte), vai o arguido absolvido do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137°, n01 e 2 do Código Penal por que vinha acusado».
Justifica-se aqui uma incursão em matéria de direito, mas antes impõe-se um apontamento sobre a prova pericial.
Como decorre do trecho da fundamentação transcrito, o tribunal alicerçou a sua decisão de dar como não provada a existência de nexo de adequação causal entre a conduta omissiva do arguido (reconhecidamente violadora de um dever objectivo de cuidado) e o resultado verificado (morte da criança), nas conclusões da prova pericial e no parecer do “Colégio de Anastesiologia”[4].
Importa frisar e deixar bem claro que a decisão sobre a existência, ou não, desse nexo causal compete ao tribunal e não aos peritos.
Não tendo o juiz conhecimentos técnico-científicos de medicina, nem experiência sobre o funcionamento de uma estrutura complexa como é um hospital, as conclusões dos peritos médicos e os pareceres dos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos são fundamentais para o juízo sobre a violação, ou não, das leges artis pelo médico e na avaliação da existência, ou não, dessa relação de causalidade, mas, na reconstituição histórica dos factos, o tribunal não pode ater-se, exclusivamente, a esses meios, antes se lhe impõe que proceda a uma avaliação complexiva e contextualizada da actuação do agente, levando em consideração a globalidade das circunstâncias e factores (endógenos e exógenos) e meios disponibilizados para o juízo de prognose póstuma que tem de formular.
Como, a este propósito, alerta o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, pág. 264), «não obstante o recurso à perícia resultar precisamente da exigência de conhecimentos especializados que, como regra, o tribunal não possui, o tribunal não pode simplesmente descansar na perícia, pois a decisão final sobre a culpabilidade é da sua responsabilidade. O valor probatório especial da perícia não significa que estejamos perante um novo regime de prova legal, obrigando o juiz a submeter-se ao ipse dixit dos peritos; individualiza a regra do exercício racional da sua apreciação. Isto é, importa distinguir a vinculação do juiz ao resultado da perícia e ao princípio da livre convicção. O princípio da livre convicção impõe-se como dever de exercitar a função de valoração probatória segundo os cânones da racionalidade e por isso que quando esteja em causa uma prova pericial fundada sobre regras científicas, artísticas ou técnicas, a adesão ou discordância relativamente ao resultado da perícia não pode senão assentar no mesmo método”».
Ainda pertinente para o caso é a chamada de atenção da Prof.ª Paula Ribeiro Faria (“Formas Especiais do Crime”, UCE, 2017, pág. 81) para a necessidade de ter presente «alguma divergência entre os grupos profissionais e os juristas acerca do que constitui objecto da definição da violação das leges artis»[5] e, por outro lado, a «discrepância entre o momento da elaboração do relatório pericial (…) e o momento em que teve lugar a conduta do agente que não ocorreu sempre em circunstâncias ideais de espaço e de tempo, ou pelo menos, em circunstâncias que permitissem grande ponderação ou reflexão».
Clarificado este ponto, foquemo-nos nos elementos fundamentais da responsabilidade penal por negligência.
Como é sabido, a responsabilidade penal por negligência tem carácter excepcional, o que é dizer que o agente só responde a esse título quando a lei penal, expressamente, prevê um tipo negligente.
É o caso do artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal em que se comina a pena de prisão até três anos ou pena de multa para «quem matar outra pessoa por negligência».
Do conceito legal de negligência fala-nos o art.º 15.º do Código Penal, nos termos do qual age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
A violação do dever de cuidado objectivamente devido é elemento essencial e característico dos crimes negligentes, mais precisamente, do tipo de ilícito negligente, com o que se pretende designar a «violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar o preenchimento de um certo tipo objectivo de ilícito»[6].
Apesar de se reconhecer uma certa indefinição da estrutura dogmática do tipo legal que corresponde ao facto negligente, é a violação do dever de cuidado[7] que caracteriza a negligência. É essa violação que define o tipo de ilícito negligente e lhe confere especificidade.
O tipo de ilícito não se basta com a causação de um resultado por determinada conduta do agente, é imprescindível que tenha ocorrido a violação, pelo mesmo agente, do dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia e que conduziu à produção do resultado típico[8] [9].
Sabido é que, em regra, as normas que prevêem um crime negligente não delimitam precisamente o facto ilícito, não fornecem qualquer informação sobre a natureza e a medida do cuidado que se requer aos seus destinatários[10].
Entre os critérios concretizadores do cuidado objectivamente devido, para o caso, importa destacar os seguintes[11]:
- as normas corporativas, que são normas (não jurídicas) fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade e, nomeadamente, a evitar a concretização de perigos para bens jurídicos que de tais actividade pode resultar, como é o caso das leges artis da actividade médica;
- os costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional-padrão. Aqui, o que serve de critério é a não correspondência d0 comportamento àquele que, em idêntica situação, teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e consciencioso.
Estreitamente associado ao dever objectivo de cuidado está o conceito de risco enquanto probabilidade de verificação de um resultado contrário ao direito (risco de acidente de viação, risco de uma intervenção cirúrgica, etc.).
O dever objectivo de cuidado afirma-se, nomeadamente, como dever de executar cuidadosamente a actividade de risco para evitar que esse risco se converta em lesão efectiva de bens jurídicos[12].
O «risco é (…) uma realidade que pode ser gerida, e que ao ser mal gerido, ao ser descuidada ou intencionalmente mal gerido, pode determinar a responsabilidade daquele que o tem a seu cargo: porque quis a sua concretização, porque tendo tomado consciência dele não adoptou as medidas necessárias para evitar a sua concretização, ou porque desconheceu, ou ignorou indevidamente, não tendo (…) as devidas cautelas na condução da sua conduta».
Para se responsabilizar o agente pela produção de um resultado, é necessário que se revele possível prever o curso causal das coisas, os efeitos prováveis de uma conduta.
Só estará preenchido o tipo de ilícito objectivo se o resultado produzido for objectivamente previsível.
Com a exigência de previsibilidade objectiva pretende-se saber se o processo causal, assim como o resultado produzido, são consequências objectivamente previsíveis da conduta do agente tendo em conta o seu papel concreto, isto é, tendo em conta os seus conhecimentos e experiência profissional.
Previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico que só é possível afirmar quando a acção praticada aparecer a pessoa consciente e cuidadosa como susceptível de provocar um resultado desvalioso não querido.
Em suma, «a negligência deixa-se apurar com base num critério objectivo de previsibilidade e de cuidado que é definido tendo em conta as regras legais, técnicas e profissionais existentes para aquele sector de actuação, e o que o agente podia e devia fazer dadas as circunstâncias concretas, tal como estabelece a lei. Esse é o padrão médio que corresponde ao que era exigível do agente naquele contexto e face a uma determinada situação de risco»[13].
Ainda em sede do tipo de ilícito negligente, convém esclarecer que, embora o crime negligente comporte um momento omissivo - precisamente o não ter o cuidado, ou de prever um certo resultado ou, tendo-o previsto, de evitá-lo - não se confunde com a omissão, que qualifica um tipo criminal em relação à estrutura do comportamento.
A violação do dever de cuidado tanto pode traduzir-se numa acção como numa omissão, sendo certo que, nesta hipótese, é necessário que sobre o agente recaia um dever de garante, como exige o n.º 2 do artigo 10.º do Código Penal.
Por outro lado, o cuidado exigível há-de ser determinado pela capacidade de cumprimento que, no dizer do Professor Figueiredo Dias ("Pressupostos da Punição" in Jornadas de Direito Criminal, ed. C.E.J., pág. 70), constitui o elemento configurador da censurabilidade da negligência, - o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever ser jurídico-penal.
«Está aqui verdadeiramente em causa - acrescenta aquele Professor (loc. cit.) - um critério subjectivo e concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente.
Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição».
Em suma, a negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido numa situação de perigo em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.
Tendo em perspectiva estas referências dogmáticas sobre a conduta negligente, vejamos se pode falar-se aqui em erro médico penalmente relevante.
Uma das grandes áreas de actuação médico-cirúrgica é o “pós-operatório” e um erro cometido (seja por acção, seja por omissão) nesta fase não é menos grave do que o “erro operatório”, pois, também, pode ser fatal para o paciente.
Numa cirurgia com internamento, como aconteceu “in casu”, há leges artis, regras de conduta normais, recorrentes e impostas por “guide lines” comummente seguidas na prática médica e hospitalar.
A vigilância pós-operatória por médico especialista é fundamental e o que pode variar é o período de duração dessa observação.
Nesta fase, por regra, cabe ao anestesiologista o dever de vigiar o restabelecimento da capacidade geral de funcionamento do organismo do paciente, competindo-lhe, também, o controlo efectivo da saída do doente da unidade de cuidados pós-anestésicos (o chamado “recobro”).
A valoração que preside à afirmação da violação do dever de cuidado é um juízo eminentemente jurídico que cabe ao julgador efectuar após ponderação de todas as circunstâncias relevantes da actuação do agente.
Ora, dessas circunstâncias relevantes (já supra enunciadas), cabe destacar o facto de a E…, no pós-operatório, entre as 09:45 e as 16:15 do dia em que foi submetida a intervenção cirúrgica (adenoidectomia e miringotomia), ter tido sete vómitos com vestígios de sangue. E se os três primeiros (registados nas primeiras três horas do período pós-operatório) são considerados uma ocorrência normal, já a persistência dos vómitos não pode, como tal, ser considerada e exigia que a criança fosse observada por um médico (o arguido) e reavaliado o seu estado clínico. Porém, assim não aconteceu e a E… acabou por ser transferida para o Serviço de Pediatria (por ordem do arguido) sem qualquer informação e sem que a sua situação clínica fosse reavaliada (foi por telefone que deu aquela ordem de transferência).
Por isso o tribunal concluiu que o arguido não procedeu com o cuidado devido, a que estava obrigado e de que era capaz, tendo em conta o estado da paciente e a sintomatologia que esta apresentou após a cirurgia e no período em que estava sob a sua responsabilidade.
Apesar disso, na primeira instância entendeu-se que a observação e reavaliação clínica da E… pelo arguido, antes da sua transferência para pediatria, não teria permitido um diagnóstico e um tratamento mais precoce que teria evitado o resultado morte, basicamente por duas razões:
- as náuseas e os vómitos são um sintoma de hiponatremia, mas também de outras patologias;
- se aos vómitos não estiverem associados outros sintomas de disfunção do sistema nervoso central (como sonolência, irritação, prostração, apatia) não estamos perante um quadro que faça suspeitar de uma hiponatremia e, até ser transferida para pediatria, a criança não manifestou qualquer desses sintomas.
Por isso concluiu-se que, mesmo que tivesse observado e reavaliado a situação clínica da E…, o arguido, não só não teria alterado a medicação prescrita, como não teria determinado a realização de quaisquer exames, designadamente uma gasometria.
É caso para perguntar por que se considerou, então, que o arguido não actuou com o cuidado devido «tendo em conta o estado da paciente e a sintomatologia que esta apresentou após a cirurgia». A observação e a reavaliação do estado clínico da E…, afinal, serviriam para quê?
Salvo o devido respeito, é patente o vício de raciocínio.
O motivo para actuar conscienciosamente, para agir com cuidado e atenção ocorre quando a situação de perigo se torna reconhecível ao agente através de sinais de aviso que podem ter intensidade diferente consoante tornem mais ou menos previsível o momento e a duração do perigo.
Ora, perante a persistência dos vómitos, fácil seria para o arguido prever que o pós-operatório da E… não estava a decorrer normalmente, que algo de anormal, patológico estava a acontecer.
Poderia não haver, ainda, razões para suspeitar de uma hiponatremia, mas era evidente (ou, pelo menos, deveria ser evidente para o arguido) que a E… estava a ser acometida de uma patologia.
Numa situação destas, o que nos dizem a experiência e as boas práticas médicas é que se determine a realização de análises para identificar a patologia e, assim, poder prescrever o respectivo tratamento.
O arguido errou, claramente, ao omitir a realização de exames que seriam um importante meio auxiliar de diagnóstico da patologia que afectava a criança e veio a revelar-se fatal.
Mas nem só nessa conduta omissiva se revela a violação do dever de cuidado.
O arguido abandonou as instalações do Centro Hospitalar sem cuidar de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da E…, tal como não tratou de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes sobre a criança.
Sem informações sobre a cirurgia a que a E… tinha sido submetida, sobre a medicação prescrita e sobre o seu estado clínico, a médica pediatra de serviço bem tentou contactar, telefonicamente, o arguido, mas em vão.
Só pelas 18:00, a médica pediatra, Dra. F…, em conjunto com o médico Dr. S…, efectuou a primeira observação da E… e fez a avaliação do seu estado.
Isto apesar de, cerca das 17:00 (pouco tempo depois de ser transferida para o Serviço de Pediatria), a E… estar com olhar fixo, revelar diminuição de resposta a estímulos verbais e ter iniciado convulsões generalizadas, sintomas inequívocos de hiponatremia.
Os resultados da TAC e da gasometria realizadas permitiram concluir, designadamente pelos valores de sódio no sangue, que a criança padecia de uma hiponatremia grave, iniciando-se, então, o respectivo tratamento que, no entanto, não evitou o desfecho fatal.
Estes factos legitimam a inferência de que, se o arguido tivesse observado e reavaliado o estado clínico da E… e, como se impunha, quando determinou a sua transferência para o Serviço de Pediatria, tivesse mandado realizar análises a fim de habilitar o(s) médico(s) que aí estivesse(m) em funções a agir rapidamente, teria sido possível detectar, precocemente, a hiponatremia que se instalara e iniciar o tratamento que, com razoável probabilidade, teria evitado o óbito da criança. Mesmo tendo em consideração que, nas crianças, essa patologia se instala rapidamente. Aliás, na sentença recorrida, admite-se, expressamente, que «a realização de uma gasometria mais cedo podia diminuir o risco da produção do resultado morte (sem certezas)».
Por tudo isto, afronta a lógica, a razão e as máximas da experiência considerar que o comportamento omissivo do arguido, nas aludidas circunstâncias, «foi violador das leges artis», que impunham uma reavaliação clínica da E… antes de determinar a sua transferência para Pediatria, e depois concluir que o comportamento devido não teria permitido o diagnóstico e um tratamento mais precoces daquela patologia e a evitação do resultado morte da criança.
O que se revela fundada, criteriosa e razoável é a conclusão contrária.
Se um médico com o saber e a experiência do arguido não trata de obter os elementos necessários para diagnosticar uma patologia num paciente que está a seu cargo e sob a sua vigilância e iniciar, o mais precocemente possível, o seu tratamento, terá de concluir-se que não foi um profissional consciencioso, sensato e previdente e por isso terá de ser penalmente responsabilizado pelas consequências da sua conduta negligente.
Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objectivamente devido numa situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, considera-se que esse comportamento preenche o tipo de ilícito do facto negligente.
Mas a conjugação de uma infracção aos deveres de cuidado com o resultado típico - no caso, a morte da E… - não conduz, necessariamente, a um crime negligente. Impõe-se, ainda, que se verifique o nexo de adequação entre a conduta violadora do cuidado necessário e o resultado.
Em que é que se traduz, nos crimes negligentes, esse nexo de imputação? Como é que se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado, à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente?
Como refere C. Roxin ("Problemas Fundamentais de Direito Penal ", pág. 238), reúne um largo consenso da doutrina a posição segundo a qual existe o necessário laço causal se a realização da acção requerida impediria o resultado com uma probabilidade quase segura.
Dizendo de outro modo e socorrendo-nos de H.H. Jescheck (" Tratado de Derecho Penal ", vol. II, pág. 804), haverá nexo causal desde que o resultado pudesse ser evitado mediante um comportamento cuidadoso, por um lado, e que a norma infringida servisse, precisamente, para evitar o resultado como o produzido no caso concreto.
Ora, como é bom de ver, as chamadas guidelines das organizações nacionais e internacionais de médicos, as leges artis pelas quais os médicos devem pautar a sua acção têm um valor particular enquanto regras da experiência adequadas ao afastamento de perigos próximos ou imediatos para bens jurídicos e, no caso, não foram respeitadas pelo arguido.
Num juízo de prognose póstuma, pode afirmar-se que, com a sua conduta omissiva, violadora do dever de garante que sobre ele impendia, o arguido potenciou um risco para o bem jurídico vida humana e assim produziu um resultado proibido, pois é razoavelmente seguro que, pelas razões já explanadas, se tivesse agido de acordo com as leges artis, tal resultado não se teria verificado.
Existe, pois, “conexão típica” entre a conduta omissiva do arguido e o resultado típico verificado (no caso, a morte de uma pessoa humana).
Na linha das anteriores considerações, preenchido que está o tipo de ilícito do homicídio negligente pela conduta do arguido, impõe-se ponderar se lhe era exigível o comportamento devido, ou seja, se a este podia ser exigido que previsse e evitasse o resultado que se verificou no caso sub juditio, de acordo com as suas capacidades individuais, a sua inteligência, a sua formação e a sua experiência profissional.
É esta questão que configura aquilo que o Professor Figueiredo Dias[14] designa pela “questão do tipo de culpa negligente”.
Para que a culpa negligente se afirme – explica o distinto penalista – não é necessário (nem possível) apelar ao concreto poder do agente de atuar de outro modo na situação. Do que ali se trata é apenas da conclusão de que, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e tê-la-iam evitado. O que significa apenas, por outras palavras, que o conhecimento real das consequências de uma ação e a capacidade de as evitar correspondem à experiência média e que portanto, relativamente ao agente concreto que as não representou ou evitou, se comprova uma deficiência perante o tipo normal. Só que este tipo – e aqui deparamos com o famoso “critério subjetivo” – não é o tipo “médio”, mas o tipo de homem da espécie e com as qualidades e capacidades do agente.
Cremos já ter dito o quantum satis para, fundadamente, se concluir que o arguido podia, razoavelmente, prever que acontecesse o que, infelizmente, sucedeu.
Para o médico prudente, profissionalmente experiente, como era o arguido, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do arguido, o trágico resultado (a morte de uma criança), nas referidas condições, era perfeitamente previsível e evitável.
Cremos ter demonstrado que a sentença recorrida está afetada pelo vício de erro notório na apreciação da prova, que é possível sanar no tribunal de recurso alterando a de cisão sobre matéria de facto nos seguintes termos:
Ao elenco de factos provados são aditados os seguintes:
31 - A) A observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido no período do pós-operatório, perante a sintomatologia que esta apresentava, teria permitido, com recurso a exames complementares de diagnóstico como os mencionados no ponto 19, diagnosticar a patologia (hiponatremia) de que foi acometida e iniciar, mais precocemente, o respetivo tratamento e, assim, evitar o resultado morte;
31 - B) O arguido, tendo em conta as suas qualidades e capacidades individuais, podia e devia ter representado o perigo da sua conduta omissiva para a vida da E… e atuado por forma a evitar o resultado verificado, o que só não logrou por ter agido sem as cautelas que as boas práticas próprias da classe profissional em que está inserido lhe exigiam e a sua própria experiência profissional (como assistente graduado sénior de anestesiologia) lhe permitia;
31 - C) Sabia que a sua conduta é proibida e penalmente punível.
Do elenco de factos não provados são eliminados os pontos 7 e 8, passando o ponto 6 a ter o seguinte conteúdo:
6 - A observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, perante a sintomatologia que apresentou, teriam permitido a perceção e o atempado conhecimento do excesso de volume de soro perfundido.
Face à alteração da decisão sobre matéria de facto, impõe-se concluir que se verificam todos os elementos integrantes do crime de homicídio negligente previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que há que passar à determinação da pena.
Efetuado o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, pode acontecer (e em muitos casos assim acontece) que a respetiva norma incriminadora preveja uma dualidade de punição, uma pena compósita alternativa: prisão ou multa, as duas penas principais que o nosso sistema penal conhece.
Ao crime cometido pelo arguido corresponde pena de prisão (até 3 anos) ou pena de multa (de 10 a 360 dias).
Ao julgador exige-se, então, que faça uma escolha, que eleja entre essas duas espécies de pena aquela que se mostra mais adequada no caso concreto e o art.º 70.º do Cód. Penal fornece-lhe o critério orientador: deve dar preferência à pena não detentiva sempre que esta realize de forma adequada as finalidades da punição que, conforme estabelece o art.º 40.º da mesma Codificação, são a proteção de bens jurídicos (fim de prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade [finalidade de prevenção especial de (res)socialização].
Exigências de prevenção geral positiva reclamam a opção pela pena detetiva.
É bem sabido que na estrutura da criminalidade em Portugal os crimes cometidos por negligência, por desrespeito de regras básicas, têm uma expressão significativa e por isso são muito sentidas exigências de prevenção geral.
A esse propósito, o Professor Figueiredo Dias (“Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, p. 351) referia a existência de “requisitório em favor de um tratamento jurídico-penal cada vez mais severo de certos factos negligentes; ao ponto de não faltar mesmo quem preconiza para eles molduras penais cujo máximo exceda o limite mínimo do correspondente facto doloso”.
Sobre a justificação político-criminal da punição da negligência no crime de homicídio, o mesmo autor refere que esse se tornou «fenómeno maciço, dadas as inúmeras fontes de perigo para a vida imanentes à “sociedade do risco” contemporânea», com destaque para a circulação rodoviária.
Ora, se é, sobretudo, no âmbito da criminalidade rodoviária que as exigências de prevenção geral são particularmente prementes, não podem menosprezar-se os perigos para bens jurídicos fundamentais que ocorrem noutras áreas, nomeadamente no âmbito da prestação de cuidados de saúde e, em especial, da atividade médica e hospitalar.
A finalidade primeira das penas é a proteção de bens jurídicos e aplicar uma pena pecuniária a alguém que cometeu um crime de homicídio, ainda que meramente negligente e por omissão, surge aos olhos da comunidade como uma desvalorização da vida humana.
Como decorre do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do Cód. Penal, é em função do binómio prevenção-culpa que se há-de encontrar a medida da pena, assim se satisfazendo a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
Tende a ser praticamente consensual na jurisprudência o acolhimento da doutrina[15] de que a pena visa finalidades, exclusivamente, preventivas (de prevenção geral e de prevenção especial), cabendo à culpa a função de impedir excessos, sendo pressuposto (não pode haver pena sem culpa) e limite inultrapassável da pena (em caso algum a medida desta pode ultrapassar a medida da culpa).
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de proteção de bens jurídico-penais.
A finalidade primeira da aplicação da pena é, como já referimos, a tutela de bens jurídicos[16].
Na prevenção geral positiva ou de integração, tem-se em vista uma conceção integrada de intimidação que actue dentro do campo marcado por padrões ético-sociais de comportamento que a ameaça da pena visa justamente reforçar.
É esta ideia de prevenção geral positiva, enquanto finalidade primordial visada pela pena, que dá conteúdo ao princípio da necessidade da pena consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa.
São as exigências de prevenção geral que hão-de definir a chamada “moldura da prevenção” (em que o quantum máximo da pena corresponderá à medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar e o limite inferior é aquele que define o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa aquela sua função tutelar), dentro da qual cabe à prevenção especial (por regra, positiva ou de (res)socialização) determinar a medida concreta.
A determinação da medida da pena em função da satisfação das exigências de prevenção obriga à valoração de circunstâncias atinentes ao facto (modo de execução, grau de ilicitude, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, conduta do agente anterior e posterior ao facto e as chamadas consequências extra-típicas) e alheias ao facto, mas relativas à personalidade do agente (manifestada no facto), nomeadamente as suas condições económicas e sociais, a sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, etc.
As já mencionadas exigências de prevenção geral justificam que se fixe o limite inferior da tal “moldura de prevenção” em 12 meses de prisão (o primeiro terço da medida legal da pena) e que a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar se situe nos 2 anos (o dobro daquele limite).
A finalidade preventivo-especial da pena é evitar que o agente cometa, no futuro, novos crimes. Evitar a reincidência, portanto.
Sendo primordial a função de socialização, a tarefa que se impõe ao juiz é averiguar se o agente está carecido de socialização.
Quando o agente não revela carências de socialização, como nos diz o Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, p. 244), “tudo será questão, em termos de prevenção especial, de conferir à pena uma função de suficiente advertência do agente, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo de defesa do ordenamento jurídico, ou mesmo que com ele coincida. Se é certo que esta função de advertência joga o principal papel em tema de penas de substituição, ela pode relevar igualmente, e de forma decisiva, no âmbito de medida da pena”.
Dos factos apurados é possível concluir que o arguido não revela carências de socialização, pois está, perfeitamente, integrado na sociedade, é pessoa dedicada à família e à profissão que exerce, no meio sociocomunitário projeta uma imagem favorável, sendo referenciado positivamente também no contexto profissional e associado a um estilo de vida pró-social. No relacionamento interpessoal é avaliado como respeitador, cordial e de fácil trato. Este é o seu primeiro contacto com o sistema de justiça penal.
No entanto, uma boa inserção social requer, também, uma boa capacidade de auto - censura e de auto - crítica, uma predisposição para interiorizar o desvalor da conduta punível, essenciais para se poder afirmar que o perigo de repetição de condutas criminosas é inexistente ou diminuto.
Ora, nada, na factualidade apurada, revela que o arguido reúne essas características, que teve manifestações de genuíno arrependimento, sequer que o verbalizou, e a interiorização da censurabilidade da conduta punível é o primeiro passo para se redimir.
Um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.
Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os fatores elencados no art.º 71.º, n.º 2, do Cód. Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.
Aproveitando, mais uma vez, o ensinamento do Professor Figueiredo Dias (Ob. Cit., 245), porque a culpa jurídico-penal é “censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito”, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequência típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.) e a personalidade do agente [condições pessoais e situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto].
Com a tipificação do crime cometido pelo arguido tutela-se um bem eminentemente pessoal: a vida.
O grau de ilicitude da conduta do arguido é significativamente elevado, não só pela natureza do bem jurídico lesado, mas também porque foi uma criança de 4 anos a vítima da sua incúria.
No que tange à intensidade da negligência, se pode falar-se aqui em atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, em contraponto, não se configura “um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável”, capaz de revelar um grau especialmente elevado de indiferença e de desrespeito para com a vida da criança.
Cabe aqui assinalar que a negligência inconsciente não é, forçosamente, uma forma menos grave (do que a negligência consciente) de realização do facto, pois a imprevisão do resultado que a norma pretende evitar pode ser, em si mesma, muito mais desvaliosa.
Ponderando o circunstancialismo descrito, e considerando, ainda, que, tendo decorrido já cinco anos sobre a data dos factos sem que ao arguido sejam conhecidos outros comportamentos penalmente censuráveis, diluiu-se um pouco a necessidade da punição, a pena de 18 meses de prisão satisfaz as necessidades de prevenção geral (ou seja, a reposição e reforço das expectativas comunitárias na validade da norma violada basta-se com esse quantum de pena) e não excede a medida da culpa do arguido.
Importa agora ponderar a aplicação de uma pena de substituição.
Sendo considerações de prevenção geral e de prevenção especial [de (res)socialização][17] que estão na base da aplicação das penas de substituição, o tribunal só deve recusar essa aplicação “quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente” ou, não sendo o caso, a pena de substituição só não deverá ser aplicada “se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”[18].
Estando verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena, há que indagar se ocorre o respetivo pressuposto material, isto é, se se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente se bastarão para afastar a arguida da criminalidade, pois é esta a finalidade precípua do instituto da suspensão[19].
Se a pena privativa da liberdade surge sempre como a última “ratio” do nosso sistema punitivo[20], tal não significa que não haja casos em que só essa pena é adequada a satisfazer os fins das penas.
É óbvio que, ao aumentar o limite da pena de prisão (dos 3 anos para os 5 anos) dentro do qual é possível a suspensão da execução, o legislador pretendeu alargar o âmbito de aplicação da pena de substituição, mas não tornar menos exigente o pressuposto substantivo da sua aplicação.
Visando as penas, antes de mais, a proteção de bens jurídicos e a reposição e o reforço da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas que o crime pôs em crise, as exigências de prevenção geral serão tanto mais prementes quanto maior for a gravidade da violação jurídica cometida.
Dito de outro modo, a função de prevenção geral, que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial, tem de ser eminentemente assegurada, sobrepondo-se, decisivamente, às restantes finalidades da punição[21].
Para a suspensão da execução da pena não basta um juízo de prognose positivo relativamente ao comportamento futuro do condenado, ou seja, um juízo favorável à sua reintegração na sociedade; é exigência incontornável que a suspensão da execução não comprometa uma das finalidades precípuas da pena, qual seja, a proteção de bens jurídicos.
Poderá dizer-se que, nos casos de homicídio, a consciência comunitária vê na suspensão da execução da pena um sinal de impunidade e uma forma de desvalorização do bem jurídico tutelado e por isso será sempre de denegar a suspensão?
Se é verdade que, nesses casos, porque as necessidades de prevenção geral são particularmente prementes, via de regra, as penas de prisão devem ser efetivas, não há, neste conspecto, qualquer rigidez jurisprudencial e, não raro, deparamo-nos com decisões de suspensão da execução da pena de prisão por crimes de homicídio tentado[22]. Nos crimes de homicídio negligente, pode considerar-se uniforme a jurisprudência no sentido de que só quando a negligência é grosseira será de desaplicar esta pena de substituição[23].
Ponto é que ocorram razões ponderosas que, superando as exigências preventivas, poderão justificar a suspensão da execução da pena.
Antes de mais, importa referir que o juízo de prognose que cabe ao tribunal efetuar tem de reportar-se ao momento da decisão, pois na formulação desse prognóstico tem de considerar-se, não só a personalidade do arguido, mas também as suas condições de vida e a sua conduta anterior e posterior ao facto.
Ora, não se detetam no arguido características da sua personalidade particularmente desvaliosas (antes apresenta raciocínio crítico e de valorização suprema da vida humana) e esse é um especto importante a considerar quando da formulação do juízo de prognose sobre a sua capacidade para (não voltar a) delinquir.
A conduta pretérita do agente releva para este efeito se permitir concluir “que o facto surge como um episódio ocasional ou isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito; mas é óbvio que esta conclusão não pode retirar-se, sem mais, da circunstância de o agente não ter sido anteriormente condenado” (Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, 252-253). Ou, como afirma A. Lourenço Martins, “Medida da Pena – Finalidades – Escolha – Abordagem Crítica de Doutrina e de Jurisprudência”, Coimbra Editora, 2011, 512), “na conduta anterior relevará frequentemente o valor atenuante do bom comportamento do arguido se, em especial pela idade do agente, fizer aparecer o delito como um evento isolado, ocasional, não condizente com a sua personalidade”. E, logo adiante, escreve o mesmo autor: “Repete-se na jurisprudência que a ausência de antecedentes criminais não é indicativo seguro de que exista bom comportamento (é sabido como só uma escassa parcela de crimes são participados e outra ainda bem menor leva a condenação)”.
Também o comportamento posterior do agente tem, naturalmente, grande relevo na formulação do juízo sobre o seu comportamento futuro.
A ressocialização do arguido parte da sua vontade de querer nortear-se pelo respeito dos valores ético-jurídicos comunitários e de respeitar os bens jurídicos penalmente tutelados, postura que tem de manifestar-se em atitudes comportamentais que, objetivamente, elucidem que está realmente interessado no caminho da reinserção social.
O arrependimento manifestado (que tem de ser bem mais que, apenas, a sua verbalização), o juízo crítico revelado e a interiorização que o agente tenha feito da gravidade e do mal do crime[24] assumem aqui importância decisiva para avaliar se a simples ameaça da pena constitui suficiente admonição contra o crime.
Tudo indica que esta situação foi um evento isolado que não releva da personalidade (bem formada) do arguido.
É caso para dizer que “no melhor pano cai a nódoa”.
É, pois, justificada a formulação, sem reservas, de um juízo de prognose positivo, não havendo razões para impor ao arguido pena de prisão efetiva.
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento aos recursos do Ministério Público e dos assistentes e, em consequência,
A) alterar a decisão recorrida em matéria de facto, nos sobreditos termos;
B) condenar o arguido B… pela autoria material de um crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período.
Sem tributação.
Porto, 30.01.2019
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
________________
[1] “Sumários de Processo Penal”, 1968, 50-51.
[2] Para uma exaustiva delimitação (negativa e positiva) do erro notório na apreciação da prova, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição atualizada, UCE, 1102-1103.
[3] Comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359.
[4] Mas, também os assistentes se baseiam nesses meios de prova para sustentar conclusão oposta.
[5] Apontando como exemplo o caso do médico anestesista que, perante a crise cardíaca do doente, não tem tempo de fiscalizar o conteúdo de uma ampola e administra o medicamento errado, do que resulta a morte do doente, em que a tendência será para negar a violação das leges artis, quando, em sua opinião, é evidente essa violação.
[6] Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 359.
[7] Ou, numa formulação equivalente, a criação, pelo agente, de um perigo não permitido.
[8] Se bem que os crimes negligentes possam ser crimes formais ou de mera atividade.
[9] M. Paula Ribeiro Faria, ob. cit., 62, face às divergências doutrinárias sobre a importância do resultado no ilícito negligente, inclina-se para «o reconhecimento de que o ilícito negligente é composto de um desvalor da conduta e de um desvalor do resultado que deve ser a concretização do risco criado ou potenciado pelo autor com a sua conduta».
[10] Nas palavras do Professor Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, 2001, pág.358, “as mais das vezes, a punição da negligência surge sem que o legislador descreva o facto a que corresponde, antes remetendo para a descrição respetiva punível a título de dolo (“se a conduta for praticada por negligência…”, v.g., art.º 272.º e ss.) ou renunciando, em todo o caso, a acrescentar à violação do cuidado objetivo – e eventualmente à menção do resultado – elementos típicos adicionais”.
[11] Cfr. Figueiredo Dias, ob.cit., 641 e segs.
[12] M. Paula Ribeiro Faria, ob. cit., 58 e segs., que, neste ponto, seguimos de perto.
[13] M. Paula Ribeiro Faria, idem, pág. 91.
[14] “Temas Básicos…”, 376.
[15] Cujo expoente máximo é, sabidamente, o Professor Figueiredo Dias (cfr. a sua obra “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, 75 e segs., que, neste ponto, seguimos de perto).
[16] Com uma perspetiva diversa, defendendo que «encontrar a “justa retribuição”, a pena “merecida” para o delinquente constitui a finalidade primeira da sanção, embora logo seguida das necessidades preventivas, especial e geral», A. Lourenço Martins, “Medida da Pena – Finalidades – Escolha – Abordagem Crítica de Doutrina e de Jurisprudência”, Coimbra Editora, 501.
[17] Por conseguinte, não são considerações de culpa que devem ser tidas em conta, mas juízos de prognose sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.
[18] Professor Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, 333.
[19] Como afirma o Professor Figueiredo Dias, Op. Cit., 343, é na “prevenção da reincidência” que se traduz o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização.
[20] É o que decorre do seguinte trecho do preâmbulo do Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março (que, recorde-se, operou a primeira grande reforma do Código Penal de 1982): “A pena de prisão – reação criminal por excelência – apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelarem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção”.
[21] Não falta até quem defenda que, face às particulares exigências de prevenção geral que os crimes de homicídio (tentado ou consumado) convocam, a determinação da pena se deva orientar, sobretudo, por considerações de prevenção geral negativa ou de intimidação.
[22] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 05/05/2005 e de 08/03/2006, disponíveis em www.dgsi.pt
[23] Embora circunstâncias particulares do caso concreto possam fundamentar um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do agente.
[24] Que deve exteriorizar-se através de ações que visem a reparação do mal causado (reparar as consequências do crime, até onde for possível.
Acórdão 1107/16.8T9PTG.E1
Lar de Idosos
Responsabilidade Civil
Culpa in Vigilando
14/04/2020
VIGILANCIA IDOSO
I - O artigo 491.º do Código Civil contempla uma situação específica de responsabilidade subjetiva pela omissão das pessoas obrigadas à vigilância, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano.
II - Cabe aos responsáveis pelos lares de idosos desenvolver as tarefas necessárias à sua proteção e segurança das pessoas ali internadas, designadamente quando não possam viver autonomamente.
III - Existe responsabilidade civil se a entidade responsável pelo lar não tomou as providências necessárias para obstar a que uma idosa ali internada, padecente de doença de Alzheimer, necessitada de ser imobilizada na cama na decorrência de episódios anteriores de levantamento durante a noite, morresse asfixiada.
Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo Comum Singular n.º 1107/16.8T9PTG, da Comarca de Portalegre, foi proferida sentença em que se decidiu absolver as arguidas EE e AA de um crime de homicídio por negligência do artigo 137.º, n.º s 1 e 2, e 15.º, alínea a), ambos do CP e do pedido cível contra as mesmas deduzido.
Na sentença, foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por AC e JC contra a demandada civil SCM, e condenada esta a pagar aos demandantes, “em partes iguais, o valor global de 95.000,00€ (noventa e cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pelo seu incumprimento contratual, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efetivo e integral pagamento, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, absolvendo-a da parte remanescente do pedido”.
Inconformada com o decidido, recorreu a demandada SCM, concluindo:
“a. O facto provado 8 está em contradição com os factos provados 11., 12., e 13., e com os depoimentos das testemunhas AM, Dr. MS e VB, deverá passar a ter a seguinte redação: - “ A imobilização foi feita numa cama sem grades “.
b. Os factos provados 30. e 73. estão em contradição com os factos provados 26., 59., 58., 57., 98., 99., 100., 101., 102., 103., 104. e 110. não devendo ser considerados provados para efeitos de condenação da demandada.
c. O facto provado 61 deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação: - “A prática de contenção que foi utilizada no caso da utente MN é correntemente utilizada em outras instituições de acolhimento de idosos e também no meio hospitalar”.
d. O facto provado 66 deverá ser corrigido passando a ter a seguinte redação: - “Nos termos do acordo ajustado entre a falecida e os seus dois filhos e a SCM, datado de 16.03.2016, de que existe cópia a fls.599 a 601, esta última obrigou-se a prestar a MN – Alojamento, Alimentação adequada às necessidades dos Utentes, respeitando as prescrições médicas, Apoio nos cuidados de higiene pessoal, Apoio no desempenho das atividades de vida diária, Tratamento de roupa, Apoio no cumprimento de planos individuais de medicação e no planeamento e acompanhamento regular de consultas médicas e outros cuidados de saúde”.
e. Os factos provados 68. e 69. estão em contradição com o facto provado 88, pelo que não poderão ser considerados provados e invocados para efeitos de condenação da demandada
f. O facto provado 71 está em contradição com o facto 87 pelo que não poderá ser considerado provado e invocado para efeitos de condenação da demandada
g. Os factos provados 74., 75., e 76 estão em contradição com os factos provados 11., 12., 13., 20., 26., 38., 39., 42., 43., 53., 56., 57., 58., 59., 60., 62., 63., 91., 96., 97., 98., 99., 100., 101., 102., 103., 104., 105. e 110. pelo que não poderão ser considerados provados nem serem invocados para efeitos de condenação da demandada
h. O facto 78 não está provado nem por documento ou prova testemunhal e está em contradição com o depoimento do Perito, pelo que não poderá ser considerado provado nem invocado para efeitos de condenação da demandada.
i. A imobilização da Dª MN numa cama sem grades não é um facto ilícito porque não constitui uma omissão de zelo exigível, em primeiro lugar porque não existe nenhuma disposição legal ou normativa que obrigue a demandada a deitar a ofendida numa cama com grades, vide Portaria 67/2012 de 21 de Março e Parecer da Segurança Social junto com o Documento nº 1 e Parecer do Conselho de Enfermagem da Ordem dos Enfermeiros junto como Documento nº 2.
j. Em segundo lugar a ofendida foi avaliada por mais de uma vez pelo Gabinete de Fisioterapia e Reabilitação Psicomotora e enfermeiros da demandada, que são técnicos especializados com competência para efetuar as avaliações, que determinaram que não tinha os critérios para lhe ser atribuída uma cama com grades, porque não estava acamada ou totalmente dependente nem possuía outras complicações, como excesso de peso, problemas de mobilidade, problemas cardiorrespiratórios ou feridas, vide factos provados 11, 12, 13
k. Não se verificou a violação do dever de vigilância porque o rácio de pessoal da demandada é bastante superior ao exigido legalmente, vide factos provados 100 e 101
l. As funcionárias que prestam serviço no 1º piso da ERPI, onde estava a Dª MN, são as mais bem preparadas, eficazes e da maior confiança da demandada, havendo permanentemente vigilância 24 sobre 24 horas vide factos provados 98. e 99.
m. Além da ofendida ter junto da sua cama e ao seu alcance um interruptor do sistema de chamada que permite que a funcionária de serviço, esteja em que local estiver, não só naquele piso mas também em qualquer ponto das instalações, se apercebe da chamada da ofendida, vide facto provado 58.
n. Em noites anteriores a ofendida pediu auxílio por voz ou utilizou o sistema de chamada existente, vide facto provado 57.
o. Mesmo num internamento em contexto hospitalar, não existe vigilância permanente nos quartos, com exceção do serviço de cuidados intensivos, vide facto provado 101.
p. Além de que circuito interno de vídeo fechado que a demandada possui tem a autorização N.º 5594/2016 dada pela com Comissão Nacional de Proteção de Dados que não permite a recolha de imagens de acesso ou interior de instalações sanitárias, zonas de espera, locais de lazer e repouso, corredores de acesso e interior dos quartos e cozinhas, vide Documento 3
q. Não se verifica assim a existência de facto ilícito nem a culpa, pressupostos da responsabilidade civil, devendo em consequência ser julgado improcedente o pedido de indemnização civil em que foi condenada
r. A não se entender assim, deverá ter-se em conta no valor da indemnização a idade da ofendida, o estado de saúde em que se encontrava, a esperança de vida e o facto de com toda a probabilidade ter falecido sem se aperceber o que estava a acontecer, por ter sofrido uma compressão lenta que a foi asfixiando lentamente e que ao mesmo tempo por falta de oxigénio lhe baixou o limiar de consciência, como foi referido pelo Perito em audiência de julgamento.”
Os demandantes responderam ao recurso pronunciando-se pela improcedência, e concluindo:
“I. Em nada são contraditórios os factos constantes dos pontos 8, 11, 12 e 13, uma vez que, não se põe em causa o teor das declarações prestadas pelas enfermeiras AM e VB, mas sim o facto das instruções por elas dadas e consequentemente, a forma como foi feita a imobilização, ser tecnicamente incorreta, uma vez que, como explicou o Sr. Perito médico, as imobilizações podem ser realizadas com recurso a um lençol, como sucedeu in casu, mas sempre numa cama de grades e nunca numa “cama normal”.
II. A imobilização numa cama normal, não impede uma pessoa de cair, como veio a suceder, o que nunca aconteceria numa cama de grades, não colhendo qualquer credibilidade o que foi afirmado pelas enfermeiras da Recorrente, que a pessoa “pode saltar por cima”.
III. No que respeito aos pontos 30 e 73, se pode ser verdade que à funcionária não era exigível servir as ceias e vigiar os quartos em simultâneo, à Recorrente era exigível ter um sistema de vigilância eficaz e permanente, uma vez que as imobilizações que eram realizadas diariamente não eram seguras e possibilitavam quedas.
IV. Com efeito, uma funcionária naquele piso é manifestamente insuficiente como se veio a provar, uma vez que a qualquer momento um utente pode cair ou precisar de auxílio por qualquer razão.
V. No que respeita ao ponto 61, nunca a douta sentença diz que a Recorrente é um hospital, o que refere é que, como já se disse acima, as imobilizações, a serem necessárias, devem ser realizadas de forma segura, tal como se faz nos hospitais, em camas de grades.
VI. Relativamente ao ponto 66, entendemos que assistência médica corresponde à prestação de cuidados de saúde e acompanhamento, conforme consta claramente do Regulamento Interno, o que não restam dúvidas, a Recorrente se obrigou a prestar.
VII. No que concerne aos pontos 68 e 69, não são contraditórios, uma vez que quando MN entrou para a Instituição andava pelo seu próprio pé, falava, conhecia todas as pessoas com quem lidava e comia sozinha, de modo que, não evidenciava ainda muitos sintomas de Alzheimer, pese embora já tivesse alguns, nomeadamente a necessidade de usar fralda, alguma confusão espácio-temporal e necessitar de vigilância.
VIII. Quanto ao ponto 71, o facto de MN ter estado em outras Instituições, não está em contradição com o facto de os Demandantes alegarem que não queriam que esta estivesse sozinha em casa.
IX. Relativamente aos pontos 74, 75 e 76, MN foi imobilizada, numa cama sem grades, não a protegeu nem fez com que ficasse em segurança.
X. Pelo contrário, o lençol causou a sua asfixia, o que nunca teria ocorrido se esse método de contenção fosse utilizado numa cama de grades, como sucede nos hospitais.
XI. Deste modo, a utilização de um meio de contenção, implicaria uma vigilância permanente, o que não ocorreu em função do meio de organização do trabalho da Demandada.
XII. Como não assegurou vigilância permanente, MN acabou por escorregar da cama, o que não aconteceria com uma cama de grades e ninguém se apercebeu, acabando por asfixiar até à morte.
XIII. A imobilização teria de ser feita numa cama de grades e nunca como aconteceu.
XIV. A imobilização não se substitui a uma vigilância, muito pelo contrário, implica maior vigilância, por acarretar um risco de asfixia, que aparentemente as enfermeiras da Demandada desconheciam.
XV. Para além disso, importa ter em consideração que, por contrato celebrado em 16/03/2016, a SCM, obrigou-se a prestar a MN estadia, alimentação, assistência, de enfermagem, acompanhamento e vigilância, mediante o pagamento de uma mensalidade.
XVI. MN foi para o lar da Recorrente por ter sido diagnosticada com Alzheimer uma doença incurável e com tendência para piorar e assim, estaria sempre acompanhada, vigiada e em segurança.
XVII. Ora, a Recorrente assumiu obrigações perante MN que, incumpriu.
XVIII. O facto de as funcionárias não serem responsáveis criminalmente não significa que a Recorrente não seja responsável, uma vez que, esta tinha obrigação de organizar o serviço, o espaço e os recursos de modo a ser garantida a segurança dos utentes, que pagavam por esse serviço.
XIX. A Demandada ao permitir que MN estivesse sem vigilância adequada, incorretamente imobilizada e ao permitir que esta escorregasse da cama, acabando por ser asfixiada com um lençol, até à morte, omitiu os deveres de cuidado a que, contratualmente, se tinha obrigado, sendo assim, responsável civilmente pela morte daquela.
XX. Pelo que, a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que condenou a Recorrente, deve ser integralmente mantida, não merecendo qualquer reparo e consequentemente, ser o recurso improcedente.”
Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto apôs o seu visto e teve lugar a conferência.
2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. A ofendida MN, nascida em 17-06-1941, encontrava-se, desde 16-03-2016, a residir na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI), Dr. ---, da SCM, sita …em Portalegre, onde dormia, inicialmente no quarto n.º 207 do 2.º piso, depois passou para o lar do Espírito Santo a 18/03/2016, voltando à ERPI a 13/09/2016, ficando no quarto n.º 113 do 1.º piso, passando posteriormente, a partir do dia 30/10/2016, para o quarto n.º 114, também do 1.º piso.
2. A ofendida padecia de doença de Alzheimer costumando mostrar-se muito agitada de noite, sendo frequente levantar-se várias vezes da cama, chamar as ajudantes e gritar durante toda a noite.
3. A 19/09/2016 a ofendida caiu da cama e não se queixou de nada.
4. A 30/10/2016 a ofendida caiu por duas vezes, a primeira durante a noite/madrugada, e a segunda no refeitório, cerca das 19h00, após o jantar, apresentando a face do lado direito inchada e negra perto da vista.
5. Nesse mesmo dia a ofendida foi observada nas urgências do hospital, verificando-se que não apresentava nenhuma fratura, apenas estava magoada com dores.
6. Cerca das 11h00 do dia 30/10/2016, a enfermeira MM ligou ao Dr. S. por causa da agitação noturna da ofendida, tendo este dado indicações para se administrar ao jantar 2,5mg de Lorenin, um ansiolítico que ajuda a dormir.
7. Devido à sua agitação, para evitar quedas, a equipa de enfermagem do Lar determinou que, até ordem em contrário, a ofendida deveria ser imobilizada na cama, mediante a colocação de um lençol atado à cama, e atravessado como se fosse uma faixa, sobre o seu tórax, na região infra mamária, deixando os braços e as pernas livres.
8. Porém a imobilização foi feita numa cama sem grades ou qualquer outra proteção lateral, como é prática comum na ERPI, o que apenas prevenia que a ofendida se levantasse de noite e caísse, mas já não prevenia uma queda da cama, como veio a ocorrer.
9. A 4/11/2016 estavam a ser prescritos à ofendida medicamentos com efeito calmante ou similar.
10. Na ERPI existem camas articuladas (todas com grades), e camas simples, com uma altura de 50 cm do chão, nas quais podem ser colocadas grades amovíveis.
11. O gabinete de fisioterapia e reabilitação psicomotora da SCM realizou uma avaliação à ofendida no dia 21/03/2016, e em face dos resultados determinou que aquela necessitava de uma cama sem barreiras e com altura reduzida, uma vez que não se encontrava acamada ou totalmente dependente, mas apenas necessitava de auxílio no banho e a vestir-se.
12. Na ERPI as camas articuladas são atribuídas a utentes acamados ou totalmente dependentes ou com complicações a outros níveis (excesso de peso, alteração saturação de oxigénio, feridas, alteração mobilidade, entre outras) que necessitam de permanecer mais tempo no leito. Estas camas são reguláveis em altura, o que facilita a transferência dos utentes e o trabalho dos auxiliares.
13. O gabinete de fisioterapia e reabilitação psicomotora da SCM considerou que não houve alterações significativas na avaliação entre Março a Outubro de 2016 que fizesse justificar a alteração dos recursos físicos/ajudas técnicas (fornecimento de cadeiras de rodas, bengalas, andarilho, cama articulada, entre outros).
14. As arguidas EE e AA, na qualidade de ajudantes de lar, Estrutura Residencial para Pessoas Idosas Dr. --- da SCM, foram escaladas para assegurarem o turno do período noturno do dia 04-11-2016, junto do 1.º piso, daquele Lar de idosos.
15. Assim, a arguida EE tinha de assegurar o turno até às 21h00m do dia 4-11-2016, para então ser substituída pela arguida AA, para vigilância e prestação de cuidados às utentes acomodadas no 1.º piso.
16. Na qualidade de ajudantes de lar, competia às arguidas a vigilância das utentes, a garantia da sua segurança e a prestação de cuidados básicos como a administração de medicação, a toma das refeições e o apoio na higiene diária.
17. Para vigilância das utentes, competia às arguidas a realização de rondas junto dos quartos das mesmas, a ocorrer obrigatoriamente no fim dos turnos do período noturno, que terminavam às 21h00m.
18. E competia em especial uma vigilância permanente sobre as utentes instaladas no 1.º piso, por se encontrarem dependentes das ajudantes, como era o caso da ofendida.
19. Após o jantar, entre as 19h30m e as 20h00, de 04-11-2016, a arguida EE deitou a ofendida na cama em decúbito lateral direito, e imobilizou-a, tal como tinha sucedido nos dias anteriores, colocando-lhe uma faixa de lençol, sobre o tórax, na região infra mamária, e atou-a à cama, para a manter deitada e evitar que se levantasse e caísse durante a noite.
20. A imobilização realizada pela arguida EE obedeceu a todas as instruções transmitidas pelas enfermeiras na formação anual que ministram nessa matéria.
21. A arguida EE efetuou uma ronda de vigilância junto da ofendida, antes de ser substituída pela arguida AA, cerca das 21h00m dessa noite, verificando que se encontrava bem.
22. Por sua vez, ao assumir o turno que se iniciou às 21h00m daquela noite, a arguida AA foi de imediato para a copa do 1º piso, da Estrutura Residencial Para Pessoas Idosas Dr. ---, preparar as ceias e de seguida procedeu à sua distribuição pelos utentes, tendo chegado ao quarto 114 por volta das 22h00.
23. O quarto 114 da ofendida era o último quarto do 1.º piso a ser servido e verificado.
24. No turno que se inicia às 13h00, e finda às 21h00, estão ao serviço duas ajudantes de lar para o 1.º piso, ao passo que no turno seguinte (das 21h00 às 09h00) já só se encontra ao serviço uma ajudante de lar para aquele piso.
25. A enfermeira de serviço sai da ERPI às 19h00, e a partir daí está acessível por via telefónica.
26. A ofendida não chamou, oralmente ou através do sistema de chamada, nenhuma das auxiliares.
27. Em hora não concretamente apurada, situada entre as 21h00m e as 21h30m, do dia 04-11-2016, a ofendida MN, apesar de se encontrar imobilizada com a referida faixa de lençol em volta do tórax, conseguiu movimentar-se na cama.
28. Assim, a ofendida, tentou sozinha libertar-se da faixa de lençol que a prendia à cama, agitando o corpo e exercendo força com os braços e mãos contra a mesma, até conseguir colocar os braços por baixo da faixa, a qual acabou por se deslocar da zona do tórax para a zona do pescoço.
29. Depois a ofendida foi escorregando lateralmente da cama, até que, por incapacidade de mudar de posição, acabou por ficar presa, com a faixa em roda do pescoço, que a foi lentamente comprimindo, produzindo-lhe asfixia até lhe causar a morte.
30. Nessa altura, ao precisar de auxílio, a ofendida não tinha nenhuma ajudante a vigiá-la que a pudesse ajudar, pois que a única ajudante de serviço encontrava-se a administrar a ceia aos outros utentes nos respetivos quartos.
31. Quando a arguida AA chegou ao quarto da ofendida para administrar a ceia, cerca das 22h00m, daquela noite, encontrou-a já prostrada e sem sinais vitais, inclinada em posição de decúbito lateral esquerdo e suspensa pelo lençol, a vincar-lhe o pescoço.
32. O óbito da ofendida foi certificado como tendo ocorrido pelas 21h30m, do dia 04-11-2016, sem causa de morte.
33. Da autópsia médico-legal resultou comprovado que a morte da ofendida se deveu a uma asfixia mecânica por constrição do pescoço – sufocação.
34. As arguidas são trabalhadoras da SCMP - SCM, com a categoria de Ajudantes de Lar, exercendo a sua atividade na ERPI - Estrutura Residencial para Pessoas Idosas Dr. ---, sita…, em Portalegre.
35. Exerciam, à data dos factos, essa atividade, no Piso 1 da referida ERPI.
36. No dia 04.11.2016 a arguida EE trabalhou no turno que teve início às 13h e termo às 21h.
37. E a arguida AA no turno que teve início às 21h e termos às 09h.
38. A SCMP tem uma Equipa de Saúde à qual cabe, entre outras competências, a determinação de utilização de medidas de contenção aos utentes.
39. As arguidas estão funcional e tecnicamente subordinadas às determinações da Equipa de Saúde, no que respeita a medidas de contenção dos utentes.
40. A Equipa de Saúde tinha determinado que a utente MN deveria ser sujeita, quando se deitasse, a medida de contenção para limitação dos seus movimentos.
41. Tal medida traduz-se na utilização de um lençol dobrado na diagonal, colocado na região infra mamária, passando por baixo dos braços, sendo as pontas do lençol atadas nos lados da cama, devendo ser dada uma pequena folga.
42. No cumprimento de tais instruções, a arguida EE procedeu à imobilização da utente MN, nos termos supra indicados.
43. A arguida EE e a sua colega MHC, na ronda de final de turno, pelas 20.40h, verificaram que a utente MN se encontrava corretamente imobilizada, deitada na sua cama e que se encontrava calma.
44. As Ajudantes de Lar, no exercício das suas funções, devem registar no Livro de Ocorrências, no caso, no Livro de Ocorrências do Piso 1, as situações anómalas de que seja necessário outros funcionários da SCMP terem conhecimento, designadamente os funcionários que fazem o turno seguinte.
45. Não está previsto que as situações de imobilização, porque são medidas preventivas, tenham de ser levadas ao Livro de Ocorrências.
46. Na passagem de turno das 21h do dia 04/11/2016, apenas consta no Livro de Ocorrências da ERPI, Piso1: “O Sr. JR vai para o quarto pois não se estava a sentir bem. Tinha diarreia também. Ao jantar só quis a sopa.” - Assinado por MHC.
47. A arguida AA entrou de serviço às 21.00h.
48. Nada constava do Livro de Ocorrências, nem nada lhe foi assinalado na passagem do turno, que justificasse, antes de dar início às tarefas que lhe competia executar, verificar como se encontrava a utente MN.
49. Assim, deu início à primeira de tais tarefas, ou seja, servir uma refeição ligeira, composta por uma bebida e bolachas e verificar posicionamentos.
50. O quarto mais próximo do local onde se encontram tais alimentos e os utensílios necessários, é o quarto 101, pelo que iniciou tal serviço nesse quarto.
51. A arguida chegou ao quarto 114 pelas 22h e deparou com a utente MN aparentemente sem vida.
52. Procedeu de imediato ao contacto com a Equipa de Saúde, tendo esta promovido os procedimentos necessários à situação.
53. Desde as 21h às 22h nada se verificou que justificasse que a arguida AA se deslocasse ao quarto da utente MN.
54. Naquela noite havia mais 3 utentes no Piso 1 a quem foram aplicadas medidas de contenção.
55. É frequente haver utentes sujeitos a medidas de contenção pelas mesmas razões da utente MN.
56. Também a malograda MN tinha sido sujeita a tal medida algumas vezes, antes do dia 4/11/2016, sem que nada, igualmente, tenha justificado algum procedimento especial.
57. Em noites anteriores a utente MN pediu auxílio por voz ou utilizando o sistema de chamada existente.
58. Tal sistema permite que a Auxiliar, esteja em que local estiver, não só naquele piso mas também em qualquer ponto das instalações, se aperceba da chamada da utente.
59. A utente MN não utilizou a campainha de chamada existente junto da sua cama e ao seu alcance, nem chamou oralmente nenhuma das arguidas.
60. A arguida AA nunca se ausentou do 1º Piso.
61. A prática de contenção que foi utilizada no caso da utente MN é correntemente utilizada em outras instituições de acolhimento de idosos e também em meio hospitalar, sendo que no hospital de Portalegre todas as camas têm grades.
62. As arguidas são funcionárias zelosas e diligentes.
63. As arguidas cumpriram as suas funções de acordo com as orientações superiormente estabelecidas.
64. Os demandantes são filhos e únicos herdeiros de MN, falecida no estado de viúva.
65. A demandada SCM é proprietária do lar residencial do Espírito Santo, …, em Portalegre.
66. Nos termos do acordo ajustado entre a falecida e os seus dois filhos e a SCM, datado de 16/03/2016, de que existe cópia a fls. 599 a 601, esta última obrigou-se a prestar a MN estadia, alimentação, assistência médica, de enfermagem, acompanhamento e vigilância.
67. Mediante o pagamento mensal da importância de 700,00€, acrescido de despesas com vestuário, medicamentos, fraldas, entre outros.
68. À data da entrada no lar, MN, tinha 75 anos de idade e padecia de Alzheimer, há pouco tempo, evidenciado, ainda, poucos sintomas da referida doença.
69. MN ainda não era muito dependente de terceiros para satisfazer as suas necessidades de alimentação, higiene e vestuário.
70. Mas, tendo em consideração a natureza da doença, a sua evolução e irreversibilidade, e por saberem que mais cedo ou mais tarde, necessitaria de cuidados e atenção constantes, os demandantes decidiram colocar a sua mãe na aludida instituição.
71. Evitando assim os riscos inerentes ao facto de esta residir sozinha, em Portalegre, longe dos demandantes.
72. Os demandantes ficaram absolutamente convencidos que naquele local, a sua mãe, teria acesso a cuidados e vigilância que não lhe conseguiam prestar, atento o facto de residirem com as respetivas famílias e trabalharem longe da residência daquela.
73. Precisando de auxílio, ninguém apareceu para lho prestar, verificando-se a inexistência de qualquer vigilância entre as 21h00 e as 21h30.
74. Com o comportamento adotado pelas funcionárias – auxiliares e enfermeiras da SCM que, agindo sob as suas ordens e instruções, prenderam MN com uma faixa de lençol a uma cama sem grades, e não asseguraram a vigilância devida, a instituição incumpriu, de forma grave, as obrigações que tinha assumido.
75. Omitindo os deveres de cuidado a que estava obrigada.
76. Causando assim diretamente a morte de MN.
77. A morte de MN não foi instantânea ou imediata.
78. Durante o lapso temporal em que a faixa se enrolou no seu pescoço a até à morte, MN momentos de aflição, dor e sofrimento.
79. Faleceu sozinha.
80. Os demandantes nutriam pela sua mãe um grande amor.
81. A morte desta, nas circunstâncias em que ocorreu, constituiu um rude golpe que não estavam preparados para enfrentar.
82. Visitavam-na regularmente durante o período em que esteve no lar da demandada, telefonavam diariamente para se inteirarem do seu estado e sempre cuidaram para que nada lhe faltasse.
83. Nas várias visitas que faziam à sua mãe, sempre lhe mostraram o amor e carinho que tinham por ela.
84. A sua morte e o sofrimento que esta envolveu, causaram e continuam a causar uma grande dor aos demandantes.
85. Choram e sentem a falta da sua mãe diariamente.
86. Continuam a sentir uma imensa dor e saudade e não se conformam com a sua morte, nas circunstâncias em que ocorreu.
87. A Dª MN antes de ter entrado no Lar Residencial do Espirito Santo da Demandada, já tinha estado em dois estabelecimentos de Lar.
88. E quando entrou no dia 16.03.2016, vinha com a indicação de que sofria de Alzheimer e com diagnóstico de demência, perdia-se no espaço e no tempo, e por isso necessitava de supervisão e orientação para a sua higiene pessoal, com indicação que usava fralda de noite e que necessitava de vigilância.
89. Durante a estadia da Dª MN nos estabelecimentos da Demandada, verificaram-se várias ocorrências de agitação.
90. Os episódios de agitação eram muito frequentes e por vezes puseram em causa a integridade e segurança da própria Dª MN e de outras utentes.
91. E como medida de prevenção, de modo a assegurar a integridade física da Dª MN e das outras utentes, foi por várias vezes imobilizada durante a noite com um lençol que passava por baixo da zona infra mamária e ia atar às extremidades laterais da cama.
92. Era dada folga no lençol para permitir que a utente Dª MN pudesse durante a noite mudar de posição na cama.
93. Para além de permitir que os braços e as pernas estivessem sempre livres.
94. E se fosse necessário durante a noite a utente ir à casa de banho, chamava a ajudante de lar através da campainha que estava ao seu alcance na cama.
95. A ordem para imobilizar a Dª MN bem como as outras utentes que necessitavam de o ser, era dada pela enfermeira e executada pela ajudante de lar que estivesse de serviço.
96. As enfermeiras da Demandada davam formação às ajudantes de lar do modo e técnica para efetuarem as imobilizações às utentes.
97. Além de que a Demandada tem a preocupação de efetuar permanentemente formação às suas funcionárias.
98. E as ajudantes de lar que prestam serviço no 1º piso do ERPI onde estão os utentes mais dependentes, local onde estava a Dª MN, são as mais bem preparadas, mais eficazes e da maior confiança da Demandada.
99. Além de que este 1º piso do ERPI - Estrutura Residencial para Pessoas Idosas Dr. --- tem permanentemente 24 sobre 24 horas vigilância pelo menos por uma ajudante de lar.
100. Os rácios de pessoal da Demandada são bastante superiores aos exigidos legalmente, mas mesmo assim é impossível ter uma ajudante de lar de modo permanente em todos os quartos.
101. Nem tão pouco em internamento em contexto hospitalar, existe vigilância permanente nos quartos, com exceção do serviço de cuidados intensivos.
102. A atividade da Demandada está sujeita à fiscalização e à avaliação do seu funcionamento, quanto à qualidade e regularidade dos serviços prestados aos utentes, nomeadamente quanto às condições de instalação e alojamento, adequação do equipamento, alimentação e condições higienossanitárias, pelos Serviços do Instituto da Segurança Social.
103. E no âmbito dessa fiscalização e avaliação, os Serviços do Instituto da Segurança Social, no âmbito dos relatórios de 7/10/2016, de 02/11/2016, e Setembro/2018, não detetaram qualquer irregularidade à resposta social ERPI ou mesmo qualquer proposta de alteração ao seu funcionamento.
104. A Demandada possui uma estrutura organizada e com procedimentos bem definidos.
105. Não existiu qualquer incumprimento ou omissão por parte das arguidas.
106. A Demandada nos termos do n.º 3 do artigo 1º do Compromisso da Irmandade da SCM, tem reconhecida a sua personalidade jurídica civil, com estatuto de Instituição Particular de Solidariedade Social, sendo considerada uma entidade da economia social, nos termos da respetiva Lei de Bases, e natureza de Pessoa Coletiva de Utilidade Pública.
Mais se provou com relevo para a determinação da sanção, que:
107. As arguidas não têm antecedentes criminais.
108. A arguida EE trabalha como empregada de limpeza a tempo parcial, aufere um vencimento mensal superior a 400,00€, vive com o seu filho de 20 anos, estudante do 12.º ano, suporta 300€ de renda, e 100€ de prestação mensal do crédito automóvel; tem o 9.º ano de escolaridade.
109. A arguida AA trabalha como ajudante de lar na SCM, aufere um vencimento mensal superior a 600,00€, vive em casa própria paga, com o seu filho de 18 anos, estudante do 12.º ano, e com o seu marido, que trabalha por conta própria e aufere um rendimento mensal de cerca de 600,00€; tem como habilitações escolares o grau de licenciatura em serviço social.
110. A arguida AA é considerada pela SCM como uma excelente funcionária, extremamente competente e responsável.”
Foram considerados não provados os seguintes factos:
“i) Da acusação:
A. Depois disso e apesar de saber que a ofendida se mantinha agitada durante a noite e de que a mesma se encontrava imobilizada na cama, a arguida EE não se manteve vigilante, de forma permanente, junto do quarto onde a ofendida se encontrava, desde essa altura e até ao final do seu turno, que terminava às 21h00m;
B. Por sua vez, ao assumir o turno que se iniciou às 21h00m daquela noite, competia à arguida AA ir logo para junto das utentes do 1.º piso;
C. Ao assim agir, bem sabiam as arguidas que a ofendida, enquanto doente idosa e imobilizada, tinha de ser vigiada para garantia da sua segurança e que na qualidade de ajudantes de lar especialmente encarregues daquela utente, estavam obrigadas a vigiá-la e a zelar pela sua segurança;
D. E ao atuarem da forma descrita, cada uma das arguidas agiu ciente de que atentas as circunstâncias, era previsível que a sua conduta pudesse contribuir de forma determinante para a colocação em perigo de vida da ofendida, atenta a possibilidade de ocorrência de um acidente e asfixia decorrente da imobilização da ofendida e não obstante, não se conformaram-se com tal possibilidade;
E. A conduta das arguidas colocou assim a ofendida em risco, concretizado, de asfixia e foi causadora da sua morte;
F. Com a sua conduta, cada uma das arguidas, violou o especial dever de cuidado que impendia sobre as mesmas de vigiar a ofendida, de garantir a sua segurança e de lhe prestar os cuidados básicos, que constituíam as suas funções principais como funcionárias da instituição, o que era do seu conhecimento;
G. E tal conduta configura, por parte das arguidas, uma violação de deveres de cuidado e a omissão de cuidados básicos que as arguidas tinham de prestar a ofendida, que só por descuido, desinteresse e incúria ocorreu;
H. Ambas sabiam também que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.
ii) Do pedido de indemnização civil:
I. As demandadas arguidas não asseguraram a vigilância devida.
J. As demandadas arguidas omitiram os deveres de cuidado a que estavam obrigadas.
iii) Da contestação das arguidas:
K. Nada permitia prever a situação que levou à morte da utente MN.
iv) Da contestação da demandada civil SCM:
L. Não existiu qualquer incumprimento ou omissão por parte da Demandada.
M. Nem a morte da Dª MN foi causada por qualquer Acão ou omissão da Demandada, não se verificando qualquer nexo de causalidade.”
E a motivação da decisão de facto foi a seguinte:
“O tribunal formou a sua convicção relativamente à matéria de facto, com base na apreciação crítica da prova produzida em sede de julgamento e, em resultado de uma avaliação englobante do contexto probatório.
Em particular, a convicção do tribunal baseou-se, quanto aos factos considerados como provados na apreciação conjugada e de acordo com as regras de experiência comum, nos seguintes elementos de prova:
- nos depoimentos de todos os ajudantes, enfermeiros, médico, que prestam serviço na SCM, o seu Provedor, e a Diretora da ERPI, e dos agentes da PSP que foram chamados ao local, na medida em que, ou se encontravam presentes no momento da ocorrência de parte dos factos, tendo presenciado os mesmos no exercício das suas funções; ou prestaram depoimento a partir do seu conhecimento e experiência profissionais quanto ao modo de funcionamento do lar, e/ou dos procedimentos de imobilização de utentes; os quais com reconhecida clareza e segurança nos seus depoimentos, revelaram-se inteiramente credíveis com tal conhecimento de causa e inequívoca isenção, mostram-se inteiramente compatíveis entre si, merecendo total credibilidade.
- nas declarações dos demandantes civis quanto aos danos não patrimoniais por si sofridos e ao estado de saúde da ofendida, as quais se revelaram credíveis e de acordo com os juízos de normalidade de dois filhos que perdem inesperadamente a mãe nestas trágicas circunstâncias.
- nas declarações da médica neurologista da ofendida, do seu irmão e cunhada, ao estado de saúde da ofendida, as quais se revelaram claras e corroborantes.
- no teor da prova pericial consubstanciada no relatório médico-legal junto aos autos a fls. 444-450, o aditamento ao relatório de autópsia médico-legal, de fls. 513-519, o relatório de exame toxicológico, de fls. 451, o relatório de exame toxicológico complementar (medicação), de fls. 520, e a análise histológica, de fls. 452/453; bem como as declarações do Sr. Perito que prestou diversos esclarecimentos em sede de audiência de julgamento, os quais se revelaram esclarecedores.
- foram ainda considerados os documentos constantes dos autos, designadamente a participação de fls. 2/3, o aditamento, de fls. 191, o certificado de óbito, de fls. 8, o registo do óbito (SICO), de fls. 13, os dados de identificação civil da ofendida, de fls. 9, a reportagem fotográfica, de fls. 26-29, as fotografias de fls. 697-720, a certidão de habilitação de herdeiros de fls. 587/598, o contrato de fls. 599-601, e os documentos da SCM, designadamente o processo clínico, de fls. 63-67, as prescrições terapêuticas, de fls. 474-493, o registo de administração terapêutica, de fls. 496-502, as informações, de fls. 277, 495 e 564, a certidão de ocorrências, de fls. 68-147 e 436-443, as cópias de contratos de trabalho, de fls. 461-473, o regulamento interno, de fls. 222-266 e 602-609, o quadro de pessoal, de fls. 267-273 e 277-279, os documentos sobre formação profissional, de fls. 304-316 e 393-434, e os documentos sobre fiscalização, de fls. 332-390 e 552-563, o registo de consulta de fls. 614, o perfil profissional da arguida AA de fls. 615, e o relatório de avaliação de fls. 686/687.
Relativamente aos antecedentes criminais, o tribunal teve em conta os certificados de registo criminal constante dos autos a fls. 764/765.
Quanto às condições pessoais das arguidas o tribunal teve em consideração o teor das suas declarações a esse respeito prestadas na audiência de julgamento, por se afigurarem plausíveis e credíveis.
*
Perante este conjunto de elementos de prova não se provou a versão constante do libelo acusatório e do despacho de pronúncia, na medida em que resultou claro que a morte da ofendida não pode ser imputada à atuação das duas arguidas.
Efetivamente a arguida EE limitou-se a seguir as instruções que lhe foram transmitidas, quer pelas enfermeiras para imobilizarem a ofendida com a faixa de lençol, tendo-o feito de acordo com a formação que lhe foi ministrada; quer pelo gabinete de fisioterapia e reabilitação psicomotora da SCM, o qual determinou que a arguida não devia dormir numa cama com grades.
Mais se provou, pelas declarações credíveis da ajudante de lar MHC –, a qual esteve igualmente a trabalhar no turno das 13h00 às 21h00, do dia 4/11/2016, juntamente com a arguida EE –, que foi feita uma ronda pelos quartos antes do fim do turno, sendo o quarto da ofendida o último a ser visto, mesmo antes das 21h00, e que esta estava calma e corretamente deitada na sua cama.
Tendo em conta que o procedimento de imobilização já tinha vindo a ser executado à ofendida desde há alguns dias, até nova ordem em contrário, é manifesto que a arguida EE nada tinha que dizer à arguida AA na mudança de turno, nem nada tinha que inscrever no livro de ocorrências, sendo que as imobilizações não devem constar desse livro mas do processo clínico da utente.
Assim se conclui que nenhuma censura se pode assacar ao comportamento da arguida EE, pois que, infelizmente, era e é, prática corrente, na SCM, imobilizar utentes a camas sem grades com uma faixa de lençol.
E o mesmo se diga da atuação da arguida AA, pois que nada lhe sendo dito que o justificasse, não tinha que fazer nova ronda pelos quartos no início dos turnos, antes lhe competia ir para a copa preparar as ceias e servi-las, demorando cerca de uma hora até chegar ao último quarto que era precisamente da ofendida.
De acordo com a prova produzida a ofendida terá escorregado da cama entre as 21h00 e as 21h30, sendo que nunca chamou a ajudante nem carregou no botão. Como o corpo da ofendida não chegou a tocar o chão também não terá havido barulho da queda, sendo que qualquer barulho, que pudesse ter ocorrido dos movimentos da ofendida na cama, não poderia ser audível pela arguida que a essa hora estava ocupada a preparar as ceias e a servi-las, sendo a única ajudante de serviço nesse piso.
A morte da ofendida deveu-se antes à circunstância de a mesma ter caído da cama e ficar pendurada pelo lençol que estava enrolado à volta do seu pescoço, o qual lentamente foi empurrando a língua para a parede posterior da laringe impedindo a passagem do ar, causado assim asfixia que levou à morte.
Veja-se que a ofendida foi colocada a dormir em decúbito lateral naquela noite, o que significa que, ao virar-se de barriga para cima, a folga da faixa ficou muitíssimo maior, o que permitiu que a ofendida colocasse os braços debaixo da mesma, e ao realizar vários movimentos na cama, acabou por arrastar a faixa até à zona do pescoço, o que veio a revelar-se fatal caso a mesma caísse da cama, como veio a suceder.
Sendo que, no caso em concreto, atenta a medicação que a ofendida tomava e que induzia o sono, o quadro demencial, a sua idade avançada, a fraca musculatura e a debilidade física, resulta provável que a ofendida estivesse a dormir enquanto estava lentamente a asfixiar, tal como sucede nos casos de apneia grave, o que explica que a mesma não tenha feito nenhum barulho audível, nem chamado a ajudante.
Ora, como claramente esclareceu o perito médico-legal, uma pessoa agitada tem que dormir numa cama de grades, sendo inconcebível ser amarrada a uma cama estreita sem qualquer proteção lateral, especialmente tendo em conta que a ofendida já tinha caído da cama por duas vezes durante a noite.
Neste âmbito não colhe a justificação muitas vezes oferecida pelas enfermeiras e Diretora da ERPI que uma cama de grades era mais perigosa para a ofendida por não impedir que a mesma saltasse da cama e caísse de uma altura superior.
E não colhe pelo simples motivo que tal nunca sucederia com a mesma imobilização que foi feita à ofendida, pois esta impede que aquela se levante da cama, quer esta tenha ou não grades, sendo que as grades impedem que caia da cama pendurada pelo lençol. É assim que se faz nos hospitais.
Na última sessão de julgamento a enfermeira VB e a Diretora da ERPI avançaram com outro argumento que seria o desconforto da ofendida, o que no seu entender provocaria ainda maior agitação. Ora, salvo o devido respeito, tal argumento afigura-se-nos absolutamente despropositado, pois que, muito maior desconforto causa a imobilização do que as grades, e a mesma não deixou de ser executada inúmeras vezes, noite após noite, pois como a enfermeira VB reconheceu, acima do conforto do utente está a sua segurança, saúde e vida.
Outrossim a discussão que foi trazida aos autos quanto às camas articuladas e autonomia dos utentes também é despicienda, pois, como se apurou, é possível colocar grades amovíveis na cama onde a ofendida dormia, sendo tal uma medida básica de segurança, a qual foi pura e simplesmente ignorada.
Do mesmo modo se diga quanto à hipótese de a sufocação da ofendida ter sido causada pela obstrução das entradas de ar na cara por ter ficado comprimida contra o lado do colchão – hipótese possível mas não provável de acordo com o perito médico-legal – na medida em que, tal cenário também nunca se poderia verificar numa imobilização feita numa cama de grades.
Optando a demandada por imobilizar utentes em camas sem grades ao mesmo tempo que não dispõe de recursos técnicos (câmaras de vídeo), nem meios humanos suficientes para vigiar 24 horas por dia cada utente, não pode deixar de ser responsável por esta morte, na medida em que a mesma era espectável e previsível, atento o historial de quedas da ofendida e o seu elevado grau de agitação noturna, o qual se encontra devidamente reportado no histórico de ocorrências a fls. 68-147 e 436-443.”
E a fundamentação da decisão em matéria cível foi a seguinte:
“O filho da vítima AC constitui-se assistente, e juntamente com o seu irmão, JC, deduziram um pedido de indemnização civil contra as arguidas e a SCM, no montante de 110.000,00 €, pelos danos não patrimoniais ocorridos em consequência da morte da sua mãe.
A responsabilidade civil por perdas e danos emergente de crime é regulada pelos artigos 129.º e seguintes do Código Penal, fundando-se o pedido de indemnização civil formulado no processo penal respetivo na indemnização por danos emergentes da prática de um crime (cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal).
Deste modo, porque a responsabilidade aqui em análise é apenas a responsabilidade civil por factos ilícitos, e tendo o tribunal já concluído pela inexistência de uma conduta ilícita por parte das arguidas EE e AA, claudicará igualmente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes civis contra aquelas, acarretando, em consequência, a absolvição das arguidas também nesta sede.
Resta apenas apurar a responsabilidade civil da demandada SCM tendo em conta a factualidade provada.
a) Dos pressupostos da responsabilidade civil:
Nos termos do artigo 1154.º do Código Civil (CC), o «contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição».
Mais refere o artigo 219.º do mesmo diploma que «A validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei a exigir».
No caso vertente, resultou provado que as partes celebraram um contrato de prestação de serviços.
Dispõe o artigo 798.º, n.º 1, do referido diploma, «O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.»
Sendo que, o artigo 800.º, n.º 1 do mesmo código estatui que «O devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor.».
Mais refere o artigo 799.º do CC que «Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.»
A propósito veja-se o teor no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-01-2007 (Proc. 9667/2006-7), in dgsi.pt, assim sumariado: «I- Tem a natureza de contrato de prestação de serviços (artigo 1154.ºdo Código Civil) aquele em que uma sociedade se obriga a prestar, mediante retribuição, assistência a pessoas idosas internadas num lar.
II- Os serviços a que a ré se obrigou dirigiam-se e beneficiavam, não a parte contratante, mas o progenitor desta, aquele que estava internado no lar destinado a pessoas idosas, traduzindo-se tais serviços naqueles que os filhos estão obrigados perante os pais e que são de natureza fungível (prestação de cuidados de alimentação, saúde e higiene: ver artigo 2003.º do Código Civil)) sendo, assim, deles credora a parte contratante, não o terceiro beneficiário.
III- Não tendo a referida sociedade cumprido as suas obrigações por forma a assegurar ao assistido autonomia, independência, manutenção das capacidades físicas e psíquicas, alimentação adequada, bem-estar, higiene, tratamento de roupas, o que se lhe impunha de acordo com o regime legal e contratual (ver Despacho Normativo n.º 12/98 in DR. 47/98, série I-B), houve incumprimento contratual.
IV- O incumprimento foi causa de agravamento da saúde do assistido tanto sob o ponto de vista físico como psíquico que se repercutiu na própria filha e tal incumprimento deve considerar-se culposo (artigos 798.º e 799.º do Código Civil).
V- No plano da responsabilidade importa atentar em que a obrigação de indemnizar comporta uma componente de responsabilidade contratual por incumprimento, a que se aludiu, mas também uma componente de indemnização por desrespeito de direitos de personalidade, de valores inerentes à pessoa humana (saúde, honra e dignidade) fundada na responsabilidade que à sociedade prestadora de serviços sempre se impunha perante a pessoa que ficou a seu cargo.
VI- Importa, portanto, no plano da responsabilidade por danos morais, ter em atenção não apenas o sofrimento da autora, mas igualmente o do seu progenitor, também autor, cada um fundado em diversa responsabilidade, a contratual no que respeita à autora, a extracontratual, quanto ao autor, por desrespeito dos seus direitos de personalidade.».
Ora, face à factualidade dada como provada nos presentes autos, facilmente se constata que se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, constituindo-se assim a demandada SCM na obrigação de indemnizar as demandantes.
Efetivamente, apurou-se que nos termos do acordo ajustado entre a falecida e os seus dois filhos e a SCM, datado de 16/03/2016, de que existe cópia a fls. 599 a 601, esta última obrigou-se a prestar a MN estadia, alimentação, assistência médica, de enfermagem, acompanhamento e vigilância.
Tal como na responsabilidade extracontratual ou delitual, na responsabilidade contratual são quatro os pressupostos: o facto ilícito (constituído pela omissão do zelo exigível), a culpa (que aqui se presume nos termos do artigo 799º, n.º 1 do CC), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Com efeito, apurou-se a existência de um facto ilícito que consistiu na imobilização da ofendida numa cama sem grades e na violação do dever de vigilância, por falta de pessoal suficiente ou infraestruturas adequadas, como um circuito de vídeo fechado, para monitorizar devidamente a ofendida.
Mais se apurou a culpa da demandada, na sua modalidade de negligência, e que consistiu na omissão dos deveres de cuidado, acompanhamento e vigilância a que estava contratualmente obrigada.
Bem como a produção de danos, designadamente, a perda da vida da vítima; o desgosto causado aos demandantes pela perda do seu familiar, e os sofrimentos causados à vítima antes de falecer.
Finalmente, verificou-se a existência de um nexo de causalidade entre o facto e os danos, mormente a circunstância da observância dos deveres de cuidado omitidos serem suscetíveis de levar à morte prematura da vítima, sendo assim a omissão desse dever a causa e condição adequada a produzir a morte da vítima. Essa mesma morte causou profundo desgosto aos demandantes.
Face ao exposto, dúvidas não subsistem de que face à factualidade provada, que evidencia que da atuação ilícita e culposa da demandada SCM, resultaram danos não patrimoniais para a vítima e os demandantes, assim se concluindo que a demandada civil deverá ser condenada no seu ressarcimento, nos termos do artigo 496.º do CC.
b) Ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e pelos seus familiares:
Em matéria de danos não patrimoniais impõe-se ao Tribunal encontrar «o quantum necessário para obter aquelas satisfações que constituem a reparação indireta» - vde. Galvão Telles, in Direito das Obrigações, Coimbra Editora, pg. 377.
Nesta sede, o dinheiro não tem a virtualidade de apagar o dano, mas este pode ser contrabalançado «mediante uma soma capaz de proporcionar prazeres ou satisfações à vítima, que de algum modo atenuem ou, em todo o caso, compensem esse dano», como refere Pinto Monteiro, in Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro 1992, n.º 1, 1º ano, APADAC, pg. 20.
Com efeito, quanto aos danos não patrimoniais, todos os sofrimentos apurados na factualidade provada constituem efetivamente danos de natureza não patrimonial que merecem a tutela do direito e justificam a atribuição de indemnização, nos termos do aludido artigo 496.º, n.º 1.
Note-se que o artigo 496.º, n.º 4, 2.ª Parte do CC estabelece expressamente que «no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.».
Sendo que o n.º 2 do citado artigo 496.º é claro quando refere que «Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem».
Efetivamente dispõe o artigo 70.º do CC, concretizando o disposto nos artigos 25.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa, aplicáveis ao presente caso, que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, havendo lugar a responsabilidade civil.
Como refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 11/07/2007 (Proc. 0711856), in dgsi.pt «O art. 496.º do CCivil consagra a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. E a doutrina e a jurisprudência, quase unanimemente, limitam a indemnização àqueles casos que tenham efetiva relevância ética e moral por ofenderem profundamente a personalidade física ou moral, designadamente as ofensas à honra, à reputação, à liberdade pessoal, às lesões corporais e de saúde, aos demais direitos de personalidade, etc (cfr Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v.1, p.572; Ac.STJ de 12-10-73, BMJ, 230.º, 107; Ac. STJ de 26-6-91, BMJ 408.º, 538; Vaz Serra, Reparação do dano não patrimonial, BMJ, 83.º, 69 sgs.), sendo ainda objeto de reparação aqueles danos morais naturais cuja reparação pecuniária se destina a compensar, embora indiretamente, os sofrimentos físicos, morais e desgostos e que, por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos (Vaz Serra, RLJ, ano 105.º e 108.º, p 37 sgs. e 223; Ac STJ de 27-12-69, BMJ, 141.º, 331; Ac STJ de 22-11-78, BMJ, 204.º, 262).
A gravidade do dano mede-se por um padrão objetivo, embora atendendo às particularidades de cada caso, e tudo segundo critérios de equidade (cfr A. Varela, ob. cit., pag 576; Vaz Serra, RLJ, ano 109.º, p. 115), devendo ter-se ainda em conta a comparação com situações análogas decididas em outras decisões judiciais (Acs do STJ de 2-11-76, de 23-10-79, de 22-1-80, de 13-5-86, in BMJ 261.º-236, 290.º-390, 239.º-237, 357.º-399; Ac STJ, de 25-6-2002, CJ/STJ, ano X, t. II, p. 128) e que a indemnização a arbitrar tem uma natureza mista: a de compensar esses danos e a de reprovar ou castigar, no plano civilística, a conduta do agente (cfr A. Varela, ob. cit., p. 529 e 534; Ac STJ de 26-6-91, BMJ, 408.º, 538).»
Outrossim, o Acórdão da Relação de Coimbra de 15/09/2009 (Proc. 170/2001.C2), in dgsi.pt decidiu o seguinte: «A indemnização pelos danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas sim compensar o lesado, tendo também uma função sancionatória sobre o lesante (natureza mista).
A gravidade do dano terá de ser aferida em termos objetivos, tendo em consideração as circunstâncias do caso, mas, desde já, se refira que não bastam simples incómodos ou contrariedades para justificar o pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais.
Com relevo para a fixação do quantum indemnizatório, que é operado segundo critérios de equidade, haverá que ponderar, designadamente, o grau de culpabilidade do responsável, a situação económica do lesado e do demandado, os padrões de indemnização geralmente adotados pela jurisprudência e as flutuações do valor da moeda – cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, Vol. I, 9.ª Ed., Almedina, 1996, 629.
No que concerne especificamente aos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima em consequência da sua morte deve atender-se ainda ao grau de parentesco (mais próximo ou mais remoto), à maior ou menor intensidade do relacionamento entre a vítima e os titulares do direito à indemnização, já que esta visa compensar os familiares a quem a vítima faltou pela tristeza, angústia, falta de apoio, carinho e companhia.
A propósito saliente-se o decidido pelo Acórdão da Relação de Évora de 10-04-2012 (Proc. 133/08.5GCCUB.E1), in dgsi.pt: «1. Os valores constantes da Portaria nº 377/2008, que cuida da apresentação de propostas de indemnização pelas seguradoras, não são de aplicação judicial obrigatória. Não devem, no entanto, os tribunais menosprezar as virtualidades de um diploma que se pretende uniformizador, o que apenas se prossegue se judicialmente se lhe atender como quadro de critérios ou valores de referência.
2. Na fixação do dano morte deve atender-se, também, à idade da vítima.
3. Na fixação dos danos não patrimoniais sofridos pela viúva e pelas duas filhas do falecido, justifica-se diferenciar a mãe, das filhas, e, entre estas, distinguir a situação da filha não residente, da da filha que sempre residiu com a vítima.»
Há ainda que ter em consideração como parâmetro orientador e coadjutor na fixação da indemnização a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, atualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, a qual indica valores médios de indemnização pelas compensações devidas a título de danos morais aos herdeiros e de dano moral da própria vítima (cfr. artigos 2.º, alínea a), 5.º e Anexo II da referida Portaria).
Assim, no que concerne ao cônjuge com 25 ou mais anos de casamento, o Quadro A da Tabela II atualizada prevê a fixação do valor da indemnização até 25.650,00 €; ao passo que para um filho com idade menor ou igual a 25 anos prevê-se o valor de 15.390,00€, e para um filho com idade superior a 25 anos fixa-se o valor de 10.260,00€.
No que concerne ao dano moral da própria vítima, o quadro D da Tabela II prevê que 72 horas é considerado clinicamente o período crítico de sobrevivência, fixando o valor de 2.052,00€ nas primeiras 24 horas, até 72 horas o valor de 4.104,00€, e o montante de 7.182,00€ em mais do que 72 horas, podendo qualquer dos valores ser alvo de majoração até 50% em função do nível de sofrimento e antevisão da morte.
Contudo, estes valores constituem uma referência ao julgador e não se tratam de parâmetros rígidos, pois naturalmente que valor apontado tem de variar não só em função da idade concreta, dado que, a título meramente exemplificativo, 25 anos é uma idade, 40 é outra e 70 outra é; como fundamentalmente tem de depender das restantes circunstâncias como o grau de proximidade e afetividade.
A propósito veja-se o decidido no Acórdão do STJ de 28-11-2013 (Proc. 177/11.0TBPCR.S1), in dgsi.pt:
«1. Os Tribunais, na fixação equitativa dos montantes indemnizatórios a atribuir aos lesados, em sede de acidentes de viação, não estão vinculados á aplicação das tabelas constantes da Portaria nº 377/08, de 26 de Maio, alterada pela Portaria nº 679/09, de 25 de Junho. Reportando-se estas, apenas, a um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação extrajudicial de propostas razoáveis destinadas a indemnizar o dano corporal.
2. Não se deve confundir a equidade com a mera arbitrariedade ou com a entrega da solução a critérios assentes no puro subjetivismo do julgador, devendo aquela traduzir a “justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, devendo o julgador “ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”.
3. O dano sofrido pela vítima antes de morrer varia em função de fatores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima se manteve consciente ou inconsciente, se teve ou não dores, qual a intensidade das mesmas, a existirem, se teve consciência de que ia morrer.
4. Para se responder actualizadamente ao comando vertido no art. 496.º do CC (danos não patrimoniais) há que constituir uma efetiva possibilidade compensatória para os danos suportados, devendo a mesma ser significativa e não miserabilista.
5. É adequada a compensar os danos não patrimoniais suportados pela vítima antes de morrer a quantia de € 20 000,00, tendo em conta o atropelamento que sofreu, com culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel ligeiro, com graves lesões corporais (que determinaram, como causa necessária, a sua morte), tendo a mesma, por efeito do embate, ficado prostrada e abandonada (o veículo prosseguiu a sua marcha) na berma da estrada, encoberta por fetos e vegetação, em estado consciente (gemia com dores e rezava). Assim tendo permanecido durante cerca de meia hora, tendo-lhe sido prestados os primeiros socorros no local, durante cerca de 45 minutos até que foi transportada para o Hospital onde entrou com paragem cardiorrespiratória, sem responder a manobras de recuperação.
6. A morte repentina de algum dos nossos entes mais próximos e, por regra, queridos, causa, em princípio, não obstante a idade avançada dos mesmos, mais sofrimento e pesar, de que o decesso anunciado por via de doença grave e sem cura à vista.
Entende-se como justo e equitativo a atribuição da indemnização pelo desgosto da morte da mãe, mulher ainda ativa, na trágica e repentina situação em que a mesma ocorreu e sucintamente descrita em 5., para mais com o abandono ocorrido e com as maiores angústias dele decorrentes, de € 20 000,00 para a filha, solteira, com 58 anos, que com a vítima convivia e de € 15 000,00 para a outra filha, que vivia distante. Ambas tendo sofrido com o nefasto evento.».
No caso em apreço logrou provar-se que a falecida e os demandantes filhos mantinham uma relação efetiva forte, e que a morte da sua mãe, nas circunstâncias em que ocorreu, causou profundo choque emocional e desgosto aos demandantes
Não é um facto da vida que possa ser esperado pelos filhos assistirem ao desaparecimento prematuro e repentino da sua mãe, pelo que, a lesão traumática resultante de tal evento – nas hipóteses em que, como a presente, o relacionamento entre aqueles se pauta por uma grande correspondência de afeto e carinho – reveste grau elevadíssimo e duradouro.
Na verdade, não existe, nem poderá existir, dúvida de que os demandantes sofreram e sofrem com a perda do seu familiar direto, sendo por todos sabido da dor decorrente da perda deste ente querido. São laços profundos que são quebrados com a morte, laços que não mais se poderão reconstruir e que causarão nos demandantes uma profunda e irreversível tristeza, que atenta a morte inesperada e imprevisível se tornam ainda mais penosos e cruéis.
Ora este desgosto e sofrimento constituíram e constituem, sem dúvida, violação do direito à integridade psíquica ou moral que lhes assistia, representando por isso danos não patrimoniais suficientemente graves para merecerem a tutela do direito.
Por último, refira-se que são igualmente dignos de tutela os sofrimentos que a vítima experienciou nos últimos instantes da sua vida, especialmente se considerarmos que asfixiou lentamente até sufocar durante cerca de 30 minutos, embora exista uma probabilidade de a mesma ter falecido enquanto se encontrava a dormir, o que minoraria de sobremaneira o seu sofrimento.
«Entre os danos não-patrimoniais a indemnizar há que distinguir entre os sofridos pela vítima antes da morte, os sofridos especialmente pelos familiares e o dano especificamente constituído pela perda do direito da vida da vítima.» - cfr. Acórdão do STJ de 14-05-1998 (Proc. 98A990), in dgsi.pt.
Ainda, a considerar nos termos do artigo 494.º, ex vi artigo 496.º, n.º 4 do CC, o grau de culpabilidade da demandada (negligência), e a situação económica da demandada muito superior à dos demandantes.
Nesses termos, afigurando-se os danos morais em apreço como merecedores da tutela do direito, o Tribunal, obedecendo a um juízo de equidade, tomando como referência os valores médios praticados pela jurisprudência e a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, atualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, conclui, como adequado e proporcional fixar, já de acordo com o valor monetário atual, nos termos dos artigos 564.º, n.º 1 e 566.º, ambos do Código Civil, os seguintes valores:
- O montante indemnizatório de 12.500,00 € devido a cada um dos demandantes pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte da sua mãe;
- O montante indemnizatório de 10.000,00 € devido aos demandantes em partes iguais (5.000,00 € a cada demandante), na qualidade de herdeiros legais da vítima (cfr. artigos
c) O Dano Morte:
Por último, cumpre proceder à análise de fixação do quantum indemnizatório devido pela perda do bem mais precioso de todos, a vida.
De facto, sendo o dano morte o último e decisivo dos danos não patrimoniais seria, por uma questão de princípio, um contrassenso negar a sua reparação patrimonial. Todos os princípios aplicáveis aos danos não patrimoniais são automaticamente aplicáveis ao dano morte. Não sofre destarte qualquer dúvida que o direito à vida, nos termos do artigo 496.º do CC, constitui um dano autónomo, suscetível de reparação pecuniária.
Com efeito, tendo como suporte constitucional o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e como suporte legal, os artigos 68.º, 70.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 do Código Civil, poder-se-á afirmar que o direito à vida é um direito pessoal, inerente à personalidade e de aquisição automática sendo, a sua perda, indemnizável.
Já não se apresenta uniforme o entendimento respeitante à consideração se o direito à reparação deste dano nasce, por direito próprio, na esfera jurídica das pessoas referidas nos n.º 2 e 3 e pela ordem aí estabelecida ou se nasce no património da vítima e se transmite, por via sucessória, para essas mesmas pessoas.
No entanto, embora in casu a questão não se suscite, este Tribunal segue o entendimento de que o direito à reparação do dano morte nasce, jure próprio, na esfera jurídica das pessoas elencadas nos n.º 2 e 3 do artigo 496.º do CC.
Neste âmbito, e desde logo, salientam-se as considerações de Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, Vol. I, 10.ª Ed., Almedina, 2000, pgs. 611/612 que, contrapondo-se à tese defendida por Galvão Telles, aponta a seu favor o argumento histórico da norma legal do artigo 496.º em virtude de se ter substituído no decurso dos trabalhos preparatórios do Código a expressão “transmite-se aos herdeiros” por “cabe”.
Ao argumento histórico junta-se quer o argumento literal, dado que a lei não distingue os danos não patrimoniais causados à vítima dos sofridos pelos familiares, querendo abranger quer uns quer outros; quer o argumento sistemático pois o preceito encontra-se inserido no domínio da responsabilidade civil, e não no capítulo do Direito sucessório, o que não sucederia se estivéssemos perante uma transmissão mortis causa.
Além de que, há que atender ao facto de que, aquando da feitura do n.º 2 do artigo 496.º em 1966, o cônjuge não era herdeiro legitimário, tendo na altura um papel muito remoto na sucessão legítima, e integrou logo então, o primeiro grupo de pessoas com direito à indemnização. Ainda, não releva para a legitimidade dos familiares identificados neste preceito legal, o facto de terem ou não repudiado a herança ou sejam indignos sucessoriamente, por facto não relacionado com a morte da vítima, pois, a lei quis-lhes atribuir esse direito por título próprio, que não hereditário. Parece, portanto, claro que, a intenção do legislador reside na aquisição originária e não numa transmissão sucessória, reforçada pelo facto de o direito à indemnização pela perda da vida não responder pelos encargos da herança.
Aliás, a alteração ao artigo 496.º operada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto vem, no nosso entender, fazer cair por terra a tese de transmissão mortis causa ao prever no novo n.º 3 que «Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes». Efetivamente, pese embora a proteção legal crescente oferecida pelo legislador à união de facto, o unido de facto não integra ainda qualquer classe de sucessíveis legais, mas ainda assim é titular do direito à indemnização pelo dano morte por direito próprio, o que só se concebe à luz da tese que propugnamos.
Logo, conclui-se que, tanto a letra como o espírito da lei apontam no sentido compreensivo de que nenhum direito de indemnização pelo dano morte se atribui via sucessória, aos herdeiros da vítima, sendo que, toda essa indemnização é atribuída aos familiares ex novo por direito próprio, nos termos e segundo a ordem dos n.º 2 e 3 do artigo 496.º, que tiveram uma relação privilegiada com a vítima, não existindo dois direitos de indemnização por dois títulos diferentes, mas apenas um, tendo em conta o carácter unitário do direito à indemnização de todos os danos não patrimoniais em causa. E não choca que, se possa exigir a reparação de um dano relativo a um bem pertencente a outra pessoa. Aliás, a atribuição de um direito próprio já vem na linha do artigo 71.º, n.º 2 do CC.
A favor da aquisição jure próprio do direito de indemnização das pessoas elencadas no n.º 2 do artigo 496º, posiciona-se também Ribeiro de Faria, in Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 1990, pgs. 493 e 494 por razões de ordem legal e da própria história da disposição. No mesmo sentido, Vaz Serra, Fundamento da responsabilidade civil e em especial, responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções lícitas, in BMJ, 90, 203/204, já considerava válida a hipótese de não se tratar de transmissão, mas de um direito próprio dessas pessoas. Outrossim, Pereira Coelho, in Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, pgs. 174 e sgs., e Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, 4.ª Ed. renovada, Coimbra Editora, 2000, pgs. 322 e sgs
Nesta linha de pensamento, temos igualmente Maya de Lucena, in Danos não patrimoniais: o dano da morte - interpretação do artigo 496º do Código Civil, Almedina, 1985, pgs. 48, 49 e 68 que, criticando severamente a orientação seguida por Galvão Telles vem dizer que, o momento da morte é logicamente o primeiro momento após a vida, pois, só surge quando esta já se extinguiu. Num plano lógico, o direito à indemnização só aparece num instante imediatamente posterior ao da morte, e portanto, quanto ao presumido de cujus, quando já não existe um titular para tal direito, isto é, quando já não há um suporte jurídico para ele.
Como refere Gomes da Silva, in Direito das Sucessões, Lisboa, 1978, pg. 76: «A morte é morte, a vida é vida, e por isso, o momento da morte já não pode estar na vida: o momento da morte é o primeiro, depois do último momento da vida.». E como reforça Leite Campos, A indemnização do dano da morte, in “Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra”, Vol. L, Coimbra, 1974, pg. 290, nesta matéria: «Ou é ou não é morte,(...) se ainda existia vida não é ainda morte, se não existe, já não é vida. Não é possível conciliar estas duas afirmações, não se pode ser e não ser.».
E como o dano é um pressuposto fundamental da responsabilidade civil, já não se verificando na esfera da vítima, nunca poderia integrar o seu património e ser transmissível aos herdeiros. É esta também a orientação de Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2.º Vol., reimpressão, A.A.F.D.L., Lisboa, 1999.
Entre nós, a Jurisprudência também se divide inevitavelmente neste âmbito, sendo significativos neste sede, os Acórdãos do Supremo de 9/05/1996, 18/03/1997, 15/04/1997 e 10/02/1998 e da Relação de Coimbra de 14/11/1995.
A título meramente exemplificativo veja-se o Acórdão do STJ de 27-11-2008 (Proc. 08P1413), in dgsi.pt:
«III - Por conseguinte, cessando a personalidade jurídica, cessa a capacidade para ser sujeito de relações jurídicas. Nenhum direito pode radicar-se numa personalidade extinta, nem no património de uma pessoa que deixou de existir. A morte impede a possibilidade de aquisição de direitos, de sorte que não podem ancorar-se no património da pessoa falecida direitos que supostamente nasceriam com o próprio evento da morte. Se a morte pode dar lugar ao surgimento de direitos, esses direitos não nascem nem se radicam na esfera jurídica do finado, mas na esfera jurídica de outras pessoas, que, estando ligadas ao falecido por um vínculo especial de parentesco, gozam de proteção legal, no sentido de que a lei prevê que a morte desse seu entre querido possa constituir para elas uma causa adequada de danos, sejam patrimoniais, sejam não patrimoniais. É o caso dos arts. 495.º, n.º 3, e 496.º do CC, que constituem exceção ao princípio-regra de que a indemnização cabe ao próprio titular do direito violado ou do interesse lesado com a infração da disposição legal destinada a protegê-lo.
IV - Se a morte é um dano que não se verifica já na esfera jurídica do seu titular, muito menos se hão-de produzir nessa esfera danos que, pressupostamente, se teriam verificado em consequência do evento “morte”. E, muito menos, danos que são pura e simplesmente ficcionados, imaginando que a vítima viveria um certo número de anos, em conformidade com a esperança média de vida e que, se vivesse, as coisas lhe haveriam de correr de determinada maneira, do ponto de vista profissional e patrimonial. Isto é ficção, por muito modesto e mediano que se desenhe o horizonte dos possíveis que se desdobrariam ao finado, se, por hipótese, ele fosse vivo. Para além do absurdo de se conceber que radicam na esfera jurídica do finado os danos que advieram em consequência da sua própria morte.»
Do mesmo modo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 30-05-2013 (Proc. 364-F/2000.G1), in dgsi.pt decidiu que «I - O direito à indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da morte, tal como sucede com a indemnização pelo dano morte, surge na titularidade das pessoas mencionadas no n.º 2 do art. 496.º do Código Civil por direito próprio. II - Assim, não sendo transmissível aquele direito, não é o mesmo suscetível de ser penhorado.».
Outrossim, o Acórdão da Relação de Coimbra de 28-05-2008 (Proc. 321/05.6PAPBL.C1), in dgsi.pt: «No caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio (iure próprio), nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2 do artº 496º do Código Civil».
No que respeita ao quantum indemnizatório, a vida é um valor absoluto, independente da idade, condição sociocultural, ou estado de saúde, pelo que irrelevam na fixação desta indemnização quaisquer outros elementos da vítima, que não a vida em si mesma. Importam, tão-somente os outros critérios do artigo 494º, aplicável ex vi do n.º 4 do artigo 496.º do CC.
Daí que, quanto aos critérios de fixação do quantum indemnizatório pela perda do direito à vida não seja de acolher, como se refere no Acórdão do STJ de 8-6-2006 (Proc. 06A1464), in dgsi.pt «a tese que privilegia a vida que desempenha um "papel excecional" na sociedade ("um cientista, um escritor, um artista") em relação a uma vida "normal" ou a uma vida "sem qualquer função especifica na sociedade (uma criança, um doente ou um inválido)" acenada pelo Cons. Dário Martins de Almeida, in "Manual de Acidentes de Viação", 188».
Quando muito «aqueles fatores poderão ser ponderados nos cômputos indemnizatórios dos danos morais próprios dos herdeiros da vítima ou do dano patrimonial mediato por eles sofrido em consequência da perda. Em acerto de tese pode também ser feita uma ponderação de fatores culturais, de personalidade ou etários na fixação da indemnização pelo sofrimento da vítima (dano não patrimonial próprio) nos momentos que precederam a morte, na perceção da aproximação desta, no estoicismo ou capacidade de resignação perante as dores físicas e morais» (ibidem).
Na esteira de Leite de Campos, A Vida, a Morte e sua Indemnização, in Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, Ano 4, n.º 7, Julho, 1985, pgs. 80 a 96, entendemos que a indemnização pelo dano da morte deverá ser aferida pelo valor da vida para a vítima enquanto tal, não pelo custo da vida humana para a sociedade e para os que dependem da vítima; o prejuízo é igual para todos os homens e, consequentemente, a indemnização deve ser a mesma para todos. A indemnização deve ser medida por dois parâmetros: pela consideração de que a morte é o prejuízo supremo, envolvendo o desaparecimento da pessoa; e pela finalidade desta reparação de não deixar o agressor numa situação patrimonial melhor do que a que teria se não fosse a morte da vítima.
Daí que essa indemnização – havendo, obviamente, que respeitar “o grau de culpabilidade do agente” e “a situação económica deste e do lesado” (cfr. artigos 496.º, n.º 4 e 494.º do CC) – tenha, sobretudo, que atender, no seu simbolismo, ao “valor social” e à “representatividade comunitária” da vítima, dentro de parâmetros que considerem os seus feitos em prol da comunidade, incluindo naturalmente o núcleo familiar de enquadramento, e as esperanças que seriam ainda de alimentar quanto ao seu futuro contributo para o bem estar dos seus concidadãos e, na sua representação simbólica, à dinâmica da própria “praxis” jurisprudencial.
Diríamos, assim, que à falta de outro critério legal, na determinação do respetivo montante compensatório importa ter em linha de conta, além da vida em si, a vontade e alegria de viver da vítima, a sua idade, e a sua saúde. São estes elementos que nos permitem aferir a quantidade e a qualidade da vida que ficou por viver.
Mais uma vez, há que ter em consideração como parâmetro orientador e coadjutor na fixação da indemnização a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, atualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, a qual indica valores médios de indemnização pelas compensações devidas do direito à vida (artigos 2.º, alínea a), 5.º e Anexo II da referida Portaria).
Assim, caberá aos herdeiros em partes iguais o valor de 61.560,00€ se a vítima tivesse à data da morte até 25 anos, o valor de 51.300,00€ se tivesse entre 25 e 49 anos, o valor de 41.040,00€ se tivesse entre 50 e 75 anos, e o valor de 30.780,00€ se tivesse mais de 75 anos.
Como se faz notar no douto Acórdão do STJ de 05/05/2005 (Proc. 03B2182), in dgsi.pt., «Prevalece, todavia, hoje neste plano um entendimento diferente, sensível à circunstância de que tais indemnizações têm ficado aquém dos valores que seriam exigíveis. E a jurisprudência mais recente é efetivamente no sentido do seu incremento.
Com razão anota o acórdão uniformizador n.º 4/2002, citado na sentença, que a jurisprudência do Supremo tem evoluído no sentido de que a compensação dos danos morais não pode ser «miserabilista», antes, «para responder actualizadamente ao comando do artigo 496.º e constituir uma efetiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar».
A destruição do bem vida envolve a destruição de todos os outros bens de personalidade: o ser humano não fruirá mais dos prazeres dos sentidos, da razão, do movimento, dos sentimentos. A morte é um dano único que absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais. O montante da sua indemnização deve ser, pois, superior à soma dos montantes de todos os outros danos imagináveis. Nesse sentido, cabe à jurisprudência um papel importante da determinação do montante indemnizatório pela supressão da vida humana. E a jurisprudência mais recente tem vindo a apontar valores que consideramos adequados atendendo às circunstâncias da vida nas sociedades modernas e consumistas dos nossos dias, não podendo a vida humana valer menos que certos bens como por exemplo um automóvel.
Hoje em dia, a jurisprudência toma mais como referência um valor médio a rondar os 50.000,00 €. Fazendo variar tal valor em função dos supra apontados critérios (grau de culpabilidade do agente, da situação económica deste e do lesado) bem como em função da idade da vítima e da sua consequente esperança de vida.
A propósito, o Acórdão do STJ de 28-11-2013 (Proc. 177/11.0TBPCR.S1), in dgsi.pt decidiu igualmente que «É adequada a quantia arbitrada de € 50 000,00 para indemnização da perda do direito à vida».
Assim, na esteira do entendimento jurisprudencial quanto ao incremento dos quantitativos da indemnização por dano morte, há que atender ao valor social da vida (que na realidade tem um valor incalculável e inatingível através de qualquer quantia monetária) e levar em conta as circunstâncias do caso, nomeadamente a idade da vítima e a sua inserção familiar.
No caso em apreço, logrou provar-se com relevância para esta questão, que a vítima mortal à data da morte tinha 75 anos de idade, padecendo de Alzheimer, e os filhos, nutriam bastante carinho por ela.
De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), in https://www.ine.pt, «A esperança de vida à nascença foi estimada em 80,80 anos, sendo 77,78 anos para os homens e 83,43 anos para as mulheres no período 2016-2018».
Porém, é consabido que a esperança de vida de uma pessoa idosa diminui de sobremaneira a partir do momento em que deixa de viver em sua casa e passa a viver num lar.
Cumpre também considerar nos termos do artigo 494.º ex vi artigo 496.º, n.º 4 do CC, o grau de culpabilidade da demandada (negligência), e a situação económica da demandada muito superior à dos demandantes.
Neste âmbito cumpre ter presente a jurisprudência constante do Acórdão do STJ de 14-12-2016 (Proc. 619/04.0TCSNT.L1.S1), in dgsi.pt, com referência à morte de um homem de 70 anos: «X - Tendo ficado provado que o pai das autoras: (i) estava internado no lar de idosos desde 04-04-1998; (ii) era doente e tinha sofrido uma trombose; (iii) estava acamado e morreu por asfixia em consequência do incêndio que ali deflagrou em 15-05-1999; e que (iv) era um ponto de referência para a família, sendo, à data da morte, uma pessoa feliz e alegre (apesar destas características terem diminuído no lar), é de considerar que a indemnização pelo dano morte, devida pelo ISSS e fixada em € 25 000 no acórdão recorrido, se encontra aquém dos limites dentro dos quais se deve situar um juízo equitativo que salvaguarde os princípios da proporcionalidade e da igualdade, devendo, consequentemente, a mesma elevar-se para € 60 000.».
Pelo exposto, atendendo aos elementos supra enunciados, configura este Tribunal justo e adequado fixar de acordo com os juízos de equidade, tomando como referência os valores médios praticados pela jurisprudência e a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, atualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, o montante indemnizatório de 60.000,00 € devido pela demandada aos demandantes, em partes iguais, por direito próprio (cabendo a quantia de 30.000,00€ a cada demandante), pela perda do direito à vida da sua mãe.
Nos termos dos artigos 805.º, n.º 3, e 559.º, n.º 1, ambos do CC, incidem juros vincendos de mora à taxa legal de 4%, nos termos da Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril, contados desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento, conforme jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2002, de 9/05/2002, publicado no DR I-A, de 27/06/2002, na medida em que as indemnizações atribuídas foram objeto de cálculo atualizado (à luz do n.º 2 do citado artigo 566.º), na presente decisão.
Termos em que, deverá o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelos demandantes civis AC e JC, ser julgado parcialmente procedente por provado e em consequência, serem absolvidas as demandadas civis EE e AA do pedido, e condenada a demandada civil SCM a pagar aos demandantes, em partes iguais, o valor global de 95.000,00€ (noventa e cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo seu incumprimento contratual, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efetivo e integral pagamento, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, absolvendo-a da parte remanescente do pedido.
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar respeitam (a) à impugnação da matéria de facto por via da invocação (a.1) do erro notório na apreciação da prova e (a.2) da contradição insanável, socorrendo-se ainda, pontualmente, a demandada do recurso a provas gravada e (b) à impugnação em matéria de direito no respeitante (b.a.) à obrigação de indemnizar e (b.2) ao montante indemnizatório.
(a) Da impugnação da matéria de facto
A recorrente impugnou a factualidade dada como provada na sentença por via da invocação de dois vícios de texto: o erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável entre os factos provados e entre estes e a fundamentação.
Socorreu-se ainda da prova gravada e da prova documental e perícia, utilizando simultaneamente a via ampla de impugnação prevista no art. 412º, n.º 3, do CPP.
Através da invocação dos dois vícios da sentença e do acesso à prova gravada e a documentos do processo, pretende a demandada recorrente a alteração da matéria de facto, no sentido de se considerarem não provados muitos dos factos provados.
Assim, distinguem-se duas situações que se abordarão separadamente, e que se problematizaram, (a.1.) a primeira, no âmbito do erro notório na apreciação da prova e da via ampla de impugnação; (a.2.) a segunda, no âmbito da contradição insanável, também com algum acesso à prova gravada e à examinada em audiência.
(a.1.) Do erro notório na apreciação da prova
A recorrente impugnou o facto provado em 78., recorrendo também à prova gravada. Apresar do recurso à via ampla de impugnação, adianta-se que, neste ponto, a recorrente tem razão. E para detetar o erro de julgamento seria logo bastante a análise do texto da sentença. No entanto, tendo sido especificada prova oral, da análise desta resulta apenas a corroboração de um erro que já se tornava evidente.
Como se sabe, o recorrente dispõe de duas vias processuais de reação à “sentença de facto” – a invocação de um vício de decisão, quando o erro resulta logo do próprio texto da sentença, estando nela patente e sendo logo visível (art. 410º, nº 2 do CPP), ou a impugnação ampla da matéria de facto, caso a demonstração exija o confronto com (e a análise das) provas examinadas em audiência (art. 412º, nº 3, do CPP). A recorrente fez uso das duas disposições legais do seguinte modo:
Alega que o facto 78. não está provado nem por documento nem por prova testemunhal, está em contradição com o depoimento do Perito (que especifica), pelo que não poderá ser considerado provado nem invocado para efeitos de condenação da demandada. Diz também que do próprio exame crítico da prova resultaria isso mesmo. E, como se adiantou já, assiste-lhe razão.
O facto impugnado é o seguinte: “78. Durante o lapso temporal em que a faixa se enrolou no seu pescoço a até à morte, MN sofreu momentos de aflição, dor e sofrimento.”
Refere a recorrente que “o Perito Dr. LC, médico que autopsiou a ofendida, gravação entre as 16 horas e 09 minutos e com termo pelas 16 horas e 34 minutos, referiu no seu depoimento entre os minutos 20:44 a 24:31 que a morte da Dª MN pode ter ocorrido durante o sono, sem ter acordado, porque sofreu uma lenta compressão e à medida que foi ficando sem oxigénio, começou a baixar o limiar de consciência e morre e por isso pode não ter tido consciência do que se estava a passar. Além de que a medicação que estava a tomar faz baixar mais o limiar da consciência e por isso muito provavelmente não deverá ter tido consciência do que se estava a passar.”
Se olharmos a motivação da matéria de facto da sentença, pode ali ler-se efetivamente que “no caso em concreto, atenta a medicação que a ofendida tomava e que induzia o sono, o quadro demencial, a sua idade avançada, a fraca musculatura e a debilidade física, resulta provável que a ofendida estivesse a dormir enquanto estava lentamente a asfixiar, tal como acontece nos casos de apneia grave, o que explica que a mesma não tenha feito nenhum barulho audível, nem chamado a ajudante.”
E nenhuma outra explicação se descortina na sentença para justificação da demonstração do facto 78. Ou seja, a sentença não só não permite compreender como se logrou chegar à sua demonstração, como, na objetivação da convicção se refere uma análise de prova que deveria ter conduzido ao resultado probatório contrário.
Em suma, inexiste prova bastante para que se possa afirmar factualmente que “Durante o lapso temporal em que a faixa se enrolou no seu pescoço e até à morte, MN sofreu momentos de aflição, dor e sofrimento”, pelo que este enunciado fáctico passará a integrar os factos não provados da sentença, assim se corrigindo o erro de facto detetado.
(a.2.) Da contradição insanável entre os factos provados
A recorrente impugna ainda extensamente muitos outros factos provados, mormente por via da invocação do vício da contradição insanável, mas também alude a alguns depoimentos e documentos, alguns dos quais juntos em fase de recurso.
Duas notas iniciais se justificam:
Independentemente da (in)tempestividade desta junção, os documentos que juntou não se revelam em concreto decisivos para a decisão do recurso. Referentes a boas práticas no exercício da enfermagem, à assistência e imobilização de idosos acamados, respeitam a procedimentos gerais de imobilização, cumprindo sempre (designadamente aqui, na decisão do caso) aferir, sim, quais as exigências de procedimento que em concreto, e relativamente a esta concreta pessoa se impunham.
Por outro lado, e uma vez retirado da matéria de facto provada o enunciado 78., da leitura de toda a “sentença de facto” (composta pelos factos provados, não provados e sua justificação) resulta claro qual o episódio de vida em apreciação. E essa clareza persiste mesmo no confronto da impugnação do recurso. Ou seja, a sentença de facto justifica adequadamente todos os factos provados e estes descrevem um episódio unitariamente lógico e coerente e de acordo com as provas. Esta a perceção que resulta clara da sentença, no sentido de o tribunal ter sabido apreender e percecionar devidamente o episódio de vida em apreciação.
Adianta-se, por último, que não se detetam contradições relevantes e juridicamente consequentes, consignando-se que, na ausência destas, não se justificariam nunca pontuais melhorias de redação ou acertos de redação de factualidade, já que os recursos são remédios jurídicos que visam reparar erros de julgamento e não meios de mero aprimoramento de decisões.
Mas concretizando, a recorrente invoca as seguintes contradições entre os factos:
“a. O facto provado 8 está em contradição com os factos provados 11., 12., e 13., e com os depoimentos das testemunhas AM, Dr. MS e VB, deverá passar a ter a seguinte redação: - “ A imobilização foi feita numa cama sem grades “.
b. Os factos provados 30. e 73. estão em contradição com os factos provados 26., 59., 58., 57., 98., 99., 100., 101., 102., 103., 104. e 110. não devendo ser considerados provados para efeitos de condenação da demandada
c. O facto provado 61 deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação: - “A prática de contenção que foi utilizada no caso da utente MN é correntemente utilizada em outras instituições de acolhimento de idosos e também no meio hospitalar”.
d. O facto provado 66 deverá ser corrigido passando a ter a seguinte redação: - “Nos termos do acordo ajustado entre a falecida e os seus dois filhos e a SCM, datado de 16.03.2016, de que existe cópia a fls.599 a 601, esta última obrigou-se a prestar a MN – Alojamento, Alimentação adequada às necessidades dos Utentes, respeitando as prescrições médicas, Apoio nos cuidados de higiene pessoal, Apoio no desempenho das atividades de vida diária, Tratamento de roupa, Apoio no cumprimento de planos individuais de medicação e no planeamento e acompanhamento regular de consultas médicas e outros cuidados de saúde”.
e. Os factos provados 68. e 69. estão em contradição com o facto provado 88, pelo que não poderão ser considerados provados e invocados para efeitos de condenação da demandada
f. O facto provado 71 está em contradição com o facto 87 pelo que não poderá ser considerado provado e invocado para efeitos de condenação da demandada
g. Os factos provados 74., 75., e 76 estão em contradição com os factos provados 11., 12., 13., 20., 26., 38., 39., 42., 43., 53., 56., 57., 58., 59., 60., 62., 63., 91., 96., 97., 98., 99., 100., 101., 102., 103., 104., 105. e 110. pelo que não poderão ser considerados provados nem serem invocados para efeitos de condenação da demandada”.
Da leitura de todos os apontados enunciados resulta claro que, independentemente de alguns deles poderem ser sujeitos a pontuais melhorias de redação na sua concordância, inexistem verdadeiras contradições, juridicamente consequentes. Pois o vício da contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e decisão ocorre apenas quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados, sendo uma incompatibilidade inultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a matéria de facto e a decisão, existindo como que uma colisão. Essa colisão não ocorre factualmente, em nenhum momento, aqui.
Como os demandantes acertadamente contrapuseram, na resposta às imputadas contradições, “I. Em nada são contraditórios os factos constantes dos pontos 8, 11, 12 e 13, uma vez que, não se põe em causa o teor das declarações prestadas pelas enfermeiras AM e VB, mas sim o facto das instruções por elas dadas e consequentemente, a forma como foi feita a imobilização, ser tecnicamente incorreta, uma vez que, como explicou o Sr. Perito médico, as imobilizações podem ser realizadas com recurso a um lençol, como sucedeu in casu, mas sempre numa cama de grades e nunca numa “cama normal”.
II. A imobilização numa cama normal, não impede uma pessoa de cair.
III. No que respeito aos pontos 30 e 73, se pode ser verdade que à funcionária não era exigível servir as ceias e vigiar os quartos em simultâneo, à Recorrente era exigível ter um sistema de vigilância eficaz e permanente, uma vez que as imobilizações que eram realizadas diariamente não eram seguras e possibilitavam quedas.
IV. Com efeito, uma funcionária naquele piso é manifestamente insuficiente como se veio a provar, uma vez que a qualquer momento um utente pode cair ou precisar de auxílio por qualquer razão.
V. No que respeita ao ponto 61, nunca a douta sentença diz que a Recorrente é um hospital, o que refere é que, como já se disse acima, as imobilizações, a serem necessárias, devem ser realizadas de forma segura, tal como se faz nos hospitais, em camas de grades.
VI. Relativamente ao ponto 66, a assistência médica corresponde à prestação de cuidados de saúde e acompanhamento, conforme consta claramente do Regulamento Interno.
VII. No que concerne aos pontos 68 e 69, não são contraditórios, uma vez que quando MN entrou para a Instituição andava pelo seu próprio pé, falava, conhecia todas as pessoas com quem lidava e comia sozinha, de modo que, não evidenciava ainda muitos sintomas de Alzheimer, pese embora já tivesse alguns, nomeadamente a necessidade de usar fralda, alguma confusão espácio-temporal e necessitar de vigilância.
VIII. Quanto ao ponto 71, o facto de MN ter estado em outras Instituições, não está em contradição com o facto de os Demandantes alegarem que não queriam que esta estivesse sozinha em casa.
IX. Relativamente aos pontos 74, 75 e 76, MN foi imobilizada, numa cama sem grades, não a protegeu nem fez com que ficasse em segurança.”
A decisão da matéria de facto é, pois, nesta parte, integralmente de manter.
(b) Da impugnação em matéria de direito
(b.a.) Da obrigação de indemnizar
Na sentença julgou-se parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra a demandada civil SCM, condenando-se esta a pagar aos demandantes AC e JC, “em partes iguais, o valor global de 95.000,00€ (noventa e cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pelo seu incumprimento contratual, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efetivo e integral pagamento, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, absolvendo-a da parte remanescente do pedido”.
A recorrente argumenta aqui, essencialmente, do modo seguinte:
“A imobilização da Dª MN numa cama sem grades não é um facto ilícito porque não constitui uma omissão de zelo exigível, em primeiro lugar porque não existe nenhuma disposição legal ou normativa que obrigue a demandada a deitar a ofendida numa cama com grades (…)
Em segundo lugar a ofendida foi avaliada por mais de uma vez pelo Gabinete de Fisioterapia e Reabilitação Psicomotora e enfermeiros da demandada, que são técnicos especializados com competência para efetuar as avaliações, que determinaram que não tinha os critérios para lhe ser atribuída uma cama com grades, porque não estava acamada ou totalmente dependente nem possuía outras complicações, como excesso de peso, problemas de mobilidade, problemas cardiorrespiratórios ou feridas.
Não se verificou a violação do dever de vigilância porque o rácio de pessoal da demandada é bastante superior ao exigido legalmente.
As funcionárias que prestam serviço no 1º piso da ERPI são as mais bem preparadas, eficazes e da maior confiança da demandada, havendo permanentemente vigilância 24 sobre 24 horas.
Além da ofendida ter junto da sua cama e ao seu alcance um interruptor do sistema de chamada que permite que a funcionária de serviço, esteja em que local estiver, não só naquele piso mas também em qualquer ponto das instalações, se apercebe da chamada da ofendida.
Em noites anteriores a ofendida pediu auxílio por voz ou utilizou o sistema de chamada existente, vide facto provado.
O circuito interno de vídeo fechado que a demandada possui tem a autorização N.º 5594/2016 dada pela com Comissão Nacional de Proteção de Dados que não permite a recolha de imagens de acesso ou interior de instalações sanitárias, zonas de espera, locais de lazer e repouso, corredores de acesso e interior dos quartos e cozinhas.
Não se verifica assim a existência de facto ilícito nem a culpa, pressupostos da responsabilidade civil, devendo em consequência ser julgado improcedente o pedido de indemnização civil em que foi condenada.”
A esta argumentação contrapuseram os demandantes:
“MN foi imobilizada, numa cama sem grades, o que não a protegeu nem fez com que ficasse em segurança.
Pelo contrário, o lençol causou a sua asfixia.
A utilização de um meio de contenção, implicaria uma vigilância permanente, o que não ocorreu em função do meio de organização do trabalho da Demandada.
Como não assegurou vigilância permanente, MN acabou por escorregar da cama, o que não aconteceria com uma cama de grades e ninguém se apercebeu, acabando por asfixiar até à morte.
A imobilização teria de ser feita numa cama de grades e nunca como aconteceu.
A imobilização não se substitui a uma vigilância, muito pelo contrário, implica maior vigilância, por acarretar um risco de asfixia, que aparentemente as enfermeiras da Demandada desconheciam.
MN foi para o lar da Recorrente por ter sido diagnosticada com Alzheimer uma doença incurável e com tendência para piorar e assim, estaria sempre acompanhada, vigiada e em segurança.
A Demandada ao permitir que MN estivesse sem vigilância adequada, incorretamente imobilizada e ao permitir que esta escorregasse da cama, acabando por ser asfixiada com um lençol, até à morte, omitiu os deveres de cuidado (…)”.
Num enquadramento jurídico algo impreciso, o tribunal situou a responsabilidade civil da demandada no âmbito do incumprimento de contrato. Mas a resposta jurídica para o episódio de vida em apreciação deve encontrar-se no contexto das normas que regem a culpa in vigilando.
Como se pode ler na "Coletânea de Jurisprudência", tomo 4, n.º 233, agosto-outubro 2011, p. 251-254, “O concurso entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual é um concurso aparente de normas, não existindo aplicação cumulativa das duas vias de responsabilidade à mesma situação.
Se o dano resulta da infração de um dever geral de conduta deve prevalecer a responsabilidade extracontratual; se ocorre apenas a violação de um crédito, prevalece a responsabilidade contratual.”
No caso dos autos, estamos perante uma situação de uma obrigação decorrente do dever de vigilância por internamento de idoso (idosa) com incapacidade natural em lar. E a esta constatação jurídica é indiferente o tipo ou extensão da assistência médica que em concreto que deveria ou não ser prestada pela demandada (daí ser indiferente a impugnação da matéria de facto nessa parte), uma vez que resulta indiscutível que o dever de vigilância, em concreto, incluiu os cuidados e a assistência necessários a que a idosa dormisse em segurança e a que episódios como o presente não ocorressem.
Trata-se por isso de responsabilidade fundada na culpa in vigilando, como se disse.
O art. 491º do CC contempla uma situação específica de responsabilidade subjetiva pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância.
Uma vez que não estamos perante danos provocados a terceiros é de afastar a presunção que inverte o ónus da prova prevista no art. 491º do CC, que só existe para o caso de danos a terceiros e não abrange os danos próprios daquele que necessita de vigilância.
Neste sentido, pode ler-se A.Varela e Pires de Lima, CC anotado Vol. I 3ª ed. P. 466 e Rodrigues Bastos, “ Notas ao Código Civil, vol. II Lisboa, 1988 p. 491, onde se pode ler: “A norma em exame só prevê os danos causados a terceiro. Isto não significa que quando a pessoa necessita de vigilância e cause um dano a si própria não possa haver responsabilidade do obrigado a vigilância, só que, em tal caso não é aplicável a inversão do ónus da prova de que trata este artigo (Enneccerus-Lehmann, ob. Vol. II § 237 ali citado).”
Ou seja, como referem A.Varela e Pires de Lima, ob. Cit., p. 466, “no que toca aos danos causados à pessoa que deve ser vigiada vigoram os princípios gerais, nomeadamente o art. 486º.”
Assim sendo, nos termos do art. 487º nº 1 do CC “é ao lesado que incumbe a prova da culpa do autor na lesão”.
“Para a compreensão do “dever de vigilância” deve apelar-se ao “padrão de conduta exigível”, com suficiente plasticidade, impondo-se a indagação casuística e a convocação do “pensamento tópico”, pelo que importa valorar, designadamente, a idade do incapaz, a perigosidade da atividade, a disponibilidade dos métodos preventivos, a relação de confiança e proximidade, a previsibilidade do dano” (Ac. TRC de 17.09.2013, rel. Jorge Arcanjo).
É entre outros, objetivo específico dos estabelecimentos de Lares de Idosos “proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas” (Norma II, nº 1, al. a) do Despacho Normativo nº 67/89, de 26 de Julho), constitui obrigação dos lares de idosos garantir-lhes “a prestação de todos os cuidados adequados à satisfação das necessidades dos idosos, designadamente, alimentação, cuidados de higiene e conforto, de ocupação, médicos e de enfermagem, tendo em vista a manutenção da sua autonomia” (cfr. nº 2, alíneas a) e c) do preceito citado).
Daqui deriva que, sem prejuízo da independência e autonomia dos idosos quando possível, cabe aos lares desenvolver todo um conjunto de tarefas necessárias à proteção e segurança dos seus internados, encontrando-se entre estas, necessariamente, a obrigação de controlarem o seu comportamento, o que se impõe particularmente em relação àqueles que tenham evidenciado “comportamentos desajustados” da realidade.
Competia assim aos demandantes demonstrarem que o lar não empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias, para prevenir o evento danoso. E essas providências serão ditadas pelas “particulares normas técnicas ou legislativas inerentes ás especiais atividades ou regras de experiência comum” (Vaz Serra, Da Responsabilidade Civil 368, e Ac. STJ de 17.02.77, BMJ 26, p. 166.)
O padrão de conduta exigível na vigilância será assim o de uma pessoa média colocada nas mesmas circunstâncias e depende, especialmente, da natureza e valor do interesse protegido em questão, da perigosidade da situação, das condições de perícia que é de esperar de quem exerce a vigilância, da previsibilidade do dano, da relação de proximidade ou da particular confiança entre as partes envolvidas, bem como da disponibilidade e custos de métodos preventivos ou alternativos.
Ora, essa omissão resulta efetivamente da matéria provada.
E para chegar a esta conclusão, há que apreciar no seu conjunto todos os “elementos factuais” suscetíveis de ponderação. Ou seja, mostra-se errado isolar e avaliar de per si, individualmente, cada “parcela de actuação” (que individualmente até podem ser válidas e legais), como pretende a recorrente, mas sem proceder, como sempre se impõe, a uma análise conjunta de todas essas parcelas de atuação (da demandada).
A concreta aferição do dever de vigilância obriga à concreta contextualização dessas parcelas de atuação, no âmbito das concretas condições e das cautelas e cuidados que, sempre em concreto, serão de exigir.
Assim, in casu, tratava-se de garantir a segurança noturna de uma pessoa idosa padecente de doença de Alzheimer, necessitada de ser imobilizada na cama na decorrência de episódios anteriores de levantamento durante a noite, situando-se o seu quarto num piso com uma única funcionária cuidadora de todos os internados, e sem câmaras de vigilância nos quartos.
Assim, não obsta à responsabilização da demandada a circunstância de “a imobilização numa cama sem grades não ser um facto ilícito”, “de não ter critérios para lhe ser dada uma cama com grades porque não estava acamada ou totalmente dependente nem possuía outras complicações”, “o rácio de pessoal da demandada ser superior ao exigido legalmente”, “as funcionárias serem bem preparadas”, “a ofendida ter junto da sua cama e ao seu alcance um interruptor do sistema de chamada que permite que a funcionária de serviço, esteja em que local estiver, não só naquele piso mas também em qualquer ponto das instalações, se apercebe da chamada da ofendida” (lembre-se que a falecida pode ter asfixiado sem disse se ter chegado a aperceber), “ em noites anteriores a ofendida ter pedido auxílio por voz ou utilizado o sistema de chamada existente.”
Para além das “cama de grades”, resulta da sentença que a demandada dispunha nas suas instalações também de grades amovíveis para colocação pontual em camas sem grades. E se não dispusesse, podia dispor. Esta grade amovível podia ter sido colocada e prevenido o episódio sucedido.
Este “aditamento de segurança” à imobilização por lençol, (através da colocação de grade amovível) justificava-se claramente aqui, face à globalidade dos factos provados. Ou seja, justificava-se para esta pessoa em concreto, nas suas concretas circunstâncias: pessoa idosa padecente de Alzheimer, com episódios de instabilidade de sono já conhecidos da demandada, que se encontra num quarto sem câmara de vigilância, situado num piso onde uma única funcionária presta assistência a vários quartos e a vários idosos.
Por tudo se conclui que a demandada não empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias, para prevenir o evento danoso. Esta sua omissão resulta efetivamente da matéria de facto provada e, como tal, deve ser responsabilizada pelo evento danoso.
(b.2) Do montante indemnizatório
Por último, a recorrente impugna o quantum indemnizatório argumentando que “deverá ter-se em conta no valor da indemnização a idade da ofendida, o estado de saúde em que se encontrava, a esperança de vida e o facto de com toda a probabilidade ter falecido sem se aperceber o que estava a acontecer, por ter sofrido uma compressão lenta que a foi asfixiando lentamente e que ao mesmo tempo por falta de oxigénio lhe baixou o limiar de consciência, como foi referido pelo Perito em audiência de julgamento.”
A sentença fixou em 95.000,00€ o valor global da indemnização, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efetivo e integral pagamento, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, absolvendo a demandada da parte remanescente do pedido”
Face à alteração da decisão em matéria de facto, resultando agora por demonstrar o enunciado fáctico especificado em 78., que passou a ocupar a matéria de facto não provada, o montante indemnizatório parcelar de 10.000,00 €, que a sentença considerara devido aos demandantes em partes iguais (5.000,00 € a cada demandante) na qualidade de herdeiros legais da vítima, deve ser agora dado sem efeito, atenta a ausência total de base factual.
O montante indemnizatório de 12.500,00 €, considerado na sentença como devido a cada um dos demandantes pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte da sua mãe, encontram-se ali suficientemente justificados, tanto factual como juridicamente. Para essa justificação se remete, tanto mais que a recorrente verdadeiramente nem o impugna como valor a se. Adita-se que o valor arbitrado se enquadra nos comumente atribuídos em casos semelhantes, assim respeitando também o referente jurisprudencial. Veja-se, por exemplo o acórdão desta Relação de 18.10.2018, com a mesma relatora do presente, e em que a título de ressarcimento de danos não patrimoniais sofridos em consequência de morte de mãe idosa foi fixado valor igual ao presente.
Já o valor fixado pela perda do direito à vida se mostra elevado, tendo em conta as circunstâncias concretas que a sentença apreciou, e ainda duas outras a que não foi dado o devido destaque.
Assim, disse-se na sentença que “no caso em apreço, logrou provar-se com relevância para esta questão, que a vítima mortal à data da morte tinha 75 anos de idade, padecendo de Alzheimer, e os filhos, nutriam bastante carinho por ela.
De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), in https://www.ine.pt, «A esperança de vida à nascença foi estimada em 80,80 anos, sendo 77,78 anos para os homens e 83,43 anos para as mulheres no período 2016-2018».
Porém, é consabido que a esperança de vida de uma pessoa idosa diminui de sobremaneira a partir do momento em que deixa de viver em sua casa e passa a viver num lar.
Cumpre também considerar nos termos do artigo 494.º ex vi artigo 496.º, n.º 4 do CC, o grau de culpabilidade da demandada (negligência), e a situação económica da demandada muito superior à dos demandantes.”
Após citar jurisprudência de apoio, consigna acertadamente, a propósito dos valores mais baixos que decorreriam da aplicação da Portaria n.º 377/2008, que “hoje em dia, a jurisprudência toma mais como referência um valor médio a rondar os 50.000,00 €”. E conclui “ atendendo aos elementos supra enunciados, configura este Tribunal justo e adequado fixar de acordo com os juízos de equidade, tomando como referência os valores médios praticados pela jurisprudência e a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, actualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, o montante indemnizatório de 60.000,00 € devido pela demandada aos demandantes, em partes iguais, por direito próprio (cabendo a quantia de 30.000,00€ a cada demandante), pela perda do direito à vida da sua mãe.”
Se na sentença se identificou corretamente esse valor médio a que os tribunais têm chegado (e a sentença alude aqui acertadamente à importância do referente jurisprudencial em decisões como a presente), não se percebe a sua concreta elevação para € 60.000,00, tanto mais que as circunstâncias do caso justificaria sim uma ligeira descida para € 45.000,00. Nesta decisão, para além das circunstâncias referidas na sentença e já transcritas, deve ainda ter-se em conta que a doença de Alzheimer de que a falecida padecia tem um quadro clínico de evolução altamente incapacitante e limitativo da qualidade de vida. Por outro lado, e no que respeita à demandada, não basta considerar que tem uma capacidade económica muito superior à dos demandantes, devendo ainda ter-se em conta que se trata de uma instituição de solidariedade social sem fins lucrativos.
Justifica-se, por tudo, a redução deste montante para € 45.000,00, computando-se agora a indemnização total em € 70.000,00.
4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, alterando-se a matéria de facto conforme justificado em 3.(a.1), e reduzindo-se o valor global da indemnização para € 70.000,00, conforme explanado em 3.(b.2.), mantendo-se no mais a sentença.
Custas cíveis na proporção do vencimento.
Évora, 14.04.2020
(Ana Barata de Brito)
(Carlos Berguete)
Fonte:"https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1107-2020-191161275"
Dever de Informação
Responsabilidade medica
– Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª Edição, p. 519.CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): – ARTIGO 672.º, N.º 3.
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:- DE 02-11-2017, PROCESSO N.º 23592/11.4T2SNT.L1.S1;
– DE 22-03-2018, PROCESSO N.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1;
– DE 05-06-2018, PROCESSOS N.º 1250/13.5TVLSB.L1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
I - A responsabilidade civil emergente da realização de ato médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática médica, pode radicar-se na violação do dever do informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do ato médico.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
AA intentou ação declarativa comum contra BB pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 58.500,00, a título de indemnização por todos os danos que lhe foram provocados com a atuação ilícita por ato e/ou omissão do réu, devidamente atualizada à data da prolação da sentença, e/ou acrescida dos juros moratórios vincendos desde a data da citação, à taxa legal (sendo que, no decurso dos autos, requereu a redução do pedido para a quantia de € 35.000,00 - o que foi admitido por despacho de 22/03/2018).
Alegou, para tanto e em síntese, que procurou os serviços do réu, ..., com o propósito de melhorar a sua aparência dental, o qual lhe garantiu que o tratamento seria simples e eficaz, capaz de garantir o resultado final pretendido e que não comportava qualquer tipo de risco.
Mais alegou que, por causa do tratamento, começou a sentir alterações ao nível da sua estrutura bucal, que apresentou ao réu várias queixas e que, como não sentia melhoras, consultou diversos especialistas. E alegou que passou a sofrer de problemas funcionais, esqueléticos, desvios mandibulares, reabsorção radicular, alteração de mordida, oclusão traumática e dificuldades na mastigação e que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela conduta do réu, que não fez uso de todos os conhecimentos técnico-científicos e todos os meios à sua disposição para assegurar à autora os melhores cuidados e repor a sua saúde oral, violando, também, as regras deontológicas da Odontologia, tendo incorrido em responsabilidade tanto de âmbito contratual, como extracontratual.
O réu contestou e deduziu incidente de intervenção principal provocada de CC SA (atualmente denominada DD SA) – intervenção essa que foi admitida.
Em síntese, alegou que prestou os serviços referidos pela autora, mas negou todos os erros que lhe foram imputados, os danos e qualquer nexo de causalidade.
E alegou ter celebrado com a Interveniente um contrato de seguro de responsabilidade profissional.
A Interveniente também contestou, invocando a prescrição do direito e a previsão de franquia no contrato de seguro, e no mais, fazendo sua a contestação apresentada pelo réu, impugnando a matéria factual invocada pela autora.
Prosseguindo os autos e realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença:
Condenando-se o réu e a interveniente solidariamente a pagar à autora a quantia de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais e a quantia de €22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros) a título de dano patrimonial futuro, ambas acrescidas de juros de mora à taxa de 4% a contar da data da sentença e até efetivo e integral pagamento, sendo o valor respeitante à interveniente deduzido da franquia estipulada no contrato de seguro.
Na sequência e no âmbito de apelação do réu, a Relação de Guimarães confirmou a sentença recorrida.
Uma vez mais inconformado, interpôs o autor/apelante o presente recurso de revista excecional (admitido pela Formação a que alude o nº 3 do art. 672º do CPC), no qual formulou as seguintes conclusões:
1ª - Foi o Recorrente notificado do Acórdão que negou provimento ao recurso, concluindo que o Recorrente é responsável pelos danos sofridos pela A. na sequência do tratamento ortodôntico efetuado, apesar de ter resultado provado que “90. O Réu [Recorrente] empregou todos os conhecimentos técnico-científicos e os meios necessários ao tratamento realizado pela Autora”, simplesmente pelo facto de ter considerado a conduta do Recorrente ilícita por alegadamente não ter cumprido o dever de informação necessário para se alcançar o consentimento livre e esclarecido.
2ª - Ora, tal Acórdão está em frontal contradição com a posição defendida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, já transitado em julgado, proferido no processo n.º 284/099TVLSB.Ll-2, datado de 03-12-2015.
3ª - Refere o sumário do citado aresto que “II. Não se provando a existência de erro na realização da cirurgia nem de nexo de causalidade entre a cirurgia e os males de que o credor se queixa e pelos quais pretende ser ressarcido, perde relevo a questão da prestação de consentimento informado para a realização da cirurgia.”
4ª - Regressando ao Acórdão em crise nos presentes autos, verifica-se que o mesmo adota uma posição contrária, ao valorizar o consentimento informado em detrimento da prova já assente de que o Recorrente empregou todos os conhecimentos técnico-científicos e os meios necessários ao tratamento realizado pela Autora,
5ª - Concluindo que “Nem só a má prática médica ou o erro técnico é fundamento de responsabilidade médica, também o é a violação dos direitos dos pacientes, realçando-se, entre estes (mas existem muitos outros), a sua autonomia e autodeterminação, por desrespeito do dever de informar, que impede que o paciente usufrua da sua 1iberdade.”
6ª - Ora, seguindo a posição do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03-12-2015, resultando provado que o Recorrente empregou todos os conhecimentos técnico-científicos e os meios necessários ao tratamento realizado pela Autora, perderia relevo a questão da prestação de consentimento informado e o Recorrente seria absolvido, tal como foi o médico naquele processo.
7ª - Também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2011, processo n.º 10527/07.8TBMAI.P1, conclui que não resultando provada a ilicitude dos atos do R., deveria este ter sido absolvido.
8ª - Este aresto esclarece que “Afastada a ilicitude desta intervenção, e sem deixar de se reconhecer, na medida dos factos apurados, os prejuízos sofridos, também é seguro que os mesmos, presente o enquadramento factual apurado, são compatíveis e adequados ao ato médico licitamente efetuado, com observância das regras técnicas e da arte que dele são indissociáveis. Em conclusão, afastada a ilicitude da intervenção e não se verificando todos os pressupostos integradores da obrigação de indemnizar, que se impõem cumulativos, não pode ser tutelada a pretensão da recorrente.”
9ª - Está assim patente a existência de contradição entre Acórdãos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de Direito: a extensão/importância do conceito de consentimento informado nas situações em que não existe ilicitude na intervenção do médico.
10ª - Face a tudo o exposto, deveria o Recorrente ter sido absolvido, o que ora se requer através da substituição do acórdão recorrido por outro que declare que “Estando excluída a demonstração de comportamento médico ilícito, danoso e culposo por parte do R., fica prejudicada a questão da formação de um consentimento informado da realização do comportamento.” e, em consequência, absolva o R. do pedido formulado.
Nestes termos, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., Exmos. Conselheiros, deverá ser recebido e considerado procedente o presente recurso de revista excecional e, em consequência, ser revogado o acórdão ora recorrido, substituindo-se aquele por outro que absolva o réu/recorrente do pedido. Decidindo nesta conformidade, será feita a costumada justiça!
Nas suas contra-alegações, a autora pugnou pela não admissão da revista excecional (que, conforme supra referido, veio a ser admitida pela Formação).
Colhidos os vistos, cumpre decidir:
Em face do conteúdo das conclusões recursórias, a única questão de que cumpre conhecer consiste em saber se, não se provando a existência de erro técnico na realização do ato médico, a responsabilidade civil se pode basear na violação do dever de informação do paciente.
É a seguinte a factualidade dada como provada e como não provada pelas instâncias (com as alterações efetuadas pelas Relação).
Factos provados:
Factos não provados:
Apreciando:
Conforme se alcança do acórdão recorrido, a Relação, considerando que a responsabilidade médica se pode fundar na responsabilidade contratual e/ou na responsabilidade extra contratual ou aquiliana (neste caso quando a mesma resulta, citando Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª Edição, pag. 519, da “violação de direitos dos direitos absolutos ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causaram prejuízo a outrem”), sendo-lhe aplicáveis, ainda que com certas especialidades, os princípios gerais da responsabilidade civil (o ato ilícito, a culpa, o dano e o nexo da causalidade adequada entre o facto e o dano), tomou posição no sentido de, in casu, a responsabilidade civil do réu recorrente, não se verificando os pressupostos da responsabilidade contratual, se poder fundar na violação de outro tipo de ilícito (consubstanciado na violação do dever de informação):
“Apesar de não ser unívoco na jurisprudência e doutrina, entende-se, aliás na esteira do que se tem por dominante, que nesta sede são cumuláveis as regras da responsabilização fundada na violação contratual ou noutro tipo de ilícito, porquanto com o contrato as partes não pretendem renunciar à tutela geral ou furtar-se aos deveres que a lei lhes atribui, mas antes reforçar as suas obrigações e inerentes direitos (cf. Ac RP de 09/11/2012 no processo 2488/03.9TVPRT.P2, Ac RL de 04/19/2005 no processo 10341/2004-7, Ac de 09/11/2007 no processo 1360/2007-7,) mas contra Pinto Monteiro, "Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil", in BFD, Sup., vol XXVIII, Coimbra, 1985, pp. 398-400, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, A responsabilidade médica em Portugal, BMJ nº 332, 1984, p. 40, NUNES, Manuel Rosário, Da responsabilidade civil por actos médicos – Alguns Aspectos, Universidade Lusíada, 2001, p. 54-63, VAZ SERRA, Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual”, BMJ nº 85, pp. 208 ss. e 238-239).
É, pacífico, nestes autos, que foi celebrado um contrato de prestação de serviços entre o Réu médico e a Autora, assumindo este a obrigação de prestação de serviço, previsto no artigo 1157º do Código Civil, regulado em especial pelas normas que deste se estendem até ao artigo 1184º deste diploma, ao qual, em caso de violação, se aplicam as regras que regulam a responsabilidade contratual.
Enfim, há que recorrer ao regime da responsabilidade aquiliana ou contratual aqui concorrentes, iniciando-se a análise pela que mais favorece o lesado, sabendo-se, à priori, que a responsabilidade contratual, em regra, tutela com maior alcance a parte que sofreu os danos e prejuízos.”
Na linha de tal raciocínio, considerou que a responsabilidade médica se tem estribado essencialmente em dois fatores: a má prática médica ou erro médico e a violação dos direitos dos pacientes, “realçando-se, entre estes (mas existem muitos outros), a sua autonomia e autodeterminação, por desrespeito do dever de informar, que impede que o paciente usufrua da sua liberdade. O paciente só autoriza a intervenção médica efetuada na sua pessoa, de forma plena e consciente, se estiver na posse dos elementos necessários para tomar essa decisão: só então se pode concluir pela verificação do seu consentimento livre e informado.”
E, afastando desde logo a existência de erro médico, considerou estar apenas em causa nos autos aquela segundo vertente da responsabilidade médica, baseada na violação dos direitos do paciente, no âmbito dos deveres de informação necessários para se alcançar o consentimento livre e esclarecido – violação essa que considerou verificada.
Isto porquanto, segundo o acórdão recorrido, o dever de informação “tem importância primordial o dar a conhecer ao doente os riscos do procedimento, pois este não pode escolher, em consciência, submeter-se ou não ao procedimento médico, se não estiver ciente da existência desses riscos.
O tipo, profundidade e as próprias informações que devem ser prestadas diferem em virtude de um conjunto de circunstâncias; existem, além disso, diversos critérios para densificar a informação devida, havendo quem entenda que é de exigir que se explanem os riscos graves, mesmo que raros, outros que apenas apontam para os previsíveis. Este dever, de qualquer forma, é mais intenso nas intervenções não terapêuticas, como a presente, por ter em vista apenas razões estéticas e logo ser maior a margem de liberdade do paciente para recusar o procedimento.
Supra não só se concluiu que o Réu não prestou informação sobre os riscos inerentes ao procedimento estético que ia proceder na boca da Autora, como se concluiu, que mesmo que assim não fosse, o ónus da sua prova cabia ao médico e este não o logrou demonstrar.”
É contra tal entendimento que se manifesta o réu recorrente, nos termos das conclusões recurórias supra transcritas, defendendo (e apenas) que, inexistindo má prática médica conforme ficou demonstrado nos autos, irrelevante se torna a existência de violação do dever de informação, pelo que deve ser absolvido – fazendo referência, para o efeito, a dois acórdãos, da Relação de Lisboa e da Relação do Porto, em que se tomou posição nesse sentido.
Conforme bem se considerou no acórdão recorrido (o que nem sequer é posto em causa na revista) estamos em presença de um contrato de prestação de serviços, que teve por objeto a realização de determinados atos médicos.
E efetivamente, conforme defende o recorrente e foi, de resto, considerado no acórdão recorrido, não se provou (bem pelo contrário) ter havido violação, por parte do réu recorrente. dos seus deveres contratuais relativos à adequada prática dos atos médicos, ou seja não se provou ter havido erro médico ou má prática médica, na medida em que se provou especificamente (nº 90 dos factos provados) que “o réu empregou todos os conhecimentos técnico-científicos e os meios necessários ao tratamento realizado pela autora”.
Assim, a responsabilização do recorrente apenas poderia assentar na violação do dever de informação do paciente, informação essa fundamental ao consentimento livre e esclarecido.
Ora o certo é que a jurisprudência, e em particular a jurisprudência do STJ, na linha do entendimento seguido no acórdão recorrido, tem vindo a tomar posição clara no sentido da dupla sede de responsabilidade médica: baseada no erro médico (contratual) ou na violação do dever de informação ou seja, do consentimento informado – entendimento que sufragamos por inteiro.
Com efeito, em sede de intervenção médica, ainda que seguindo-se todos os procedimentos que à data se julguem adequados à prática do respetivo ato, haverá sempre uma margem de insucesso, de risco, traduzido na ocorrência de efeitos nefastos, como de resto acabou por ocorrer no caso ora em apreço (vide, particularmente, a factualidade constante dos nºs 74 e sgs).
E prova disso é o facto de, conforme é do conhecimento público, e felizmente que assim é, a ciência e técnica médica terem vindo a evoluir constantemente. Ora (e particularmente em situações como a dos autos em que o ato médico visa no essencial uma correção estética) é de todo imprescindível que o paciente disponha de adequada informação, relativamente aos riscos inerentes, em ordem à formação de um consentimento esclarecido e verdadeiramente consciente – sendo certo que, in casu, se provou especificamente (nº 96 dos factos provados) que “o réu não informou a autora de que o tratamento comportava o risco de a autora ficar a padecer dos problemas referidos em 74)”.
No sentido de tal entendimento (ou seja, o entendimento do acórdão recorrido que, conforme referido, sufragamos) vide acórdão do STJ de 02.11.2017 (proc. nº 23592/11.4T2SNT.L1.S1, in www.dgsi.pt) onde bem se considerou:
“Quer a lei portuguesa (cfr., em especial, os arts. 70.º, 81.º e 540.º do CC, bem como o art. 157.º do CP ou o n.º 11 do art. 135.º do Estatuto da Ordem dos Médicos), quer diversos instrumentos internacionais (cfr. o art. 5.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina – Convenção de Oviedo) exigem, como regra e como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes – por exemplo, através de uma cirurgia, como no caso presente – que estes consintam nessa ingerência; e que o consentimento seja prestado na posse das informações relevantes sobre o ato a realizar, tendo em conta as concretas circunstâncias do caso, sob pena de não poder valer como consentimento legitimador da intervenção”.
No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 05.06.2018 (proc. nº 1250/13.5TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt):
I – O utente assume a qualidade de consumidor na relação com o prestador de cuidados de saúde, nos termos da Lei n.º 24/96, de 31 de julho que aprovou o regime legal aplicável à defesa do consumidor (Lei do Consumidor).
II - O utente tem o direito a ser informado atempadamente pelo prestador dos cuidados de saúde sobre os serviços e valores a pagar;
III – Se o utente – com conhecimento do prestador de cuidados de saúde - celebrou um determinado contrato de seguro que financia a prática de atos médicos em determinado estabelecimento hospitalar, deve ser esclarecido pelo prestador sobre a possibilidade de vir a ter que suportar algum custo, relativamente aos cuidados de saúde que lhe vierem a ser ministrados.”
Também no mesmo sentido, vide acórdão do STJ de 22.03.2018 (proc. nº 7053/12.7TBVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt):
I - Em sede de responsabilidade civil por atos médicos ocorre frequentemente uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo orientação reiterada da jurisprudência do STJ a opção pelo regime da responsabilidade contratual tanto por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efetiva do lesado.
II - Tanto o direito nacional, como instrumentos internacionais, impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica.
III - O consentimento do paciente prestado de forma genérica não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, sendo, além disso, necessário, em caso de repetição de intervenções, que tais esclarecimentos sejam atualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo.”
No mesmo sentido, entre outros, vide ainda o acórdão do STJ de 22.05.2003 (revista nº 912/07 – 7ª secção, in Sumários dos Acórdãos do STJ), o acórdão da Relação de Coimbra de 11.11.2014 (proc. nº 308/09.0TBCBR.C1, in www,dgsi,pt) e o acórdão da Relação de Guimarães de 10.01.2019 (proc. nº 3192/14.8TBBRG.G1, in www.dgsi.pt).
Posto, isto, haveremos de concluir no sentido de não assistir razão ao recorrente quando, ao contrário do entendimento sufragado no acórdão recorrido, defende que, tendo empregado todos os conhecimentos técnico-científicos e os meios necessários ao tratamento realizado pela autora, não releva a questão da prestação de consentimento informado.
Assim, atenta a factualidade provada, o que o recorrente poderia questionar era a eventual inexistência de violação do dever de informação – questão esta que não foi suscitada na revista e da qual, como tal, não nos compete conhecer.
Improcedem assim as conclusões recursórias, impondo-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Em síntese:
A responsabilidade civil emergente da realização de ato médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática medica, pode radicar-se na violação do dever de informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do ato médico.
Termos em que se acorda em negar a revista e em conformar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 24 de outubro de 2019
Acácio das Neves (Relator)
Fernando Samões
Maria João Vaz Tomé
Falsidade Informática nos registos do Hospital
Facto Juridicamente relevante
RP2015052635/07.2JACBR.P1
I – No crime de Falsidade informática, quer na redação do art. 4.º n.º 1, da Lei da Criminalidade Informática, em vigor aquando dos factos, quer na atual formulação do art.º. 3.º n.º 1, da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro), os dados informáticos têm de ser alterados com o propósito de desvirtuar a demonstração dos factos que com aqueles dados podem ser comprovados.
II – Comete tal crime a arguida que fez introduzir no sistema informático do hospital episódios de cirurgias realizadas em regime de ambulatório como se tivessem sido levadas a cabo em regime de internamento, quando tal não correspondia à realidade.
III – A relação jurídica que em virtude do comportamento da arguida foi introduzida no sistema informático não corresponde à verdade, sendo certo que os dados assim vertidos no sistema informático produzem os mesmos efeitos de um documento falsificado, pondo em causa o seu valor probatório e consequentemente a segurança nas relações jurídica
Processo n.º35/07.2JACBR.P1
Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No processo comum [com intervenção do tribunal singular ao abrigo do art.16.º do C.P.Penal] n.º35/07.2JACBR da Comarca do Baixo Vouga, Aveiro, Juízo de Média Instância Criminal, Juiz 2, por sentença proferida em 15/7/2014 e depositada na mesma data, foi decidido:
- absolver a arguida B… da prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelos arts.26, 217.º e 218.º, n.º2, al.a) do C.Penal,
- condenar a arguida pela prática de um crime de falsidade informática p. e p. pelo art.4.º, n.º 1 e 3 da Lei da Criminalidade Informática, na redação introduzida pela Lei n.º109/91, de 17/8, e alterada pelo DL n.º323/2001, de 17712, por referência aos arts.26.º e 386.º do C.Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, a qual foi suspensa na sua execução por igual período de empo, nos termos do art.50., n.º1 e 5, do C.Penal.
Inconformada com a decisão condenatória, a arguida interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
1 – No âmbito dos presentes autos foi a arguida B…, acusada da prática de um crime de burla qualificada e ainda de um crime de falsidade informática;
2 – A recorrente foi absolvida pelo Tribunal a quo do crime de burla qualificada e condenada pela prática de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 4º, n.º1 e n.º3, da Lei da Criminalidade Informática;
3 – Ora, sendo o crime de falsidade informática de que foi acusada a arguida, instrumental do crime de burla, ou seja, na ótica da acusação, foi “o meio para atingir o fim” e tendo a arguida sido absolvida da burla, necessária e forçosamente inexiste o meio usado na concretização de tal fim – falsidade informática, pelo que nunca que o Tribunal a quo poderia ter condenado a arguida pela prática de tal ilícito;
4 - A falsidade informática é punida quando contenha factos falsos, mas, entendendo-se por factos falsos, não todo e qualquer facto, mas tão-somente os factos falsos que forem juridicamente relevantes, ou seja, factos que sejam aptos a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, o que não aconteceu no presente processo,
5 – pois, consta dos documentos do processo – contrato programa e faturas – que o valor pago ao hospital pelo IGIF - Estado, relativamente a cirurgias oftalmológicas em ambulatório e em internamento, era exatamente o mesmo, sendo indiferente que as cirurgias tenham sido feitas em sistema ambulatório ou em internamento,
6 – O Tribunal a quo considerou provada a matéria de facto constante dos pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22, dos factos provados, que estão em flagrante e objetiva oposição e contradição com os documentos juntos ao processo pela própria acusação - contrato programa do hospital e faturas do hospital – que provam que o valor pago por cada cirurgia era sempre igual e o mesmo, quer a cirurgia fosse feita em ambulatório ou em internamento.
7- Face à existência das faturas emitidas pelo Hospital de Aveiro, durante todo o ano de 2004 e 2005 ao IGIF e pagas por este, face ainda ao teor do contrato programa que, objetivamente, estabelece que o valor unitário pago por cada cirurgia, quer ela seja em ambulatório, quer seja em internamento, é exatamente igual, o mesmo valor;
8 – dizer-se que uma cirurgia foi feita em ambulatório ou em internamento é irrelevante, pois o que é pertinente é se foi feita ou não a cirurgia e, nesta vertente, é notório que foi feita aquela cirurgia, àquele paciente, naquele hospital, naquele dia, por aquele médico e o custo é aquele que está fixado no anexo I ao contrato programa.
9 - No contrato programa celebrado para 2004 e para 2005 celebrado entre Ministério da Saúde e o Hospital …, S.A. junto aos autos a fls. 943 e seguintes, onde no seu Anexo I, relativo a produção contratada e remuneração, consta, no que respeita a internamentos (doentes equivalentes) e cirurgias ambulatórias (doentes equivalentes), que o preço unitário contratado para cada um destes tipos de intervenção, é exatamente o mesmo, ou seja, o preço unitário de €1.849,10;
10 - Nas 17 faturas emitidas pelo Hospital …, enquanto elemento integrante do Serviço Nacional de Saúde ao IGIF respeitantes aos anos de 2004 e 2005 e que constam de folhas 182 a 199 dos autos onde expressamente consta que o valor faturado pelo Hospital com referência a Cirurgias Ambulatórias (e doentes equivalentes) e Cirurgias por Internamento (e doentes equivalentes) é exatamente o mesmo, ou seja, cada uma destas cirurgias, quer em ambulatório quer em internamento, nos anos de 2004 e 2005 tiveram sempre o mesmo preço unitário de €1.849,10;
11 - Com referência aos contratos-programa, há ainda que destacar o consagrado no artigo 24.º dos Estatutos do Hospital …, SA aprovados pelo Decreto-Lei nº. 272/2002, de 09/12, que diz:1 - A execução do plano de atividades do Hospital pautar-se-á, designadamente, por contrato-programa plurianual a celebrar com o Ministério da Saúde, no qual se estabelecerão os objetivos e as metas qualitativas e quantitativas, a sua calendarização, os meios e instrumentos para os prosseguir, designadamente de investimento, os indicadores para a avaliação do desempenho e do nível de satisfação das necessidades relevantes e as demais obrigações assumidas pelas partes. 2 - Da componente financeira de cada contrato será dado conhecimento prévio ao Ministério das Finanças;
12 - Significa isto que, quer os doentes estivessem em regime ambulatório ou em regime de internamento o custo de tais doentes e as receitas decorrentes desses custos, tanto para o Hospital …, como para qualquer entidade decorrente do Ministério da Saúde, sempre eram neutros, pois sempre o Estado era simultaneamente credor e devedor de toda e qualquer quantia;
13 - O que torna notório que os factos ocorridos, (se ocorreram), não permitem a subsunção típica que o Tribunal invoca, uma vez que não preenchem os pressupostos do tipo de ilícito inerente ao crime de falsidade informática p. e. p. no artigo 4º, 1 e 3 da Lei da Criminalidade Informática, na redação introduzida pela Lei n.º 109/91 de 17 Agosto, e alterada pelo Decreto Lei n.º 323/2001 de 17 de Dezembro;
14 - É que mesmo que exista ou possa abstratamente entender-se que ocorreu uma falsidade informática, que não ocorreu, a falsidade informática é punida quando se trate de uma declaração de factos falsos, só que, por factos falsos, não se pode entender ou considerar todo e qualquer facto, mas tão-somente os factos falsos que forem juridicamente relevantes, ou seja, factos que sejam aptos a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica;
Veja-se:
15 - O início deste processo-crime foi despoletado com uma folha 7 dos autos que contém uma relação de cirurgias feitas no hospital de Aveiro, na data de 25 de Outubro de 2004, tal folha contém as cirurgias de Setembro e Outubro de 2004, no que respeita às cirurgias de Setembro de 2004, estas, à data da emissão daquela folha de 25 de Outubro, já haviam sido faturadas ao IGIF, pois as faturas tinham que ser enviadas, como haviam sido, até ao dia 20 de Outubro e àquela data de 25 de Outubro, já haviam sido enviadas;
16 - O preço das cirurgias, conforme se lê do texto das faturas e do anexo ao contrato programa é exatamente o mesmo, ou seja, é um valor igual, quer para cirurgias ambulatórias, quer cirurgias por internamento;
17 – A ter existido um qualquer pedido de alteração para a passagem de cirurgias ambulatórias para cirurgias por internamento, (que não houve), tal pedido só podia servir para fins estatísticos do próprio hospital, pois tal referência não se repercute, como nunca podia repercutir em qualquer relação jurídica que o hospital teve e continuou a ter, pois as relações jurídicas sempre se mantiveram iguais e reais, em nada sendo alteradas em função das referências ambulatória ou internamento, pelo que nunca houve nem podia haver qualquer perigo de o Estado ser defraudado;
18 - O Tribunal a quo não teve em conta os factos provados por documentos, nem o contrato programa celebrado pelo hospital, nem o documento de fls. 7 ter contradições pois apresenta-se feito na data de 25 de Outubro de 2004 e contém referências a cirurgias praticadas no mês de Setembro e Outubro, constando no contrato programa que as faturações relativas a um mês têm que ser enviadas até ao dia 20 do mês seguinte;
19- Constando da folha assinada pela arguida na data de 25-10-2004, relação de cirurgias feitas em Setembro, e dizendo a testemunha C… que alterou a relação ambulatório por internamento nas cirurgias constantes nessa folha e que isso causou prejuízo ao Estado porque as cirurgias por internamento eram mais caras do que as cirurgias de ambulatório, objetivamente tal testemunha prestou falsas declarações na medida em que, no dia 25 de Outubro, já não era possível enviar novas faturações de Setembro, porque estas haviam já sido enviadas até ao dia 20 de Outubro, o valor unitário de cada cirurgia feita pelo hospital de Aveiro, é exatamente o mesmo, quer a cirurgia seja ambulatória, quer seja por internamento;
20 - A falsidade informática é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não de todo e qualquer facto falso, mas apenas aquele que for juridicamente relevante, ou seja, que seja apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica;
21- No caso concreto destes autos, vemos que os factos lançados no sistema informático, documentam factos reais, pois há:
- A identidade real dos intervenientes nos atos cirúrgicos – médicos, enfermeiros, pacientes, hospital;
- A existência das cirurgias feitas e a quê;
- O valor correspondente ao pagamento de cada uma das cirurgias feitas, sendo indiferente que as mesmas tenham sido feitas em sistema ambulatório ou por internamento;
22 - A relação jurídica vertida no sistema informático, é totalmente verdadeira e real;
23 - A única questão levantada pela acusação é a de saber se tais cirurgias foram feitas em ambulatório ou em internamento, questão meramente interna do hospital, para fins meramente estatísticos e que nenhum efeito tem ou teve, na relação jurídica subjacente;
24- O tribunal a quo não relevou, que na base da denúncia crime feita, da acusação feita e dos depoimentos das testemunhas C… e D… está o documento a fls 7 dos autos que tem a data de 25 de Outubro de 2004 e reproduz as cirurgias feitas nos meses de Setembro e Outubro, até àquela data do dia 25, sendo que, tal documento contém a assinatura da arguida Drª B… e, a lápis, as anotações feitas com o punho da testemunha C…;
25 - Em nenhum sítio do documento se diz ou é dito que, com referência a esse documento, a Drª B… deu instruções ou ordens para alterar a designação de ambulatório para internamento para, com isso, o hospital receber mais dinheiro pela prestação de serviços de cirurgia de oftalmologia.
26- E o próprio documento expressa a impossibilidade defendida pela acusação e pelas testemunhas C… e D… dessa denúncia e do depoimento destas testemunhas serem verdadeiras, pois resulta do contrato programa que o valor pago pelas cirurgias oftalmológicas que estas fossem em ambulatório quer fossem em internamento, tinham igual valor e resulta também que a faturação pelos serviços e cirurgias prestados pelo hospital num determinado mês tinham que ser faturados e enviadas as faturas até ao dia 20 do mês seguinte;
27 - Ora, tendo o documento de fls 7 que deu origem ao processo e acusação, a data de 25 de Outubro de 2004 e constando desse documento a relação das cirurgias feitas no mês de Setembro, no dia 25 de Outubro de 2004, já as cirurgias do mês de Setembro de 2004 haviam sido faturadas e as faturas enviadas para a entidade responsável;
28 - Pelo que a referência a lápis feita no documento de fls 7 pela testemunha C… dizendo que havia mudado as indicações das cirurgias do mês de Setembro para prejudicar o Estado, revela-se, objetiva e notoriamente, como denúncia ou depoimento falso e impraticável porque não podia, no dia 25 de Outubro de 2004 alterar a referência ambulatório por internamento para prejudicar o Estado, porque já as faturas relativas a tais cirurgias já haviam sido enviadas para a entidade responsável, entidade responsável esta que, como consta do processo, tinha acesso imediato e automático ao sistema informático, denominado “E…”, o que significa uma impossibilidade objetiva de prática de um ato que, além de inútil e sem valor, era impraticável e impossível de praticar;
29 - Independentemente de ter sido dada “essa ordem” ou não, a verdade é que tal ordem, a ter sido dada e não o foi, era profunda e totalmente inócua nas relações jurídicas existentes entre o Hospital, o Estado e o paciente e não era minimamente idóneo a concretizar uma intenção de causar prejuízo, ou seja, dar-se uma ordem para que uma cirurgia passe de ambulatória para internamento ou vice-versa, mantém sempre incólume a inatingível a relação jurídica criada entre o Hospital, o Estado e o paciente;
30 - O importante, face à lei, é que tenha existido as cirurgias faturadas e que não haja desconformidade entre o que é faturado pelo hospital e a realidade e, de todos os documentos constantes no processo provam que não existe nenhuma desconformidade entre o que foi vertido no sistema informático e a realidade, pois as intervenções cirúrgicas são reais, têm o valor económico que foi faturado, tem a identificação do paciente, a descriminação da cirurgia feita, do médico, da data em que a mesma ocorreu, ou seja, a totalidade do sistema informático e as faturas emitidas através dele, pelo Hospital incorporam factos totalmente verdadeiros face à realidade concreta e objetiva;
31 - Para existir a prática de um crime de falsidade informática, tem que existir uma desconformidade relevante entre o que consta do sistema informático e a realidade, por nele ter sido introduzido um facto falso que provoca uma alteração importante na relação jurídica entre as partes;
32 - O que consta do sistema informático no que concerne às relações jurídicas e aos factos narrados decorrentes dessas relações jurídicas, é exatamente real, verdadeiro e certo, mesmo a ser verdade (que não o é) que tenha existido alterações entre a designação de cirurgia em ambulatória por cirurgia em internamento, o seu efeito sempre se operaria somente no domínio interno do hospital e não na relação jurídica do hospital com o paciente e com o Estado, ou seja, tal alteração poderia consubstanciar uma irregularidade, retificável e nunca uma falsidade, pois não é relevante em termos de relação jurídica, dito de outra forma, mesmo que fosse verdadeira a ordem de alteração de cirurgia ambulatória por internamento, tal declaração que o sistema informático pudesse corporizar ou ter, não tem idoneidade para provar facto juridicamente relevante, o que significa que não tem dignidade jurídica para integrar ou preencher os requisitos essenciais e necessários para a prática de um crime de falsidade informática;
De facto,
33- Criminalidade Informática, consiste em todo o ato em que o computador serve de meio para atingir um objetivo criminoso ou em que o computador é o alvo desse ato, e na situação que nos ocupa nos presentes autos, salvo melhor entendimento, teremos necessária e forçosamente que ser levados a concluir, que a alegada conduta praticada pela arguida B…, não integra os elementos objetivos e subjetivos contidos na previsão normativa do artigo 4º da Lei da Criminalidade Informática, para tal basta atentarmos no elemento literal contido no n.º1 do referido dispositivo legal “…engano nas relações jurídicas,…”, para preenchimento do tipo legal do crime de falsidade informática, exige-se como elemento subjetivo da ilicitude a intenção do agente de provocar engano nas relações jurídicas, o dolo caracteriza-se pelo fim de enganar nas relações jurídicas;
34 - Trata-se de uma intervenção ilegítima no meio informático quando os dados daí resultantes sejam suscetíveis de servir como meio de prova, sendo que a visualização daqueles provocará então os efeitos de um documento falsificado, sendo os interesses aqui protegidos a segurança e fiabilidade dos documentos, consistindo a ação na modificação de dados já armazenados ou armazenar novos com o mesmo fim;
35 – Para que se encontrem preenchidos os requisitos do crime de falsidade informática, exige-se que os factos criminosos alegadamente cometidos pelo agente, incidam sobre relações jurídicas, o agente pratica um facto, tendente a enganar um terceiro prejudicando-o;
36 – No caso concreto, teremos que ser levados a concluir que inexiste, desde logo o prejuízo causado pelo eventual “…engano nas relações jurídicas,…”, na medida em que o Tribunal a quo e bem, absolveu a arguida da prática do crime de burla qualificada, e teremos ainda que ser levados necessária e forçosamente a concluir, que inexistiu qualquer “…engano nas relações jurídicas,…”;
Senão veja-se:
37 - Todas as intervenções cirúrgicas constantes dos autos ou se preferirmos, todas as relações jurídicas, são reais, efetivamente todos os utentes inquiridos nos autos afirmam terem sido sujeitos a intervenções cirúrgicas, ou seja, a relação subjacente existe, é real, e por isso nos presentes autos, não existiu qualquer engano ou alteração nas relações jurídicas, nem existiu, como aliás o Tribunal a quo deu como provado, qualquer custo ou prejuízo, absolvendo nessa medida a arguida do crime de burla qualificada, tratando-se de divergências, que relevam para efeitos meramente estatísticos, sem qualquer relevância ou repercussão, na medida em que como ficou sobejamente provado nos autos, o custo de uma cirurgia realizada em regime de ambulatório é exatamente igual ao custo de uma cirurgia convencional/internamento;
Mais,
38 - O crime de falsidade informática apresenta-se como o meio de concretização / consumação do crime de burla qualificada, ao serviço do qual se concretizou, e tendo a arguida sido absolvida da prática deste último, tal fato terá necessária e forçosamente que nos levar a concluir pela verificação in casu, de uma situação de consumpção relativamente aos dois tipos de ilícito, o tribunal a quo ao absolver e bem, tal como o fez, a arguida da prática do crime de burla qualificada, pelos doutos fundamentos constantes da sentença recorrida, e ao mesmo tempo ao condenar a arguida pela prática do crime de falsidade informática, tal decisão, salvo o devido respeito, redunda por si só, numa contradição insanável nos fundamentos aduzidos pelo Tribunal a quo ao proferir tal decisão;
39 - O juízo valorativo do Tribunal a quo, assentou em prova indiciária, recorrendo o Tribunal a quo, na formação da sua convicção em presunções simples ou naturais, que extravasaram em muito o que se poderia concluir de forma lógica, segura e objetiva da prova produzida, salvo o devido respeito, o juízo subjacente à Sentença ora em crise, não tem subjacente um nexo preciso, direto e conforme às regras da experiência, entre os factos base e os indícios, que permitisse a exclusão de outras conclusões com igual grau de verosimilhança, como é o caso da versão dos factos apresentada pela arguida;
40 - A recorrente é médica e cirurgiã ortopedista, que sempre tem dado o seu melhor com eficiência, competência e espírito de entreajuda quer no exercício dos seus deveres e atividades profissionais quer no relacionamento humano e solidário que mantém com todas as pessoas que se relacionam no seu dia-a-dia;
41 - A ora recorrente, à data dos factos objeto dos presentes autos, para além do cargo de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes no Hospital …, sito em Aveiro, era médica no serviço de Ortopedia, a função de diretora do serviço de gestão de doentes, é uma função gratuita de nomeação do Conselho de Administração, feita para efeitos de coordenação dos serviços, e para essa função, o Conselho de Administração escolhe o médico competente e respeitado pelos demais colegas e pelos funcionários por forma a esbater o mais possível quaisquer atritos que surjam na interligação entre as várias áreas clínicas e o funcionamento normal do hospital;
42 - Pela análise do organigrama do Hospital …, constante a fls. 2156 dos autos, o “Serviço de Gestão de Doentes”, é um serviço que está apenas diretamente ligado às diversas áreas clinicas, nada tendo que ver com os Serviços de Administração ou menos ainda com o “Departamento de Informação Organizacional”;
43 - A recorrente, nenhuma interferência, nem interesse tinha, teve ou tem nos resultados económicos, financeiros ou administrativos do Hospital …, facto a que foi totalmente alheia, e o único objetivo que tinha e tem num hospital é os doentes serem o mais bem tratados possível, e obter bons resultados clínicos, não tendo qualquer intervenção em termos do tratamento de dados informáticos daquele hospital, aliás a recorrente não possui sequer conhecimentos informáticos para tal;
44 - O que por si só redunda na impugnação do facto 2.1.8. dado por provado, na sua qualidade de diretora do serviço de gestão de doentes, a recorrente tem o direito de exigir do pessoal administrativo, no que toca à gestão de doentes, e sem que isso represente uma relação hierárquica vinculativa e funcional, o cumprimento das obrigações que forem mais eficazes e eficientes à gestão do serviço, veja-se o depoimento da arguida B… (Cfr. Acta da Audiência de Julgamento de 04.07.2014 e ficheiro 20140704101905_738115_1498370 de 03:39 a 05:19;
45 - Impugnando-se ainda especificadamente os factos dados como provados nos pontos 2.1.10., 2.1.11., 2.1.12., 2.1.14. e 2.1.15., de facto, é totalmente falso que a recorrente tenha alguma vez dado ordens a quem quer que fosse para converter episódios de doentes operados em regime ambulatório, para episódios de internamento;
46 - Na verdade, o depoimento e a versão dos factos apresentada pela arguida, ora recorrente foi totalmente desvalorizada pelo Tribunal a quo, em clara e manifesta violação do preceituado no artigo 127º do CPP, tratando-se de uma versão lógica, credível e plausível e corroborada pelo depoimento das testemunhas, veja-se ainda a este propósito o depoimento da arguida (Cfr. Acta da Audiência de Julgamento de 04.07.2014 e ficheiro 20140704101905_738115_1498370 de 15:30 a 16:48; 28:58 a 29:32; 33:00 a 34:03;
47 - Ainda no que a tais factos se reporta, as declarações prestadas pela testemunha M…, em sede de Audiência de Julgamento, revelam-se pouco claras, revelando a testemunha falta de convicção, certeza e assertividade ao que lhe estava a ser perguntado, quanto às alegadas ordens que lhe terão sido dadas pela arguida, veja-se: (Cfr. Acta da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707101230_738115_1498370 de14:30 a 14:42; 16:51 a 17:58; 32:03 a 33:28; 40:19 a 40:59;
48 - Todas as testemunhas inquiridas quando confrontadas com a pergunta – Se alguma vez receberam ordens por parte da Dra. B…, para alterar/remover/deturpar dados referentes a atos cirúrgicos – afirmaram peremptoriamente nunca terem recebido da parte da arguida instruções nesse sentido, nem nunca viram a arguida a “mexer” no sistema informático no que se reporta à gestão de doentes, afirmando claramente que a arguida não tinha sequer conhecimentos informáticos para tal, veja-se a este propósito o depoimento da testemunha F… (Cfr. Ata da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707141903_738115_1498370 de 07:56 a 08:53; o depoimento da testemunha G… (Cfr. Ata da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707150151_738115_1498370 de 03:49 a 04:41; 05:38 a 06:13; o depoimento da testemunha H… (Cfr. Ata da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707143923_738115_1498370 de 04:57 a 05:47;
49 - Da análise atenta dos presentes depoimentos, prestados em sede de audiência de julgamento seremos necessária e forçosamente uma vez mais levados a concluir que o Tribunal a quo, revela clara e inequivocamente que se limitou a proferir uma decisão, baseada meramente na acusação, revelando um total e absoluto desconhecimento dos autos, não valorando devida e convenientemente toda a prova documental contida nos autos, bem como, toda a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento;
50 – O Tribunal a quo, ao dar como provados os fatos 2.1.20, 2.1.21, 2.1.22 que desde já se impugnam, e como não provados os factos 2.2.1., 2.2.5 e 2.2.6, revela-se numa clara e manifesta contradição insanável entre os fundamentos e a decisão proferida pelo Tribunal a quo, o que desde já se impugna;
51 - Relativamente a tais fatos veja-se o depoimento da testemunha I…, então Presidente do Conselho de Administração, à data dos fatos a que se reportam os presentes autos, (Cfr. Acta da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707113412_738115_1498370 de 07:30 a 11:52;
52 - Face ao teor do contrato programa que, objetivamente, estabelece que o valor unitário pago por cada cirurgia, quer ela seja em ambulatório, quer seja em internamento, é exatamente igual, o mesmo valor, não se percebe como é que o Tribunal a quo dá como provado, este diferencial de faturação, e ao mesmo tempo, na fundamentação da decisão refere o seguinte: “Não se pode assim afirmar, para além de qualquer dúvida razoável, que tenha existido um efetivo prejuízo dos alegados ofendidos… Por todas estas razões não está demonstrado que tenha havido de facto um concreto prejuízo para o SNS, na justa medida da apontada diferença de preços, e para os demais subsistemas de saúde aqui em causa”;
53 - Não se percebe uma vez mais, como é que o Tribunal a quo, dá como provados fatos, quando nenhuma testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento se refere a tal matéria ou demonstra ter sequer conhecimento direto ou indireto acerca de uma eventual faturação, para além de existirem nos autos documentos com força probatória plena, que provam a inexistência de qualquer diferencial de faturação, estando uma vez mais, o Tribunal a quo, a violar os mais elementares Princípios de Direito de subjazem à apreciação e valoração da prova em Direito Penal, em clara e manifesta violação da credibilidade e garantia de defesa de um cidadão em pleno Estado de Direito Democrático;
54 -Termos em que, pugna-se pela substituição da Sentença em crise por outra que absolva a Arguida da prática de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 4º, n.ºs 1 e 3 da Lei da Criminalidade Informática, na redação introduzida pela Lei n.º 109/91 de 17 Agosto, e alterada pelo Decreto Lei n.º 323/2001 de 17 de Dezembro sob pena de violação do princípio in dubio pro reo, que é limite das presunções judiciais que sustentam a condenação, com as legais consequências daí decorrentes.
O Ministério Público junto da 1ªinstância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.3242 a 3247].
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º n.º1 do C.P.Penal, a Exma. Procuradora emitiu parecer em que se pronunciou pelo não provimento do recurso [fls.3270 a 3279].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
A sentença recorria deu como provados e não provados os seguintes factos e respetiva motivação:
«2.1. Factos provados
2.1.1. O Hospital Infante D. Pedro, situado em Aveiro, foi transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos por força do Decreto-Lei n.º 272/2002, de 09.12, que entrou em vigor a 10.12.2002, sendo posteriormente transformado em entidade pública empresarial pelo Decreto-Lei n.º 93/2005, de 07.06,
2.1.2. O modelo de financiamento do Hospital Infante D. Pedro, S.A., assentou na celebração de um dito contrato programa com o Estado - Ministério da Saúde - através do IGF (Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde).
2.1.3. Assim, mediante a outorga daqueles contratos, era por aí determinada a quantidade e qualidade da produção a realizar pelo Hospital e o respetivo preço a faturar ao SNS (Serviço Nacional de Saúde) ou subsistemas de saúde, nomeadamente à ADSE (Assistência na Doença dos Servidores do Estado) e à ADMG (Assistência na Doença aos Militares da Guarda).
2.1.4. Para tanto eram fixados previamente objetivos para cada linha de produção hospitalar (internamento, cirurgia ambulatória, consulta externa, urgência, hospital de dia, serviço domiciliário).
2.1.5. Quanto ao respetivo preço, era fixado com base no grupo hospitalar em que a unidade de saúde estava integrada (O Hospital …, S.A., era e é um Hospital Distrital) e atendendo à realidade efetivamente realizada, ou seja à qualidade e quantidade das prestações de cuidados de saúde nos termos estabelecidos pela Portaria 189/2001, de 09.03, e posteriormente pela Portaria 132/2003, de 05.02.
2.1.6. A arguida B… era e é médica no Hospital em referência, encontrando-se submetida ao regime dos trabalhadores que exercem funções públicas e tendo tomado posse como assistente hospitalar da especialidade de ortopedia do quadro de pessoal a 23.02.2000, tendo ainda desempenhado as funções de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes entre Maio de 2004 e Outubro de 2005.
2.1.7. Durante o período temporal em que desempenhou as funções de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes, C…, J…, K… e L… exerceram funções de assistente administrativa no Gabinete de Codificação Clinica, enquanto M… e N… eram e são secretárias clinicas, respetivamente (Especialidades Cirúrgicas) nos Serviços de Oftalmologia e de Ortopedia.
2.1.8. Estando aqueles no aludido período hierarquicamente subordinados à arguida.
2.1.9. Competia-lhes, entre outras matérias, registar no sistema informático geral de doentes em uso naquele Hospital, denominado «E…», todas as consultas, urgências, internamentos e exames de diagnóstico relativos a cada doente, sendo que este sistema informático estava em rede com um outro denominado «Integrador - GDH», o qual definiria em termos operacionais a produção do Hospital, agrupando os doentes em grupos de diagnósticos homogéneos (GDH) em função de diversas variáveis, nomeadamente o diagnóstico principal e secundário, complicações procedimentos clínicos, idade, sexo, de forma a consolidar uma coerência do ponto de vista clinico e de consumo de recursos.
2.1.10. No dia 26 de Outubro de 2004, a arguida, na qualidade de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes, ordenou verbalmente ao funcionário C… que este imprimisse a lista de doentes intervencionados naquele Hospital às Cataratas entre os dias 01.09.2004 e 26.10.2004 e que removesse do sistema informático a menção ao regime de cirurgia ambulatória que teria sido realizada, visando que aqueles episódios viessem a ser inseridos mais tarde no sistema com a menção de internamento cirúrgico.
2.1.11. Perante as reservas suscitadas pelo referido funcionário, a arguida tomou aquela lista impressa em suporte de papel, conforme documentada a fls.7 dos autos e, pelo seu punho, nela anotou o seu nome e apôs a data 26.10.2004, ratificando os procedimentos informáticos a observar naquele concreto caso e que foram ali colocados pelo punho do referido funcionário.
2.1.12. Entregando tal documento ao referido funcionário e reiterando que se tratava de uma ordem a observar e a que devida obediência, o que aquele acabou por acatar, retirando do sistema informático 20 dos 23 episódios constantes da lista.
2.1.13. No seguimento deste episódio, a arguida incumbiu a funcionária J… de proceder doravante à elaboração das listas de doentes a aguardar cirurgia, função até então atribuída ao referido funcionário C…, designando também a funcionária L… daquele Gabinete de Codificação para a auxiliar nessa tarefa.
2.1.14. Em data não concretamente apurada do ano de 2004, a arguida, mais uma vez na qualidade de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes, ordenou verbalmente à funcionária M… para que daí em diante procedesse à inscrição do regime de internamento no sistema informático, por si ou por intermédio de terceiros, não obstante estarem de facto em causa cirurgias oftalmológicas realizadas em ambulatório, tendo esta obedecido e passado a executar desta forma.
2.1.15. Procedimento que vigorou enquanto a arguida exerceu funções de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes.
2.1.16. Desde 1 de Setembro de 2004 e 31 de Outubro de 2005 realizaram-se no Hospital …, S.A., pelo menos 168 cirurgias relativas a cataratas, túnel cárpico e procedimentos em tecidos moles.
2.1.17. Dos quais em dois daqueles casos os pacientes ficaram efetivamente internados naquela unidade hospitalar, já que as demais cirurgias foram realizadas em regime de ambulatório o que quer significar que os pacientes entraram e saíram no mesmo dia em que foram operados.
2.1.18. Em virtude dos referidos funcionários terem observados as ordens indevidamente emanadas pela arguida nas aludidas circunstâncias, enquanto sua superiora hierárquica ou pelo menos assim havida por estes, foram introduzidos e modificados dados no sistema informático que serviram de base mais tarde à emissão de faturas e cobrança dos respetivos preços ao SNS e aos subsistemas ADSE e ADMG.
2.1.19. Violando a arguida com esta sua atuação os deveres de isenção, zelo e lealdade a que estava obrigada e de que era capaz e comprometendo com aquele ato a lisura da prossecução do interesse público e a sua imagem enquanto agente da função pública que é, bem sabendo que aquela conduta era proibida e punida por lei criminal.
Concretizando,
2.1.20. Relativamente ao ano de 2004, foram faturados pelo Hospital …, S.A. ao SNS 41 (quarenta e um) internamentos cirúrgicos pelo valor global de 67.655,61 €, quando se tivessem sido faturados como cirurgias ambulatórias que foram o valor seria de 43.827,55 €; e ao subsistema ADSE 2 (duas) cirurgias de cataratas, em regime de internamento, pelo valor global de 3.461,30 €, quando se tivessem sido faturadas como cirurgias de ambulatório que foram o valor seria de apenas 1.711,26 €.
2.1.21. Relativamente ao ano de 2005, foram faturados pelo Hospital …, S.A. ao SNS 115 (cento e quinze) internamentos cirúrgicos pelo valor global de 267.147,80 €, quando se tivessem sido faturados como cirurgias ambulatórias que foram o valor seria de 152.488.81 €; e ao subsistema ADSE 6 (seis) cirurgias das quais 1 (uma) ao túnel cárpico e as demais às cataratas, todas elas em regime de internamento, pelo valor global de 9.840,63 €, quando se tivessem sido faturadas como cirurgias de ambulatório que foram o valor seria de 5.114,81 €.
2.1.22. Nesse mesmo ano, foi faturado pelo Hospital …, S.A. ao subsistema de saúde ADMG 1 (uma) cirurgia de cataratas, em regime de internamento, pelo valor de 1.730,65 €, quando se tivesse sido faturado como cirurgia em ambulatório que foi o valor seria apenas de 855,63 €.
(mais se provou ainda que:)
2.1.23. A arguida nasceu a 26 de Março de 1963 e é a quinta de uma fratria de nove irmãos; o pai era caixeiro-viajante e a mãe doméstica; a sua infância foi passada com todos aqueles membros do seu agregado familiar; completou o 12.º ano de escolaridade numa escola secundária em Espinho e ingressou mais tarde na Faculdade de Medicina …; casou com 20 anos de idade e não trabalhou enquanto frequentou o ensino superior; tem dois filhos com 31 e 25 anos de idade e a filha mais nova mora consigo; está divorciada e o ex-marido era eletricista; efetuou o internato geral no Hospital de Gaia e o internato complementar no Hospital de Aveiro; é atualmente assistente hospitalar graduada da especialidade médica de ortopedia; vive em casa própria; possui um empréstimo para aquisição de casa no valor de 1.000,00 € por mês e outro empréstimo para aquisição de viatura própria no valor de 200,00 € mensais; do exercício público e privado da sua atividade médica retira cerca de 3.800,00 € de rendimentos líquidos por mês;
2.1.24. Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida.
2.1.25. A arguida é havida por alguns dos seus colegas, funcionários e pelos seus amigos como sendo uma pessoa educada, disponível, frontal e profissionalmente dedicada à medicina e ao exercício da causa pública e trabalhadora.
2.2.2. Factos não provados
2.2.1. Em data não concretamente apurada do mês de Outubro de 2004, a arguida tenha formulado o propósito concretizado de converter para efeitos administrativos as intervenções realizadas no Hospital …, S.A., em regime ambulatório em intervenções com Internamento com vista apenas a vir a faturar ao SNS e aos subsistemas de saúde ADSE e ADMG um preço mais elevado que o devido e obter por esta via e para aquela unidade Hospitalar proveitos económicos que sabia serem ilegítimos.
2.2.2. Em conformidade com este plano ordenou às funcionárias administrativas J…, L… e N… que transformassem as cirurgias ambulatórias informaticamente registadas em episódios de internamento para efeitos administrativos.
2.2.3. Que a arguida tenha aposto pelo seu punho no documento constante de fls.7 os dizeres «desagrupar para transferência em internamento.», «Remover», «Removido = R», «R.» «facturado à ADSE». 2.2.4. Que o SNS e os subsistemas de saúde ADSE e ADMG tenham procedido ao pagamento do preço que lhes foi faturado correspondente ao acréscimo que decorreu da ilegítima transmudação das cirurgias oftalmológicas (cataratas) e ortopédicas (túnel cárpico) efetivamente realizadas em regime de ambulatório em intervenções em internamento nos termos referidos a 2.1.20. a 2.1.22.
2.2.5. Porquanto confiaram que os valores faturados correspondiam à linha de produção efetivamente levado a cabo pelo Hospital, em especial no que diz respeito à sua qualidade.
2.2.5. A arguida tenha atuado em todas as circunstâncias dadas como provadas com o propósito concretizado de obter para o Hospital um enriquecimento ilegítimo no valor global de 145.837,93 €, correspondente a um empobrecimento do SNS e dos subsistemas de saúde ADSE e ADMG, respetivamente, em idêntico valor globalmente considerado, pela orientada manipulação dos episódios que subjazem a cada fatura imputada ao respetivo responsável civil.
2.2.6. Levando aquele Serviço e subsistemas de saúde, iludidos com a encenação por si realizada e convictos da autenticidade dos dados constantes do sistema informático, a pagar aqueles episódios como cirurgias de internamento, a fim de obter para o Hospital Infante D. Pedro, S.A., um enriquecimento que sabia ilegítimo e correspondente ao diferencial do valor existente entre os dois tipos de cirurgia e á custa do correspondente prejuízo patrimonial daquelas entidades.
2.3. Da motivação
2.3.1. O artigo 127.º do Código de Processo Penal (CPP) estatui que a prova seja apreciada pelo julgador à luz das regras da experiência comum e da sua livre convicção, o que pretende significar que o julgador é livre de decidir a causa segundo imperativos de bom senso e as regras da experiência comum, claro está, tendo presente a sua capacidade crítica e o distanciamento e ponderação que se impõem no ato de julgar.
De acordo com o enunciado princípio da liberdade da prova o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos que são submetidos à sua apreciação com base em juízos que se fundem no mérito objetivamente concretizado na sua individualidade histórica tal qual foi exposta e adquirida, de forma válida, no processo (art.355.º do CPP).
2.3.2. Posto isto, vejamos o contributo de cada meio de prova para a consignação dos factos que antecedem e que foram julgados provados e não provados de entre os meios de prova indicados na acusação; pela defesa e carreados para os autos na fase da instrução do processo.
O primeiro grupo de factos atinentes (2.1.1. a 2.1.5.) à constituição do Hospital …, em Aveiro, em sociedade anónima detida integralmente por capitais públicos e ao subsequente modelo de financiamento e seus critérios operativos foram valorados, como não poderia deixar de ser, os diplomas legais que aí são mencionados a respeito de tais matérias e ainda os contratos programas celebrados por aquela instituição de saúde nos anos de 2004 e de 2005 com o Ministério da Saúde, melhor documentados a fls.941 e ss., e o relatório e contas respeitante a esses mesmos dois anos, mas não acompanhado do Visto do tribunal de Contas, onde se mostra enquadrada a figura jurídica do Hospital e o seu respetivo organigrama (fls.2160/1 e 2198 a 2200, e ainda o de fls.2205/6 e 2235 e 2236).
Para além disso tais matérias foram parcialmente corroboradas e nalguns casos até enquadradas pelos depoimentos de D… (administrador Hospitalar e Presidente do Conselho de Administração do Hospital …, S.A., entre Novembro de 2005 e Agosto de 2008, que denunciou os factos que conduziram à instauração deste processo) e I… (consultor na área da saúde e ex-Presidente do Conselho de Administração do Hospital …, S.A., entre 14.08.2002 e 31.12.2004, embora em gestão até à tomada de posse daquela outra testemunha) que, aqui e ali, com maior ênfase para esta última testemunha, se reportaram a estas matérias de forma convergente com aqueles diplomas legais e demais documentos retro aludidos.
O facto dado como provado em 2.1.6. decorre das declarações prestadas pela arguida a este respeito e no sentido dado como provado, sem que exista qualquer prova documental ou outra que infirmasse aquelas suas declarações. Mostra-se igualmente corroborado pelas demais testemunhas ouvidas, que com aquela, direta ou indiretamente, trabalharam (e ainda trabalham) naquela mesma unidade de saúde e que o confirmaram. Neste particular demos destaque quanto à data da tomada da sua posse e à sua categoria profissional ao testemunho de O… (médico patologista clinico, aposentado desde 31 de Janeiro de 2007, tendo trabalhado durante cerca de 30 anos no Hospital …, e que teve em tempos idos a arguida, que entretanto se tornou sua amiga, como sua interna) e quanto às funções de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes e ao período em que exerceu aquelas mesmas funções aos depoimentos convergentes das testemunhas D… e I…, ex-presidentes do Conselho de Administração do Hospital entretanto redenominado de Baixo Vouga, E.P.E., com especial destaque para este último que indigitou a arguida para o lugar sob recomendação de um dos seus Diretores de Serviço. E ainda aos testemunhos convergentes de C…, J…, L…, M…, N…, F…, P…, H…, Q…, G… e S…, todos eles funcionários daquela Unidade de Saúde e que trabalharam e/ou trabalham diretamente com a arguida e que o especificaram.
Os factos dados como provados a 2.1.7. decorrem dos depoimentos seguros, sinceros e escorreitos que a este propósito foram prestados pelos próprios visados naquele concreto ponto, a saber C… (casado, funcionário daquele Hospital e a prestar serviço no Gabinete de Codificação desde meados de 1989), J… (casada, assistente técnica daquele Hospital desde meados de 1993/4, que no ano de 2004/5 exerceu funções administrativas no âmbito da admissão de doentes), L… (solteira, assistente técnica naquele Hospital desde 1999, que no ano de 2004/5 estava a trabalhar no Gabinete de Codificação), M… (solteira, assistente técnica naquele Hospital há cerca de 21 anos e que no ano de 2004/5 estava a trabalhar como secretária clinica no Serviço de Oftalmologia) e N… (divorciada, assistente técnica naquele Hospital desde 1987, que no ano de 2004/5 esteve a trabalhar como secretária clinica no Serviço de Ortopedia).
Os seus depoimentos foram em todos os momentos, nesta matéria, congruentes entre si e por outro lado consentâneos com as funções por cada um deles exercidas à data e que também foram confirmadas pela arguida, quando se referiu a cada uma daquelas pessoas nas suas declarações, como ainda pelos demais funcionários daquele Hospital que foram sendo ouvidos e que jamais puseram em causa que aquelas pessoas exercessem de facto aquelas funções naquele Hospital e nas concretas datas em que o disseram ter feito.
Quanto ao âmbito funcional de cada um daqueles funcionários e sua interligação com os sistemas informáticos em uso naquele Hospital à data dos factos decorre do depoimento que cada um deles prestou a este respeito, sem que resultem quaisquer incongruências sobre esta matéria em respaldo com o relatório pericial realizada ao sistema informático em uso naquele Hospital e esclarecimentos complementares de documentados nos autos (art.163.º do CPP). Razão pela qual se deu como provado o facto vertido em 2.1.8..
Os factos que se mostram vertidos no ponto 2.1.9. a 2.1.18. e que sumariza no fundo os atos materiais dos dois crimes de que se mostra incursa foram sempre negados pela arguida que recusou de forma veemente qualquer responsabilidade pelo cometimento dos factos de que se mostra acusada. Alegando em sua defesa, quiçá em busca de uma explicação plausível e alternativa para alguns dos factos que lhe são imputados sem colher integralmente como se verá, que no âmbito da atividade cirúrgica seria usual que os pacientes submetidos a cirurgias oftalmológicas ou ortopédicas em regime de ambulatório (cirurgias ditas programadas, em especial às cataratas e túnel cárpico) fossem intervencionados e sofressem subsequentemente necessidade de internamento por força de complicações clinicas concomitantes ou posteriores à intervenção ou por quaisquer outras razões atinentes à saúde do paciente, conexas ou não com a cirurgia, atendíveis, que justificassem que passassem a noite no Hospital em regime de internamento e sob observação médica.
O que a acontecer justificaria a transmudação de uma intervenção médica originária de ambulatório para internamento. A dúvida existencial, se assim se pode dizer, no confronto com os 168 casos que aqui se tratavam apenas em 2 teve integral respaldo.
Até aqui tudo correto e compreensível à luz das regras estabelecidas para o setor de atividade médico e até das mais elementares regras da experiência e da lógica – com recurso à figura da alteração superveniente dos pressupostos do ato médico prestado – ou até dos protocolos outorgados no ano de 2004 e 2005 entre o Ministério da Saúde e o Conselho de Administração do Hospital …, S.A., onde a arguida exercia as funções Diretora da Gestão dos Doentes em acumulação com as de médica assistente de ortopedia, qualidade que ainda hoje assume naquele Hospital, que previa de forma expressa esta situação.
Terá então sido demonstrado, como se impõem de acordo com as regras probatórias que presidem à natureza deste processo, que a arguida ordenou dolosamente a transmudação de casos de cirurgias ambulatórias em cirurgias em regime de internamento com vista a desta forma induzir os serviços de faturação daquele Hospital em erro e consequentemente obter dos responsáveis pelo pagamento dos serviços prestados proventos a que não tinha direito na justa proporção da diferença de preço operada?
Resulta a nosso ver que a arguido deturpou conscientemente a realidade contabilística do Hospital e que tinha conhecimento das implicações que tal circunstância poderia ter. No sentido que esta voluntariamente procedeu à deturpação da realidade de dois tipos de intervenção cirúrgicas, pelo menos, no âmbito da cirurgia oftalmológica e ortopédica, que não tinham tido lugar nos moldes em que ordenou (internamento) que passassem a ser registados para efeitos internos.
Em primeiro lugar cumprirá explicar como é que à data dos factos se processava a tramitação interna e documental respeitante a um paciente que fosse intervencionado em regime de ambulatório e/ou em regime de internamento.
- O paciente operado em regime de ambulatório apresentava-se no dia da cirurgia, efetuava os exames complementares que fossem necessários se já não os tivesse feito em data anterior, era intervencionado da parte da manhã (por regra) e teria alta médica a partir da hora de almoço se tudo corresse como era suposto.
- O paciente operado no seguimento de internamento poderá corresponder a uma situação de urgência (não programa) e poderá decorrer de uma indicação médica de qualquer especialidade, em especial do serviço de consultas externas ou das urgências.
- Em qualquer um dos casos era preenchida uma folha designada de admissão e alta (doc. a fls.46), em formulário único (á data), onde se colocavam os elementos de identificação do paciente e o respetivo verbete respeitante ao episódio em causa que era colocado no canto superior esquerdo da folha. Assinalava-se ainda numa quadrícula existente no ponto 7 do formulário a natureza da admissão, se programada ou não, correspondendo a primeira a um ambulatório (ou pela colocação do símbolo de uma arroba, isto é, o sinal @).
- Realizada a cirurgia às cataratas ou ao túnel cárpico, conforme o caso, a prática instituída era a de dar imediatamente alta médica ao paciente. Nesta altura se o paciente tivesse sido admitido em regime de ambulatório o sistema informático (E…) e o seu processo clinico apenas evidenciaria aquele ato cirúrgico que seria passado algum tempo da alta remetido ao Gabinete de Codificação, após passar pelos médicos codificadores, por meio da dita ficha de admissão, verbete e alta médica.
- Nesta altura os funcionários codificadores iriam conciliar os dados respeitantes aos atos médicos praticados em relação a cada paciente e aos demais consumíveis previamente classificados em GDH e lançá-los noutra plataforma informática do IGIF com vista a remeter tal informação integrada ao serviço de faturação e a esta entidade e aos responsáveis pelos pagamentos dos serviços prestados para liquidação nos termos protocolizados – cfr. lista de doentes reduzida de fls.7.
- Importava saber se o paciente tinha dado entrada no Hospital em regime de ambulatório ou internamento para saber onde é que os dados estariam alojados no Sistema Informático (vide perícia de fls. 2434 e ss e demais esclarecimentos complementares de fls.2463 e ss.).
- Depois de devidamente faturado pela secção responsável à entidade responsável pelo pagamento do serviço prestado o sistema informático em uso no Hospital não permitia mais alterar os dados que subjazem ao GDH lançado. Mas antes desse momento crítico poderia ser gerado a respeito de cada paciente intervencionado um novo episódio e classificá-lo como de internamento quando havia sido operado em regime de ambulatório e gerar assim um novo e correspondente GDH – vide a perícia supra citada.
- Esta nova inserção de dados poderia ser feita no serviço de cirurgia existente nas respetivas especialidades cirúrgicas que estivessem em causa e/ou nas que prestavam serviço na admissão de pacientes, como no Gabinete de Codificação ou Departamento Informático que teriam as permissões de segurança mais elevadas.
- Conclusão o sistema informático em uso à data era falível porque consentia na alteração de dados até à integração do GDH e sua faturação, pelo menos, o que implicava, em regra, a anulação de todo o registo informático do doente em causa (ambulatório) e a criação de novo registo informático a que os documentos internos – folha de admissão e alta – seriam «afeiçoados», conciliados com a colocação de um novo verbete sobre o anterior de ambulatório; com a rasura (grosseira) da data de entrada (antecedendo a da intervenção) em alguns casos ou com a elaboração de um novo documento que evidenciasse de forma não truncada tudo isto, embora se tivesse de mantiver sempre o documento médico a conceder a alta clinica e que invariavelmente - em quase todos os casos registados nos apensos I e II - fazia coincidir o dia da alta clinica com o da cirurgia em causa ao contrário da informação constante da folha de admissão.
Em segundo lugar da perícia colegial realizada nos autos (fls.776 e ss.) conclui que apenas em dois casos se registou que pacientes admitidos para uma cirurgia programada tiveram necessidade de ficar internados para o dia seguinte, já que nos demais casos os pacientes terão entrado e saído do Hospital no mesmo dia em que foram operados, em linha, aliás, com as leis da arte (cirurgias ditas limpas, sendo que a título de exemplo a intervenção ao túnel cárpico demandaria cerca de 10 a 15 minutos de bloco operário, segundo declarou a arguida) e práticas médicas observada nas cirurgias às cataratas e ao túnel cárpico (bem como às datas apostas nas altas médicas).
Este meio de prova (perícia) assentou em depoimentos diretos dos pacientes em causa ou dos familiares que os acompanharam nesses dias (no caso dos que entretanto faleceram ou não se mostravam disponíveis) e também no cruzamento destas informações com os registos clínicos dos pacientes em questão e valoração das consequentes informações da enfermagem (se uma pessoa fica internada terá de existir o registo de uma cama/maca disponível; o sector onde fez o recobro; a identificação do enfermeiro responsável e os cuidados de alimentação e de higiene que são registados na ficha clinica, para além dos de saúde que teriam justificado o internamento, e que nestes casos inexistiam). Isto para concluir que resulta de uma forma a nosso ver clara que aquelas pessoas não foram internadas de facto como dos seus registos de admissão e alta passou a constar. E se assim é não poderia a arguida ordenar uma alteração administrativa desta realidade de facto como o fez sem qualquer margem para dúvida em relação aos pacientes documentados a fls.7, quando, ordenou que o seu processo originário fosse anulado.
Em terceiro lugar há que atentar no depoimento da testemunha C…, responsável pelo Gabinete de Codificação do Hospital à data dos factos e atualmente ainda, que por referência ao documento de fls.7 explicou de forma circunstanciada que na data que se mostra aposta no documento recebeu uma ordem verbal da arguida, esta na qualidade de Diretora da Gestão dos Doentes e ele como funcionário administrativo, no sentido de emitir uma lista dos doentes intervencionados em cirurgia oftalmológica em regime de ambulatório entre os dias 1 de Setembro e 26 de Outubro de 2004, o que aquele observou de imediato, após o que lhe ordenou que removesse cada um dos registos informáticos para que pudessem vir a ser registados como episódios de internamento.
Questionando a legitimidade da ordem que lhe estava a ser dada solicitou à arguida, enquanto sua superiora hierárquica, que apusesse o seu nome e a data a seguir à ordem que estava a dar e que aquele (C…) apôs pelo seu punho antes daquela assinar («desagrupar para transferência em internamento.», «Remover» e «R.»).
A arguida não deu qualquer explicação (ou sequer tentou) para ter aposto a sua assinatura e data no referido documento, que reconhece ser sua (tal como as perícias efetuadas à sua letra pelo LIC da PJ atestam) o que muito se estranha, ao contrário daquela testemunha que o fez e cuja versão dos factos surge como bastante credível e plausível à luz do encadeado de toda a prova e da forma circunstanciada, distanciada e sincera como depôs (discurso direto, nada emotivo, respondendo ao que sabia e não se pronunciando sobre o que não tinha conhecimento direto). Pois que de facto, e como se pode constatar dos depoimento ouvidos a respeito do «expurgo das listas de espera» que era matéria da responsabilidade funcional da arguida, os funcionários clínicos e administrativos deviam e mostravam obediência às ordens verbais emanadas nesta matéria pela arguida que, por sua vez, conhecedora dos poderes funcionais de que estava investida (na qualidade de gestora dos doentes) não se inibia de os exercer para levar a cabo aquela que considerava ser a sua missão (e que aqui não era sequer objeto da acusação crime). Pelo que é com naturalidade que se constata existir uma assunção e aceitação entre arguida e funcionários desta relação hierarquizada (concretizada na afetação das concretas funções dos funcionários da Codificação e de procedimentos internos a observar pelos administrativos no registo dos atos clínicos e das práticas a observar sobre esta matéria).
A não identificação desta testemunha com a forma de trabalhar da arguida, como o próprio explicou, levou a que não mais procedesse a atos como aqueles que diz ter feito a respeito da lista documentada a fls.7 (sua eliminação), funções que a arguida (re-) afetou às suas outras duas colegas em especial á J… que ficou incumbida dos expurgos da lista de espera, conforme esta confirmou no seu depoimento e a colega de ambos, L…, o corroborou também.
Em quarto lugar a testemunha M… (amiga da arguida, assistente técnica desde há 21 anos no Hospital do Baixo Vouga, EPE, e que no ano de 2004/5 estava colocada nas especialidades cirúrgicas) referiu de forma circunstanciada e segura que a arguida em data que não se consegue recordar – mas enquanto aquela exerceu as funções de Diretora de Gestão de Doentes daquele Hospital - lhe ordenou verbalmente que todos os doentes de oftalmologia com indicação para cirurgia ambulatória passassem a ser registados como se de um internamento se tratasse.
Questionada a esse respeito a arguida refutou dizendo que a ordem era para cumprir. Comentou o sucedido com a testemunha C… que a aconselhou a tirar cópia de todas as etiquetas/situações de falsos internamentos para se precaver e que se mostram documentados a fls.8 e ss., que esta confirmou em audiência, explicando as alterações que teriam sido alvo por referência às fichas de admissão e alta correspondentes existentes no apenso I e II.
Mais confessou ainda a testemunha que a ordem foi sendo por si executada sem nunca comunicar ao seu Diretor de Serviços.
Explicou ainda que com a ordem dada sempre que o paciente faltava à cirurgia, o que acontecia de vez em quando, obrigava ao anulamento informático do registo do internamento em causa porque reportado sempre ao dia imediatamente anterior ao da cirurgia programada que por sua vez também não tinha lugar.
Seja como for em circunstância alguma a arguida reconheceu ter dado tais ordens e acima de tudo algum funcionário – quiçá temendo a sua própria responsabilidade, o que se compreende – assumiu ter levado a cabo a necessária introdução de um novo episódio do paciente no sistema E…, mas desta feita no regime de internamento, sob indicação da arguida, o que seria necessário fazer para que o resultado da faturação subsequente e o prejuízo lhe viesse a ser imputado a título de crime de burla.
A arguida não tinha, tanto quanto resultou do julgamento, acesso direto (password) àqueles dois sistemas informáticos, pelo que seriam os funcionários da cirurgia, admissão de doentes, da codificação e os informáticos a proceder aos necessários inputs e outputs.
Posto isto, e aqui chegados, forçoso será concluir que os demais testemunhos ouvidos sobre esta matéria – quase todas as indicadas pela defesa - negaram ter conhecimento de eventuais desconformidades na faturação de episódios cirúrgicos em linha de produção hospitalar distintas internamento e ambulatório, nas especialidades cirúrgicas de Oftalmologia (catartas) e Ortopedia (túnel cárpico) – aquelas aqui em causa – com base em diretrizes verbais da arguida, na qualidade de Diretora de Gestão de Doentes, e na transformação de cirurgias de ambulatório em cirurgias de internamento, não tiveram a virtualidade de infirmar aqueles depoimentos e demonstrações documentais em sentido diverso.
Em primeiro lugar estes depoimentos não descredibilizam a nosso ver, de modo algum, os depoimentos convergentes e credíveis das testemunhas C… e M… que afirmam ter recebido ordens nesse sentido (aquele de retirar aquela integração de GDH do sistema – fls.7 e esta de passar a internar ficticiamente os pacientes oftalmológicos de véspera à cirurgia ambulatória) e cujos depoimentos tiveram integral respaldo no documento de fls.7, quanto à primeira testemunha, e nos documentos de fls.8 a 45 quanto à segunda testemunha entrecruzado com os demais documentos reunidos no Apenso I e II no que concerne às intervenções cirúrgicas às cataratas.
Em segundo lugar existem outros elementos corroboradores externos e isentos como seja o depoimento das testemunhas J…, L… e N… que embora negando que alguma vez a arguida lhes tenha feito as solicitações que fez àquelas duas outras testemunhas, mostraram conhecer as ordens que aquelas receberam da parte da arguida, dadas na qualidade de Diretora da Gestão de Doentes, por lhe haver sido contado, nem que não seja, por aquelas testemunhas, como as mesmas reconheceram em audiência.
Em terceiro lugar e acima de tudo, os depoimentos assim valorados foram sujeitos a um confronto direto com os documentos coligidos nos autos, por um lado, e analisados de acordo com as práticas hospitalares instituídas e com as regras da experiência e uma perícia colegial (de dois – fls.776 e ss.) que tendo por base os elementos de prova e o enquadramento jurídico do sector de atividade em questão elencado nos 11 parágrafos do ponto 1 do relatório pericial, cujo teor dou aqui por integrado, concluíram – com grande ênfase na especialidade médica oftalmológica – que dos 168 episódios descritos nas folhas 174 a 182 do processo, apenas em 2 situações (episódio 5010924 e 5001991) dos 38 casos em que as pessoas afirmavam ter ficado internadas (13 pessoas) ou não se revelava possível confirmar o período de permanência (25 pessoas) naquele hospital é que as pessoas de facto estiveram internadas.
Isto porquanto os Srs. Peritos consultaram os processos clínicos de cada um destes 168 pacientes e concluíram existir naqueles 38 casos desconformidades nos seus processos clínicos porquanto invariavelmente a enfermaria apenas registava o dia da intervenção cirúrgica; a alta médica corresponde ao dia da intervenção cirúrgica e quando o dia da admissão e da alta não coincidem uma delas mostra-se rasurada e em desconformidade com a alta médica – vide quadro de fls.788 a 790.
Por outro lado, se bem que por amostragem, concluíram de igual forma os Srs. Peritos que existia integral convergência entre os depoimentos dos pacientes (130 pessoas) que haviam declarado ter sido intervencionadas no mesmo dia em que saíram do Hospital de Aveiro e o registo de enfermagem respeitante aos internamentos e alta clinica.
Nesta decorrência parece-nos que começando pelo fim resultam demonstrados todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de falsidade informática agravada de que a arguida vem incursa, porquanto atuação que vem sendo descrita foi a causa direta e necessária de enganos nas relações jurídicas ao fazer introduzir, modificar, apagar e suprimir dados do programa informático em uso naquele Hospital, com recurso a funcionários que lhe deviam obediência, interferindo no tratamento informático de dados, quando bem sabia que esses dados ou programas serviam como meio de prova, de tal modo que a sua visualização produzia os mesmos efeitos de um documento falsificado.
Isto sem que naqueles apontados 166 casos, pelo menos, se possa dizer que tenha agido ao abrigo de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da sua culpa.
Mas terá ainda assim a arguida atuada com o propósito concretizado de induzir em erro os vários responsáveis pelo pagamento dos serviços prestados naquele Hospital e naquelas duas especialidades, pelo menos, e obter desta forma um enriquecimento ilegítimo no montante da diferença do preço contratado ou tabelado entre a cirurgia ambulatória e em regime de internamento que transmudou?
Quanto a este propósito são sérias as nossas reservas do ponto de vista objetivo e até ao nível do elemento subjetivo do tipo de crime aqui em causa.
Quanto ao primeiro elemento temos que a astúcia que a acusação imputa à arguida e a que nos temos vindo a referir anteriormente, apesar de idónea em termos abstratos a induzir em erro o sector da faturação do Hospital …, S.A., e consequentemente os responsáveis pelo pagamento dos serviços prestados, no confronto com a faturação, matéria com a qual os alegados lesados teriam tido direto contacto, não nos parece tão linear.
Tendo por premissa base o valor da produção contratada e consequente remuneração nos anos de 2004 e 2005 (vide anexo I de fls.960 e anexo I de fls.1001) temos que naquele primeiro ano o preço de referência da cirurgia era o mesmo (1849,10 €); o número de intervenções contratadas para esse ano em regime de ambulatório (1.179) e de internamento (14.683) diverso, tal como o respetivo coeficiente multiplicador (case-mix = ICM) que era naquele primeiro caso de 0,5781 e no segundo de 0,8924; enquanto no segundo ano se manteve o valor de referência da cirurgia; o número de intervenções contratadas passou respetivamente de 923 e 3.693 cirurgias e uma produção adicional de 151 cirurgias, a um ICM de 0,7171 e 1,2563.
Tal forma de cálculo teve plena tradução nas faturas de fls.182 a 199 emitidas entre 2004 e 2006, pelo que a única questão seria a de em primeiro lugar demonstrar que os 166 casos a que se refere a acusação foram efetivamente faturados nos termos que dela constam e em segundo lugar e em caso de resposta positiva demonstrar o pagamento indevido por parte dos responsáveis civis na justa medida da diferença entre aqueles dois ICM.
Quanto à primeira questão fez-se prova documental em como aqueles 166 caso foram faturados aos respetivos responsáveis pelo pagamento das intervenções como consta na acusação e decorre do devido cruzamento entre as faturas documentadas a fls.3 do Apenso I e as pessoas mencionadas a fls.7 e as vinhetas constantes de fls.8 e ss. do apenso I e II.
Mas já não decorre comprovado em termos documentais que os alegados lesados tenham liquidado efetivamente tais faturas e em particular as daqueles 166 casos ou sequer que os relatórios de prestação e contas respeitante aos anos 2004 e 2005 sejam uma prova cabal da liquidação desses créditos.
Antes pelo contrário as reservas apostas pelo ROC naqueles anos apontam para a existência de créditos por parte do Hospital junto de outras entidades nomeadamente públicas que não se mostram liquidadas ou sequer confirmaram possuir sobre o Hospital tais débitos.
A isso se referiram nos seus depoimentos as duas testemunhas ouvidas a título de ex-presidentes do Conselho de Administração do Hospital …, S.A., a saber, D… e I….
Não se pode assim afirmar, para além de qualquer dúvida razoável, que tenha existido um efetivo prejuízo dos alegados ofendidos, descontado o proveito que tenha ainda assim obtido pelos serviços concretamente prestados.
Mais concretamente a respeito do SNS chega a falara-se de um encontro ou consolidação de contas pelo valor de x, de que forma foi apurada e o que é que abrange, não foi possível a este tribunal descortinar e seria necessário fazê-lo com acuidade para que se pudesse dar como demonstrado o prejuízo.
De outro prisma também não é de todo inviável uma visão da atuação da arguida no sentido da mesma ter sido movida na sua atuação pelo ensejo de ser bem-sucedida na sua missão/função e de combater desta forma as listas de espera de cirurgia sem que tenha sido sua intenção – e estamos perante um crime doloso – prejudicar financeiramente terceiros em detrimento do Hospital.
Porque a ser assim, como defende a acusação, os benefícios diretos iriam todos para uma hipotética «gestão menos ética» assente numa «engenharia financeira» que seria conivente, no mínimo, com o falsear da produção hospitalar cirúrgica com vista a colher maiores dividendos, mas que teria de estar disseminada por outros sectores hospitalares e envolver toda uma rede mais vasta de funcionários e médicos do que a tese da acusação centrada apenas na aqui arguida deixa evidenciar.
Nem constatámos qualquer indício que assim tenha acontecido, convém frisar.
Por todas estas razões não está demonstrado que tenha havido de facto um concreto prejuízo para o SNS, na justa medida da apontada diferença de preços, e para os demais subsistemas de saúde aqui em causa, para que a arguida se tenha comprometido com o crime de burla que se mostra incursa, nem que esta, ainda assim, e no que resulta provado, tenha agido com a vontade concretizada de se aproveitar das fragilidades do sistema informático a que não tinha acesso para desta forma falsear a contabilidade interna do hospital que subjaz à faturação e assim prejudicar patrimonialmente aquelas entidades.
Razões pelas quais foram consignados como não provados os factos constantes do ponto 2.2.
No que concerne aos factos pessoais respeitantes à arguida os mesmos foram dados como provados com base nas suas próprias declarações que à míngua de outros meios de prova que as infirmassem foram a nosso ver julgados credíveis porque consentâneos com o enquadramento social, profissional e familiar.
Para além disso foram ainda valoradas as declarações que a este propósito e no mesmo sentido prestaram as testemunhas I…, T…, U…, F…, P…, H…, Q…, G… e O….
A respeito dos factos em apreço e narrados na acusação pública, com as exceções que pontualmente se indicaram, estas testemunhas revelaram não ter conhecimento direto dos factos em discussão e como não infirmaram ou confirmaram o que quer que fosse, não obstante, aqui e ali, ser evidente a vasta experiência profissional no sector da atividade hospitalar mas que em momento algum fragilizou os depoimentos de C… e de M… ou sequer abalou de forma avalisada o teor da perícia colegial aos sistemas informáticos em uso à data e que consentiam, em suma, a manipulação de dados nos termos dados por assentes.
O mesmo acontecendo quanto ao abono das características pessoais e profissionais da arguida.
Quanto aos seus antecedentes criminais o seu CRC documentado nos autos.»
Apreciação
De harmonia com o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, o âmbito do recurso está delimitado pelo teor das respetivas conclusões, as quais devem sintetizar as razões do pedido, sem prejuízo do tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.40.º n.º2 do C.P.Penal.
No caso vertente, face às conclusões apresentadas, que pecam pela falta de sintetização, afigura-se-nos que as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
- erro de julgamento dos factos provados sob os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 por desconformidade com a prova documental;
- contradição entre os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 e os factos não provados sob os pontos 2.2.1, 2.2.5 e 2.2.6.
- erro de julgamento dos factos provados sob os pontos 2.1.8, 2.110, 2.1.11, 2.1.12, 2.1.14, 2.1.15, atentas as declarações da arguida e das testemunhas F…, G… e H….
- caráter instrumental do crime de falsidade informática face ao crime de burla, pelo que a absolvição quanto a este impõe a absolvição quanto àquele.
- não preenchimento do crime de falsidade informática.
1ªquestão: erro de julgamento dos factos provados sob os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 face à prova documental
Na tese recursiva, os factos dados como provados sob os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 devem integrar a factualidade dada como não provada face à existência das faturas emitidas pelo Hospital de Aveiro durante os anos de 2004 e 2005 ao IGIF e pagas por este, assim como ao teor do contrato programa que estabelece que o valor unitário pago por cada cirurgia, quer seja em ambulatório, quer seja em internamento, é igual. Ou seja, a questão das cirurgias serem feitas em ambulatório ou mediante internamento é uma questão interna do hospital, para fins meramente estatísticos, sem efeito na relação jurídica subjacente. Por outro lado, o documento de fls.7 apresenta contradições que o tribunal não relevou, uma vez que está datado de 26/10/2004 e as cirurgias realizadas em Setembro aí mencionadas, já haviam sido faturadas, pois, de acordo com o contrato programa, as faturas têm de ser enviadas até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram prestados os serviços.
Não assiste razão à recorrente. Vejamos.
Refere o relatório pericial, de fls.776 e ss., que «o preço é ajustado pela estrutura, grupo hospitalar a que o hospital pertence (estão definidos 4 grandes grupos) e pela casuística vezes a quantidade contratada. O ajustamento do preço pela complexidade aplica-se exclusivamente às linhas de produção, internamento, cirurgia de ambulatório e consulta externa», constituindo variáveis de remuneração: a variável de medida (número de doentes), a quantidade contratada e o índice de case-mix [coeficiente global de ponderação da produção que reflete a relatividade de um hospital face a outros, definindo-se como a ratio entre o número de doentes da cada grupo de diagnóstico homogéneo (GDH)]. Os GDH das cirurgias de internamento e de cirurgias em ambulatório são diversos
Embora nos anos de 2004/2005 o valor de referência de cirurgia, em ambulatório ou em internamente, fosse o mesmo, o coeficiente multiplicador (case-mix) era diferente – em 2004, 0,5781 para o ambulatório e 0,8924 para o internamento e no ano de 2005, 0,7171 para o ambulatório e 1,2563 para o internamento -, pelo que o valor a pagar ao hospital por cada uma das cirurgias realizadas não era equivalente.
Aliás, isto mesmo consta da cláusula 19 do contrato programa e do seu Anexo I [fls.960], em que o case-mix é diferente consoante se trate de cirurgia em ambulatório ou com internamento, pelo que, não obstante o valor de referência da cirurgia seja o mesmo, o valor a pagar ao hospital por cada cirurgia é necessariamente diverso.
Acresce que a recorrente pretende extrair da data do documento de fls. 7 - 26/10/2004 - uma consequência que não se impõe: na tese recursiva, a alteração da menção de cirurgias realizadas em ambulatório para cirurgias com internamento, a ter sido ordenada pela arguida, facto que esta nega, só poderia relevar para efeitos estatísticos, pois as cirurgias já tinham sido faturadas considerando que as faturas têm de ser enviadas até ao dia 20 do mês seguinte aquele a que se reportam face ao contrato programa. Se é certo que em tal documento constam cirurgias realizadas em Setembro, a maioria das mencionadas no documento foram efetuadas em Outubro, pelo que ainda não tinham sido faturadas e como tal, a alteração a que a testemunha C… se referiu como ordenada pela arguida, teve consequências quer a nível estatístico quer contabilístico.
Nesta conformidade, bem andou o tribunal a quo ao dar como provados os factos constantes dos pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
2ªquestão: contradição entre os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 e os factos não provados sob os pontos 2.2.1, 2.2.5 e 2.2.6.
Invoca a recorrente que há uma contradição entre os factos provados contantes dos pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 e os factos não provados dos pontos 2.2.1 e 2.2.5 e 2.2.6
Os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 têm a seguinte redação:
«2.1.20. Relativamente ao ano de 2004, foram faturados pelo Hospital …, S.A. ao SNS 41 (quarenta e um) internamentos cirúrgicos pelo valor global de 67.655,61 €, quando se tivessem sido faturados como cirurgias ambulatórias que foram o valor seria de 43.827,55 €; e ao subsistema ADSE 2 (duas) cirurgias de cataratas, em regime de internamento, pelo valor global de 3.461,30 €, quando se tivessem sido faturadas como cirurgias de ambulatório que foram o valor seria de apenas 1.711,26 €.
2.1.21. Relativamente ao ano de 2005, foram faturados pelo Hospital …, S.A. ao SNS 115 (cento e quinze) internamentos cirúrgicos pelo valor global de 267.147,80 €, quando se tivessem sido faturados como cirurgias ambulatórias que foram o valor seria de 152.488.81 €; e ao subsistema ADSE 6 (seis) cirurgias das quais 1 (uma) ao túnel cárpico e as demais às cataratas, todas elas em regime de internamento, pelo valor global de 9.840,63 €, quando se tivessem sido faturadas como cirurgias de ambulatório que foram o valor seria de 5.114,81 €.
2.1.22. Nesse mesmo ano, foi faturado pelo Hospital …, S.A. ao subsistema de saúde ADMG 1 (uma) cirurgia de cataratas, em regime de internamento, pelo valor de 1.730,65 €, quando se tivesse sido faturado como cirurgia em ambulatório que foi o valor seria apenas de 855,63 €.»
E os factos não provados supra mencionados têm o seguinte teor:
«2.2.1. Em data não concretamente apurada do mês de Outubro de 2004, a arguida tenha formulado o propósito concretizado de converter para efeitos administrativos as intervenções realizadas no Hospital …, S.A., em regime ambulatório em intervenções com Internamento com vista apenas a vir a faturar ao SNS e aos subsistemas de saúde ADSE e ADMG um preço mais elevado que o devido e obter por esta via e para aquela unidade Hospitalar proveitos económicos que sabia serem ilegítimos.
2.2.5. A arguida tenha atuado em todas as circunstâncias dadas como provadas com o propósito concretizado de obter para o Hospital um enriquecimento ilegítimo no valor global de 145.837,93 €, correspondente a um empobrecimento do SNS e dos subsistemas de saúde ADSE e ADMG, respetivamente, em idêntico valor globalmente considerado, pela orientada manipulação dos episódios que subjazem a cada fatura imputada ao respetivo responsável civil.
2.2.6. Levando aquele Serviço e subsistemas de saúde, iludidos com a encenação por si realizada e convictos da autenticidade dos dados constantes do sistema informático, a pagar aqueles episódios como cirurgias de internamento, a fim de obter para o Hospital Infante D. Pedro, S.A., um enriquecimento que sabia ilegítimo e correspondente ao diferencial do valor existente entre os dois tipos de cirurgia e á custa do correspondente prejuízo patrimonial daquelas entidades.»
Como bem refere a Exma. Magistrada do Ministério Público junto desta 2ªinstância a referida factualidade dada como provada reporta-se à faturação do Hospital …, S.A enquanto o ponto 2.2.1 dos factos não provados refere-se à intenção da arguida quando ordenou a realização dos procedimentos descritos no facto provado sob o n.º2.1.14, enquanto o ponto 2.2.5 dos factos não provados reporta-se à circunstância do SNS, a ADSE e a ADMG terem confiado que os valores faturados correspondiam à linha de produção efetivamente levada a cabo pelo hospital e o ponto 2.2.6 refere-se ao facto da arguida ter levado o SNS e subsistemas de saúde a pagar aqueles episódios como cirurgias de internamento, com o intuito de obter para o Hospital …, S.A., um enriquecimento que sabia ilegítimo e correspondente ao diferencial do valor existente entre os dois tipos de cirurgia e á custa do correspondente prejuízo patrimonial daquelas entidades. Ou seja, o facto dado como provado e os factos não provados em questão versam sobre realidades distintas, pelo que não podem ser contraditórios entre si.
Soçobra, por isso, este fundamento do recurso.
3ªquestão: - erro de julgamento dos factos provados sob os pontos 2.1.8, 2.110, 2.1.11, 2.1.12, 2.1.14, 2.1.15, atentas as declarações da arguida e das testemunhas F…, G… e H….
Tendo sido documentadas, mediante gravação, as declarações prestadas em audiência de julgamento, este tribunal de recurso pode conhecer amplamente da decisão de facto, desde que se mostre cumprido o disposto no art.412.º n.ºs 3 e 4 do C.P.Penal
Dispõe o art.412.º n.º3 do C.P.Penal «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente provados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
E o n.º4 do mesmo dispositivo estabelece «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
A propósito da impugnação ampla da matéria de facto, cabe realçar que o recurso de facto para a relação não é um novo julgamento em que a 2ªinstância aprecia toda a prova produzida em 1ªinstância, como se o julgamento ali realizado não existisse; ao invés, os recursos, em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, os quais devem ser indicados com menção das provas que os evidenciam.
Note-se que o art.412.º n.º3 al.b) do C.P.Penal refere «As provas que impõem decisão diversa da recorrida» e não as que permitiriam uma decisão diversa. Há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência comum permitem mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, ela é inatacável pois foi proferida de acordo com o princípio da livre apreciação – art.127.º do C.P.Penal. A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte este princípio que está deferido ao tribunal da primeira instância, o qual beneficia da imediação e da oralidade, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também fatores não materializados e que são impercetíveis na gravação de um depoimento, como a linguagem gestual.
Tendo presente o que acabou de se referir, a impugnação apresentada pela recorrente não colhe. Vejamos.
A recorrente impugna o facto dado como provado sob o ponto 2.1.8, com fundamento num excerto das declarações da arguida, em que a mesma afirma que, como diretora de gestão dos doentes, lhe cabia essencialmente facilitar e interligar a parte clinica à parte administrativa para que todos os atos praticados fossem devidamente registados.
Esta afirmação em nada contende com o facto dado como provado sob o ponto 2.1.8, cujo teor é o seguinte: «Estando aqueles [funcionários C…, J…, K…, L…, M… e N… – entre parêntesis nosso] no aludido período hierarquicamente subordinados à arguida».
Na verdade, atentando na fundamentação da matéria de facto da sentença relativamente a este ponto, refere a mesma «Quanto ao âmbito funcional de cada um daqueles funcionários e sua interligação com os sistemas informáticos em uso naquele Hospital à data dos factos decorre do depoimento que cada um deles prestou a este respeito, sem que resultem quaisquer incongruências sobre esta matéria em respaldo com o relatório pericial realizado ao sistema informático em uso naquele Hospital e esclarecimentos complementares de documentados nos autos (art.163.º do CPP). Razão pela qual se deu como provado o facto vertido em 2.1.8..».
A decisão recorrida ao dar como provado esta factualidade baseou a sua convicção nos depoimentos das aludidas testemunhas e não nas declarações da arguida, sendo que o tribunal não tem de dar como provado um facto só por que a arguida apresentou uma determinada versão, cabendo-lhe dilucidar nas declarações e depoimentos prestados o que merece credibilidade.
Não pode a recorrente pretender que este tribunal ad quem proceda a um novo julgamento e forme a sua convicção com base em outros depoimentos que não serviram para a convicção do tribunal recorrido quanto ao aspeto concreto em discussão.
A recorrente impugna ainda os factos dados como provados sob os pontos 2.1.10, 2.1.11, 2.1.12, 2.1.14 e 2.1.15., com fundamento nas declarações da arguida e nos depoimentos das testemunhas F…, G… e H…, insurgindo-se contra o facto da sua versão ter sido desvalorizada pelo tribunal, a qual, na sua opinião, é lógica, credível e corroborada pelo depoimento de algumas testemunhas. Para tanto transcreve segmentos das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas F…, G… e H…. Acresce que quanto à testemunha M…, a recorrente sustenta que o seu depoimento revelou falta de convicção, certeza e assertividade ao que lhe estava a seu perguntado.
No caso presente, a recorrente não aponta erros de julgamento, questionando antes a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido, contrapondo a sua própria apreciação da prova produzida, o que é inócuo em termos de impugnação da matéria de facto em sede de recurso.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode (…) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 184/2004, de 24/11/2004, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
Atentando na exaustiva fundamentação da matéria de facto está devidamente explicitado o raciocínio percorrido pelo tribunal na formação da sua convicção, esclarecendo as razões pelas quais a versão da arguida, negando os factos, não se mostrou credível, analisando as incoerências da sua versão em si mesma, assim como conjugando-a com a perícia. Por outro lado, na fundamentação da decisão recorrida há uma apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas e sua conjugação com os documentos juntos aos autos. De realçar ainda que os depoimentos das testemunhas F…, G… e H…, testemunhas de defesa, que negaram ter conhecimento de desconformidades na faturação das cirurgias, não foram relevantes para o tribunal face à prova documental junta aos autos e à demais prova testemunhal produzida, sendo que o tribunal a quo explicou as razões para assim concluir, conclusão que se mostra coerente e de acordo com as regras da normalidade.
E não tem fundamento invocar, como faz a recorrente, a violação do princípio in dúbio pro reo.
Este princípio, enquanto corolário do princípio da presunção de inocência consagrado no art.32.º n.º2 da CRP, implica que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal [Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 213]. A violação deste princípio só ocorre assim quando do texto da decisão recorrida decorrer que o tribunal ficou na dúvida em relação a qualquer facto e, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que o tribunal deveria ter tido.
No caso dos autos, a fundamentação da decisão impugnada não revela qualquer dúvida do tribunal a quo quanto aos factos explicando, com coerência e segundo um raciocínio lógico, como formou a sua convicção.
Pelo exposto, improcede a impugnação da matéria de facto.
4ªquestão: -caráter instrumental do crime de falsidade informática face ao crime de burla, pelo que a absolvição quanto a este impõe a absolvição quanto àquele.
A Lei da Criminalidade Informática, prevista originariamente pela Lei 109/91, de 17/2, posteriormente alterada pelo DL 323/01, de 14/12, na redação em vigor aquando dos factos, dispõe no seu art.4.º:
«1- Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados ou programas informáticos ou, por qualquer outra forma, interferir num tratamento informático de dados, quando esses dados ou programas sejam suscetíveis de servirem como meio de prova, de tal modo que a sua visualização produza os mesmos efeitos de um documento falsificado, ou, bem assim, os utilize para os fins descritos, será punido com pena de prisão até cinco anos ou multa de 120 a 600 dias.
2- (…)
3- Se os factos referidos nos números anteriores forem praticados por funcionário no exercício das suas funções, a pena é de prisão de um a cinco anos.»
A Lei 109/2009, de 15/2, aprova a Lei do Cibercrime e no seu art.31.º veio revogar a Lei 109/91, de 17/2.
O art.3.º da Lei do Cibercrime, prevê o crime de falsidade informática, estatuindo:
«1 - Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias.
2 – (…).
3 - Quem, atuando com intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objeto dos atos referidos no n.º 1 ou cartão ou outro dispositivo no qual se encontrem registados ou incorporados os dados objeto dos atos referidos no número anterior, é punido com as penas previstas num e noutro número, respectivamente.
4 –(…).
5 - Se os factos referidos nos números anteriores forem praticados por funcionário no exercício das suas funções, a pena é de prisão de 2 a 5 anos.»
A Lei do Cibercrime dispõe que os «dados informáticos», na definição da alínea b) do art. 2.º, são toda e qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma suscetível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função.
Sustenta a recorrente que sendo o crime de burla informática instrumental em relação ao crime de burla, tendo sido absolvida deste, impunha-se também a sua absolvição quanto àquele.
No crime de falsidade informática o bem jurídico tutelado é a segurança do tráfico jurídico probatório, enquanto no crime de burla, o bem jurídico é o património. [v., a este propósito Ac.R.Porto de 30/4/2008, proc. n.º 0745386, relatado pelo Desembargador António Gama].Os bens jurídicos tutelados por estes ilícitos são, assim, diferentes.
O crime de falsidade informática exige um dolo específico - a intenção de provocar engano nas relações jurídicas. Embora o engano esteja na maioria das vezes associado ao prejuízo de outrem ou ao benefício ilegítimo para o próprio ou para terceiro, para o preenchimento do ilícito não é necessário que o engano determine prejuízo ou benefício ilegítimo para o próprio ou para terceiro.
Por isso, mostrando-se preenchidos os elementos constitutivos do crime de falsidade informática, não tem fundamento a pretensão da recorrente.
5ªquestão: não preenchimento do crime de falsidade informática
Na tese recursiva não se mostra preenchido o crime de falsidade informática pois mesmo admitindo, por mera hipótese de raciocínio, que houve alteração interna da referência de cirurgias ambulatórias para cirurgias com internamento, essa alteração não permite a subsunção dos factos ao crime de falsidade informática, dado que esta só ocorre quando há factos falsos e estes são juridicamente relevantes. Ora, no caso concreto a alteração de cirurgias ambulatórias para cirurgias por internamento só podia servir para fins estatísticos do hospital e, como tal, sem relevância jurídica
No crime de falsidade informática, quer na redação do art.4.º n.º1 da Lei da Criminalidade Informática, em vigor aquando dos factos, quer na sua atual formulação do art.3.º n.º1 da Lei do Cibercrime, tem de haver a intenção de que os dados informáticos «sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes». Os dados informáticos têm de ser alterados com o propósito de desvirtuar a demonstração dos factos que com aqueles dados podem ser comprovados, como bem refere no seu parecer a Exma. Magistrada do Ministério Púbico junto deste Tribunal da Relação.
In casu, atenta a factualidade assente, a arguida fez introduzir no sistema informático episódios de cirurgias realizadas em regime de ambulatório como se tivessem sido levadas a cabo em regime de internamento, quando tal não correspondia à realidade.
No sistema informático do Hospital Infante D.Pedro SA estavam registados todos os internamentos, exames de diagnóstico, consultas e urgências relativos aos utentes do hospital, permitindo o tratamento dessa informação quer para a definição da produção do hospital quer para a cobrança dos serviços prestados. Assim, a arguida ao fazer introduzir aqueles dados falsos no sistema informático, os mesmos passaram a constar para efeitos médicos, estatísticos e contabilísticos, pelo que é manifesta a sua relevância jurídica.
A relação jurídica que em virtude do comportamento da arguida foi introduzida no sistema informático não corresponde à verdade, sendo que os dados assim vertidos no sistema informático produzem os mesmos efeitos de um documento falsificado, pondo em causa o seu valor probatório e consequentemente a segurança nas relações jurídicas.
Nesta conformidade, o comportamento da arguida preenche o crime de falsidade informática quer à luz do regime em vigor aquando da prática dos facos – Lei da Criminalidade Informática – quer à luz do atual regime – Lei do Cibercrime.
Por todo o exposto, improcede o recurso.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªseção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça.
[texto elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias].
Porto, 26/5/2015
Maria Luísa Arantes
Ana Bacelar
“em falta de consentimento devidamente informado”
Emissor: Supremo Tribunal de Justiça
Tipo: Acórdão
Data de Publicação: 2018-03-22
Processo: 7053/12.7TBVNG.P1.S1
Fonte Direito: JURISPRUDENCIA
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA; RESPONSABILIDADE CONTRATUAL; RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL; CONSENTIMENTO; OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO; DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO; ÓNUS DA PROVA; ILICITUDE; MÉDICO; HOSPITAL; RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA; DANOS PATRIMONIAIS; DANOS NÃO PATRIMONIAIS
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SUMÁRIO
I - Em sede de responsabilidade civil por actos médicos ocorre frequentemente uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo orientação reiterada da jurisprudência do STJ a opção pelo regime da responsabilidade contratual tanto por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efetiva do lesado. II - Tanto o direito nacional, como instrumentos internacionais, impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica. III - O consentimento do paciente prestado de forma genérica não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, sendo, além disso, necessário, em caso de repetição de intervenções, que tais esclarecimentos sejam atualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo. IV - Estando em causa a realização de um exame de colonoscopia, sem função curativa, do qual nasce uma obrigação de resultado (obtenção dos dados clínicos do exame), ocorrendo uma perfuração do colon do paciente, sem que esteja em discussão o cumprimento do dever primário de prestação do médico mas o cumprimento do dever acessório de, na realização do exame clinico, ser respeitada a integridade física daquele, duas construções dogmáticas podem ser perfilhadas: (i) a ocorrência da perfuração do colon basta para configurar a ilicitude, uma vez que uma lesão da integridade física do paciente, não exigida pelo cumprimento do contrato, implica a sua verificação(ilicitude do resultado), caso em que haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado daquele quanto aos riscos próprios daquela colonoscopia (cfr. art. 340º, nº 1, do CC); (ii) incumbe ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física daquele (ilicitude da conduta), caso em que, mesmo não se provando a violação desse dever, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar o paciente dos riscos inerentes à intervenção médica e se este os aceitou. V - A circunstância de se ter provado que a A., paciente, antes da realização do exame feito pelo R. médico assinou um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», contendo uma declaração em que afirma estar “perfeitamente informada e consciente dos riscos, complicações ou sequelas que possam surgir”, e ainda que conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, não é suficiente para preencher as exigências do consentimento devidamente informado uma vez que, no caso, sendo os riscos de perfuração superiores ao normal devido à idade e aos antecedentes clínicos da A., era imperativo que o R. fizesse prova de que a A. fora informada de tais riscos acrescidos. VI - Tendo havido violação do dever de esclarecimento do paciente, com consequências laterais desvantajosas, isto é, a perfuração do colon, e com agravamento do estado de saúde, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a integridade física e moral, e os danos ressarcíveis tanto são os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais. VII - Por conseguinte, quer se siga a concepção da ilicitude do resultado quer a concepção da ilicitude da conduta, o R. médico e a respectiva seguradora encontram-se solidariamente obrigados a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela A. com fundamento em falta de consentimento devidamente informado para a realização da colonoscopia. VIII - Identificando-se, da matéria de facto, uma relação contratual entre a A. e o R. médico, que tem como objecto a prestação dos serviços especificamente médicos e uma outra relação contratual entre a A. e a R. Hospital, que não envolve a prestação de serviços médicos em sentido estrito, estamos perante uma situação, denominada pela doutrina, como “contrato dividido” ou autónomo, pelo que tendo-se concluído pela responsabilidade do R. médico com fundamento na falta de consentimento devidamente informado da A., não pode responsabilizar-se a R. Hospital pela conduta do mesmo médico.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra Hospital BB, S.A., e CC, peticionando a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de € 100.000,00, acrescida de juros de mora a contar da data da citação. Para tanto, e em síntese, invocou que, em 17/03/2011, foi submetida a intervenção médica levada a cabo pelo 2º R., que exerce profissionalmente na 1ª R., que consistiu num exame de colonoscopia, intervenção da qual resultou perfuração do colon, o que a obrigou a submeter-se a sucessivas intervenções cirúrgicas. Fruto da actuação do 2º R. na execução do exame de colonoscopia, assim como da falta de acompanhamento por ambos os RR. na fase de recuperação do mesmo exame (tanto antes como após a alta clínica), a A. sofreu danos patrimoniais, descritos nos autos, no valor de € 11.258,42, e ainda danos não patrimoniais, que também descreve, e pelos quais peticiona uma compensação no montante de € 90.000,00. Os RR. contestaram, negando a sua responsabilidade no evento; requerendo a R. Hospital BB, S.A.. a intervenção principal da seguradora Companhia de Seguros DD, S.A. (actual Seguradoras EE, S.A.) e requerendo o R. CC a intervenção principal da seguradora FF - Companhia de Seguros, S.A. (actual GG, Companhia de Seguros, S.A.). Por despacho de fls. 197 ambos os requerimentos foram deferidos nos exactos termos. As intervenientes contestaram, impugnando a factualidade alegada e concluindo, a final, pela improcedência da pretensão da A. Realizado o julgamento foi proferida sentença de fls. 383, que julgou improcedente a causa, absolvendo os RR. do pedido. Por decisão proferida a fls. 444 foram declarados habilitados como herdeiros da A., entretanto falecida, os seus filhos HH, II, JJ e KK. Inconformados com a decisão da sentença, vieram os habilitados, na posição da originária autora, interpor recurso de apelação, pedindo a modificação da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito. O R. CC juntou parecer, que consiste em texto doutrinal relativo à responsabilidade médica em geral, não se referindo especificamente ao caso dos autos. Por acórdão de fls. 631 foi considerada prejudicada a questão da impugnação da matéria de facto, e, a final, proferida a seguinte decisão: “Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e condenando os RR. e as Intervenientes a pagarem, solidariamente, à Autora, ora representada pelos seus herdeiros legais, i). a título de danos patrimoniais, a quantia de € 8. 746, 98, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sucessivamente aplicável, desde 6.09.2012 e até efectivo e integral pagamento; ii). a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 28. 000, 00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sucessivamente aplicável, desde a data deste acórdão e até efectivo e integral pagamento” 2. Vêm os RR. e as intervenientes recorrer, autonomamente, para o Supremo Tribunal de Justiça. O R. Hospital BB, S.A. formula as seguintes conclusões: 1. O douto Acórdão fez errada interpretação e aplicação do Direito no caso concreto, por manifesta desconsideração da factualidade assente, incorrendo em erro de julgamento. 2. A par deste, a decisão é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam vários segmentos da sua argumentação e por contradição entre os seus fundamentos e a decisão (cfr. artigo 615º, nº 1 alíneas d) e c) do CPC). 3. A asserção de que o ato médico de cariz diagnóstico em causa é, independentemente das circunstâncias concretas, uma obrigação de resultado e, como tal, a ocorrência de uma perfuração configura per si um ato ilícito (desconsiderando o consentimento informado prestado e o risco específico do mesmo), traduz uma perversão dos princípios básicos do direito tradicional da responsabilidade civil aquiliana e contratual, transformando-a em responsabilidade pelo risco ou por factos lícitos danosos. 4. A configuração da concreta prestação em discussão como obrigação de resultado, porque fundada em ausência de fins curativos ou terapêuticos, é errada na medida em que desconsiderou o âmbito terapêutico em que o exame (colonoscopia) foi realizado e, bem assim, não levou em conta e aliás está em contradição com a matéria provada dos pontos 2, 4, 5, 6,7, 24, 25, 37 e 40 dos Factos Provados. 5. Atendendo ao seu concreto contexto, o exame realizado à Autora não pode ser considerado um vulgar exame de rotina realizado em condições de normalidade (contrariamente à situação discutida no Acórdão do STJ de 01/10/2015 no qual o presente Acórdão se baseia). 6. Pese embora se trate de um exame de diagnóstico, não resulta da factualidade provada que o Réu Médico tenha assegurado que seria possível a observação correta, integral e nítida do intestino da Autora e bem sucedida no diagnóstico de eventuais alterações, o que não é sequer compatível com qualquer procedimento diagnóstico invasivo, como é o caso da colonoscopia. 7. Para configurar o ato médico como obrigação de resultado, não basta concluir pela ausência de "fins curativos ou terapêuticos" (como se bastou o Tribunal a quo a considerar), já que em contrapartida nem todas as obrigações de meios têm "fins curativos ou terapêuticos" e nem por isso deixam de o ser. 8. Importa ter em conta que a atividade médica comporta quase sempre uma certa álea que resulta da existência de um conjunto de fatores externos imprevisíveis ou incontroláveis que impossibilita o médico de assegurar ao doente um resultado certo da intervenção proposta, a saber: circunstâncias inerentes ao doente que condicionam a maior ou menor dificuldade do procedimento, equipamento utilizado e os riscos próprios do procedimento [cfr. pontos 7., 25., 40., 53., 54. e 55. dos Factos Provados]. 9. Por isso é incontestável que a prestação em causa, nas concretas circunstâncias que resultaram provadas, não pode senão haver-se como uma mera obrigação de meios, no sentido da jurisprudência maioritária. Assim, o Réu Médico vinculou-se tão-somente a empregar o seu saber, experiência, perícia, cuidado e diligência no sentido de atingir o melhor "resultado" possível em termos de diagnóstico, com os meios técnicos que tinha ao seu dispor e o estado atual da ciência médica. 10. Ainda que se assumisse a prestação realizada como obrigação de resultado, é essencial identificar o "resultado" visado pela concreta prestação para aferir o cumprimento ou incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. 11. Inexiste fundamento para responsabilizar os Réus com base em responsabilidade contratual quando resulta demonstrado ter sido cumprida a obrigação subjacente, já que a este respeito o douto Acórdão considerou que um exame se "esgota em si mesmo enquanto meio de diagnóstico" e tomou como certo que o mesmo foi realizado e o resultado entregue à Autora. Pelo que se impunha que tivesse concluído, por coerência, ter sido cumprida a prestação contratada. 12. Ao concluir em sentido divergente, incorreu o douto Acórdão em manifesta contradição entre os fundamentos apresentados e a conclusão deles extraída que fere de nulidade a decisão neste segmento (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea c) do CPC). 13. O douto Acórdão configurou a perfuração do cólon como "facto voluntário", porém nenhum dos factos em que o Tribunal a quo se baseou para tal, nem a restante matéria assente permitem extrair tal conclusão, já que ficou demonstrado que a perfuração é um risco do procedimento que pode ocorrer por causas involuntárias ou alheias à atuação concreta do médico e pode mesmo sobrevir ao procedimento, sem ser sequer percecionável no momento [cfr. pontos 53, 54 e 55 dos Factos Provados]. 14. Não é admissível a conclusão pela verificação do "facto voluntário", na medida em que a factualidade provada não evidencia que a perfuração do cólon tenha acontecido durante o exame, por causa da atuação do Réu Médico, já que a Autora não só não apresentava quaisquer indícios objetivos de perfuração do cólon durante e após o exame, como ainda revelava sinais objetivos de normalidade [cfr. pontos 10, 22, 23,42,45, 46,47,48, 49, 50 e 51 dos Factos Provados]. 15. Para poder concluir pela verificação do "facto voluntário" como pressuposto da responsabilidade civil, impunha-se que o douto Acórdão especificasse os fundamentos de facto que justificam a evidência de que a perfuração do cólon resultou de uma conduta comissiva ou omissiva do Réu Médico, dominável ou controlável pela sua vontade: não o fez, pelo que a decisão está ferida de nulidade nesta parte (cfr. artigo 615º, n,º 1 alínea b) do CPC). 16. Quanto ao pressuposto do "facto ilícito", andou bem a Sentença revogada que concluiu pela improcedência da ação por não provada a ilicitude, na medida em que não resultou demonstrado que tivesse havido um ato médico errado ou que tivesse sido violado, por parte do Réu Médico ou da ora Recorrente, um dever jurídico ou qualquer dos deveres principais ou acessórios que se impunham, considerando, em contrapartida, que a perfuração do cólon se tratou de um risco próprio do exame. 17. Já o douto Tribunal da Relação divergiu desta posição julgando verificado o pressuposto da ilicitude com fundamento na perceção de a perfuração ser em altíssimo grau estranha ao cumprimento do fim do contrato (probabilidade inferior a 1%) e a sua gravidade resultar desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela concreta intervenção ou ato médico. 18. Ficou, porém, provado que não só a Autora consentiu expressa e formalmente na realização daquele exame invasivo, ciente da sua situação clínica e dos riscos associados àquele ato médico (especificamente sobre o risco de perfuração), como também que a colonoscopia, enquanto procedimento invasivo, comporta necessariamente riscos (vg. o risco de perfuração) que ocorre num 1 a 8 casos em cada 1.000 exames realizados [cfr. pontos 37, 38 e 53 dos Factos Provados]. 19. O consentimento informado assenta nos pressupostos de auto-responsabilização e liberdade de escolha, pelo que o exercício pelo doente da sua liberdade de escolha é correlativo da sua auto-responsabilização. Nessa medida, o doente que consente na realização de determinado procedimento médico ciente, porque previamente informado, dos riscos inerentes ao mesmo, assume por essa via o risco da sua eventual verificação. 20. O consentimento da Autora é causa de exclusão da responsabilidade dos Réus a partir do momento em que a lesão física (perfuração do cólon), pela sua natureza e gravidade, se contém dentro do risco próprio do ato médico que foi previamente conhecido e aceite pela Autora (cfr. artigo 340.º, n.º 1 do Código Civil). 21. De outra forma, impunha-se que o Tribunal da Relação tivesse considerado nulo o consentimento prestado (cfr. artigo 8º, n.º 1 do Código Civil), o que não foi suscitado, nem discutido. 22. Por outro lado, a incidência de risco de perfuração inferior a 1% em colonoscopias de cariz diagnóstico não pode redundar em ausência de risco, mormente quando resultou demonstrado que a Autora foi dele prévia e especificamente informada [pontos 37. e 38. dos factos provados]. 23. Se o concreto procedimento diagnóstico envolve riscos e se a Autora os assumiu ao aceitar submeter-se ao exame informada dos riscos, é inaceitável a conclusão de que a sua ocorrência seja totalmente estranha à execução do procedimento contratado. 24. A prevalência do risco de perfuração não pode deixar de ser aferido[a] em função das circunstâncias concretas do doente, em especial as condições do campo de intervenção, sendo que no caso resultou demonstrado que a anterior operação oncológica que a Autora realizara propicia a formação de processos aderenciais que não só podem ser causa direta de perfuração no cólon, como agravam o risco de perfuração por aumento da pressão intracólica, decorrente da maior quantidade de ar que é necessário insuflar para realizar o exame [cfr. pontos 40. e 54. dos factos provados]. 25. Nas concretas circunstâncias que resultaram provadas não é plausível a conclusão de que a perfuração ocorrida seja desproporcionada face aos riscos normais para o lesado inerentes à concreta intervenção, pelo que a conclusão vertida no ponto IV. do sumário do douto Acórdão é nula, por ininteligível e infundada (cfr. artigo 615º, n.º 1 alíneas a) e c) do CPC). 26. O consentimento da Autora só não releva se a lesão provier de ato ilícito (cfr. artigo 340º, n.º 2 do Código Civil) que no caso não se verificou. 27. Apesar de ter julgado verificado o pressuposto da ilicitude, o douto Acórdão não só não identificou quaisquer factos que permitissem concluir ter existido uma atuação voluntária, por ação ou omissão, especificamente inadequada, incorreta, imprudente, imperita ou negligente, diretamente imputável aos Réus, como também não revelou quais as regras da arte médica ou os específicos deveres que resultam do contrato ou da deontologia profissional que tenham sido infringidos pelos Réus, o que fere de nulidade a decisão (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC). 28. Da factualidade assente também não resulta qualquer evidência de conduta errada, descuidada, impudente ou negligente por parte de qualquer dos Réus de molde a conformar ato ilícito, tal como justamente constatou a sentença da primeira instância que, por isso, julgou improcedente a ação. 29. Competindo à Autora o ónus de prova da ilicitude como facto constitutivo do direito de indemnização dela emergente (cfr. artigo 342º, 483º e 798º do Código Civil), só assistiria aos herdeiros legais da Autora direito à indemnização mediante prova de que a perfuração cólica fora causada por violação por parte dos Réus das «leges artis», de algum dever jurídico ou de deveres principais ou acessórios contratados. 30. Face à falta de evidência, com base na matéria de facto provada, quer do cumprimento pela Autora (pelos seus herdeiros legais) do respetivo ónus probatório da ilicitude, quer da conduta voluntária do médico objetivamente ilícita por referência à atuação que pelas «leges artis» lhe seria em concreto exigível, o Tribunal da Relação nunca poderia ter julgado verificada a ilicitude. 31. Ao concluir nos termos do ponto IV. do seu sumário e fundar a decisão com base nesse pressuposto, o Tribunal da Relação redundou numa condenação dos Réus em responsabilidade objetiva (pelo risco ou por facto lícitos) num caso imprevisto pela lei. 32. Por conseguinte, a decisão está ferida de erro de Direito (error in judicando), já que a matéria assente não demonstra qualquer ato ilícito que tenha sido praticado pelos Réus e a lei não prevê responsabilidade médica objetiva ou por factos lícitos danosos. 33. A factualidade assente demonstra, ao invés, de ter sido empregue pelo Réu Médico um razoável grau de perícia e competência na execução do exame e terem sido cumpridos pela Ré Hospital os deveres de vigilância e cuidado no recobro posterior ao exame [cfr. pontos 6,7, 8, 22,40,43,45,46, 51 dos Factos Assentes]. 34. Resulta ainda demonstrado que a perfuração que sobreveio ao exame realizado à Autora pelo Réu Médico, na Ré Hospital não decorreu de má prática ou falta de cuidado destes, mas tratou-se de um risco próprio do exame que, com razoável probabilidade, pode ter tido origem em circunstâncias excecionais, anormais ou extraordinárias relacionadas com o aparelho intestinal da Autora, fragilizado por tratamento cirúrgico anterior, e até ter sucedido em momento posterior ao exame a partir de uma microfissura comprovadamente desapercebida e assintomática [cfr. pontos 42, 49, 50, 53, 54 e 55 dos Factos Assentes]. 35. Assim, os Réus lograram ilidir a presunção de culpa que seria seu ónus, se porventura se verificasse o pressuposto prévio da ilicitude, o que não sucedeu. 36. O douto Acórdão também não concretizou, estribando-se na factualidade assente, o que os Réus podiam ou deveriam ter feito e não fizeram, ou o que não podiam, nem deviam ter feito e fizeram, de molde a dar como demonstrado o pressuposto da culpa configurado nos termos citados, pelo que a decisão está ferida de nulidade (cfr. artigo 615º, nº 1, alínea b) do CPC). 37. Sendo certo que a discussão do pressuposto da culpa é espúrio, a partir do momento em que não se encontra verificado sequer o pressuposto prévio da ilicitude. 38. Em face de todo o exposto, e salvo o devido respeito, não é possível censurar a conduta dos Réus à luz da responsabilidade civil contratual ou extracontratual, o que impõe a sua absolvição do pedido, com a consequente repristinação da sentença da primeira instância que bem decidiu nesse sentido. 39. Ao entender em sentido diferente, o douto Acórdão incorreu em erro notório no juízo de subsunção das normas jurídicas aos factos assentes na decisão da primeira instância, violando o disposto nos artigos 342º,483º, 798º e 799º do Código Civil. 40. Inexiste ainda fundamento de facto e de direito que justifiquem a decisão de condenação da Ré Hospital com base em responsabilidade objetiva prevista no artigo 800.º do Código Civil, já que não ficou provado que a Autora tivesse contratado diretamente com a Ré Hospital a prestação de quaisquer serviços. 41. A factualidade assente não evidencia que o Réu Médico tivesse atuado como auxiliar no cumprimento dos serviços contratados entre a Autora e a Ré Hospital, mas sim o inverso: a Ré Hospital cedeu ao Réu Médico os seus meios e instalações para que este executasse o exame que lhe foi solicitado pela Autora, em regime de consulta de acompanhamento, o que é incompatível com o sentido da norma prevista no artigo 800º do Código Civil. 42. A escolha da Autora nesta concreta prestação de serviços recaiu sobre o Réu Médico, intuitu personae, e não sobre a Ré Hospital, a qual interveio na mesma como auxiliar do seu cumprimento. Donde, é forçoso concluir que a relação contratual foi estabelecida pela Autora com o Réu Médico, a quem solicitou diretamente a prestação de serviços de saúde. 43. A factualidade provada apenas permite concluir que a Autora estabeleceu relação contratual com o Réu Médico ou, quanto muito, duas relações contratuais conexas com sujeitos e âmbitos distintos: a primeira com o Réu Médico para prestação de cuidados de saúde, a segunda com a Ré Hospital para fornecimento de instalações e meios necessários à prestação daqueles cuidados. 44. De uma forma ou de outra, não tem aplicação o disposto no artigo 800º do Código Civil, nem o douto Acórdão especificou razões de facto que sustentam a aplicação desta norma. 45. Na modalidade de contrato dividido que está presente in casu, a Ré Hospital assume contratualmente apenas a parte relativa aos meios para a prestação do serviço, sendo o Réu Médico contratualmente responsável pelos seus atos e pelos atos das pessoas que utilize no cumprimento da prestação acordada com a Autora. 46. Uma vez que não resultou provando que a realização do exame em apreço tenha sido contratada pela Autora diretamente com a Ré Hospital, esta não pode ser responsabilizada por (eventual) incumprimento ou cumprimento defeituoso de uma prestação não contratada (ou pelo menos não provado que o tivesse sido) entre a Autora e a Ré Hospital. 47. E bem assim, também não resultaram provados factos que apontem no sentido da prática de ato ilícito por parte da Ré Hospital, nem do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso de qualquer obrigação a que estivesse concretamente vinculada, decorrente de contrato celebrado (a ter sido) com a Autora. 48. Inexistem fundamentos de facto e de direito para condenar solidariamente a Ré Hospital já que, nos termos do disposto no artigo 513º do Código Civil, a solidariedade de devedores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes. 49. Pelo que, mesmo que se considere a existência de um contrato com pluralidade de devedores - como parece ser o que resulta da fundamentação do douto Acórdão (cfr. pág. 25) - impõe-se aplicar o regime geral das obrigações conjuntas ou parciárias (cfr. 796º, n.º 3 do Código Civil). 50. No âmbito da responsabilidade contratual - que o douto Tribunal considerou ser o regime aplicável no caso concreto - não tem aplicabilidade a regra da solidariedade estabelecida na responsabilidade extracontratual (cfr. artigo 497º do Código Civil), já que a mesma não resulta da lei, nem resultou provado que tivesse havido acordo das partes a esse respeito. 51. Assim, a concluída verificação de responsabilidade objetiva da Ré Hospital fundada no artigo 800º do Código Civil está inquinada de erro de julgamento, em resultado de uma inexata qualificação jurídica da intervenção da Ré Hospital nos factos em discussão que não encontra fundamento na matéria de facto provada. 52. A par deste a decisão de condenação solidária da Ré Hospital é igualmente inadmissível por ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão, no âmbito da responsabilidade contratual, donde a decisão está ferida de nulidade (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC). 53. Caso assim não se entenda, discute-se, por mera cautela e dever de patrocínio, o quantum indemnizatório arbitrado pelo Tribunal a quo para compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela Autora e atribuído aos seus herdeiros legais, já que o mesmo se mostra desajustado, face aos danos provados, e excessivo, face à prática jurisprudencial. 54. Neste contexto, ponderando comparativamente os valores fixadas na jurisprudência e as circunstâncias concretas provadas, parece resultar, salvo o devido respeito, que o valor atribuído a título de indemnização por danos não patrimoniais pelo Tribunal da Relação se mostra desajustado. Termina pedindo que seja declarada a nulidade do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que absolva os RR. do pedido. Por sua vez, o R. CC formulou as seguintes conclusões: 1º Vem o presente recurso de revista interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, antes identificado, que, revogando a decisão de 1ª instância, considerou a ação parcialmente procedente. 2º Para tanto, considerou que: (I) Que o contrato de prestação de serviços em causa não traduz uma obrigação de meios, mas sim de resultado (ou que tal distinção é irrelevante, o que, no fundo, é a mesma coisa); (II) Em resultado disso mesmo, que existe ilicitude porque a lesão da integridade física da Autora não era exigida pelo contrato e não foi abrangida pelo consentimento ou pretensão da mesma; (III) Que, podendo da colonoscopia resultar a perfuração, se impunha um especial dever de cuidado (art.º 762 nº 2 CC), a ter em conta os interesses da Autora e a gerar responsabilidade contratual art.º 798 CC; Ainda, (IV) Que, na dúvida, presume-se a culpa (art.º 799 nº 2 CC), presunção não ilidida (art.º 344 nº 1 CC). 3° Salvo o devido respeito por melhor opinião, sem razão. 3º Na verdade, entendeu que, demonstrada (na sua tese) a ilicitude, não se encontra provada matéria de fato que afaste a presunção de culpa que foi adotada. 4º Salvo o devido respeito por melhor opinião, não é verdade. 5º Pois que foi efetuada prova no sentido de que o réu CC agiu com toda a correção profissional, com cuidado e de acordo com a leges artis do ramo - Cfr. Os pontos 37, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45,46, 47, 48, 49, 50, 51, 53, 54, 55 e 56 da matéria de fato dada como provada. 6º Os fatos antes referidos - ignorados pelo douto acórdão recorrido - operam (se necessário fosse - que não é) a elisão da dita presunção (iuris tantum), com a prova do contrário. 7º Provam que o ora recorrente e os restantes intervenientes nos atos em causa, usaram de toda a diligência, se esforçaram por cumprir, usando as cautelas e zelo que utilizaria um «bom pai de família» nas concretas circunstâncias do caso, decorrendo as lesões verificadas de fatores e circunstâncias que, escapando inteiramente ao seu domínio, não foi possível controlar adequadamente (nesse sentido, de que tal poderia ocorrer, o conhecimento dos riscos e consentimento devidamente esclarecido da paciente). 8º Tais factos são impeditivos do funcionamento da presunção de culpa em causa, dado o seu inquestionável relevo substantivo ou material para o preenchimento, atuação e aplicação das normas que condicionam a decisão do mérito da causa. Acresce que, 9° O douto acórdão fundamenta também a sua decisão no sentido de que o consentimento informado "não abrange a lesão física que, em termos de normalidade ou previsibilidade, não é exigida para a realização do aludido exame e cumprimento do contratado e que, assim, se apresenta como ilícita" (segundo parágrafo de fls. 41). 10° Mais uma vez, ignora (e contraria) a matéria de fato dada como provada e que invocou como fundamento da sua decisão. 11° Pois que resulta dos pontos 37 e 38 da matéria de fato provada que a paciente foi devidamente informada dos riscos que uma colonoscopia implicava, incluindo as eventuais perfurações do intestino que pudessem ocorrer - riscos que aceitou correr. 12° Impunha-se, sob pena de nulidade, que a douta decisão recorrida observasse, na sua elaboração, toda a realidade objetiva e processual dos autos - o que não aconteceu. 13° Pelo que, o douto acórdão recorrido é nulo e como tal deve ser declarado, por contradição entre os seus fundamentos, a matéria dada como provada e o decidido, nos termos do disposto no art. 615 NCPC (antigo art 668). Sem prescindir e subsidiariamente, 14° Os presentes autos consubstanciam uma ação de responsabilidade médica, na qual a originária Autora solicitou uma indemnização em virtude dos danos materiais e morais sofridos em consequência da realização de um exame de colonoscopia do qual resultou uma perfuração do seu intestino, indemnização essa que lhe foi parcialmente concedida (no entender do recorrente, sem qualquer fundamento). 15° Em primeiro lugar, a possibilidade de uma eventual perfuração foi consentida e o seu eventual risco assumido (Cfr. Os pontos 37 e 38 da matéria dada como provada). 16° Tal consentimento constituiu um facto impeditivo do direito invocado (causa de exclusão da ilicitude - art°s 342, 483 e 800 CC), tendo sido realizada a sua prova (art. 342°, n° 2 CC): (I) A paciente foi informada do "risco mais grave" que pode ocorrer numa colonoscopia (perfuração do intestino); (II) Pois que, apesar de ser "raro" é específico daquela concreta intervenção; (III) Colocando nas mãos daquela toda a informação necessária para que a mesma se determinasse responsavelmente, assumindo aquele risco; (IV) Como aconteceu. 17° Em segundo lugar, ainda que fosse necessário ilidir qualquer presunção de culpa (e como infra se verá, tal não era necessário) foi efetuada prova no sentido de que o réu CC agiu com toda a correção profissional, com cuidado e de acordo com a leges artis do ramo - Cfr. os pontos 37, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45,46, 47, 48, 49, 50, 51, 53, 54, 55 e 56 da matéria de fato dada como provada (e o antes referido acerca da nulidade do douto acórdão recorrido) Ainda subsidiariamente, 18° Mesmo que se entendesse não ter ficado provado que o réu CC agiu de acordo com a leges artis do ramo (o que apenas se admite por mero efeito de raciocínio), a douta decisão recorrida não poderia ter um sentido diferente daquele que foi assumido pelo Dig.° Tribunal de 1ª instância. 19° Na verdade, a charneira das duas diferentes posições escalpelizadas no douto acórdão recorrido, encontra-se nos diferentes conceitos de "obrigação de meios" e de "resultado" e da sua subsunção ao caso dos autos. 20° Os critérios de distinção não excluem figuras mistas (v. g. os casos de dupla definição da prestação). 21°A diferença está naquilo a que o devedor se obriga: nas de resultado, obriga-se a causá-lo; nas de meios, obriga-se a tentar adequadamente causá-lo. 22° Só há cumprimento das primeiras quando o resultado definidor da prestação ocorra causado pelo devedor; nas de meios, há cumprimento quando o resultado é adequadamente tentado. 23° Nas obrigações de meios, o devedor está vinculado a todo o ato necessário - necessário, não suficiente -, pois todos os atos indispensáveis ao resultado definidor (i.e., necessários) se incluem forçosamente nos atos a ele adequados. 24° Os atos adequados englobam todos os atos necessários, embora insuficientes, e ainda, nos termos gerais, as cautelas próprias do bonus pater à face da situação (salvo estipulação adicional, que, aliás, neste caso existiu sobre a forma de risco consentido). 25° O douto acórdão recorrido não atendeu ao conceito-chave de resultado definidor da prestação, que se contrapõe aos resultados exteriores - por vezes chamados «fim da prestação», e, ainda, aos resultados subalternos (a perfuração, de que aquele exame médico é exemplo - risco esse inerente a qualquer exame de colonoscopia que a originária Autora expressamente assumiu: pontos n°s 37, 38, 53, 54 e 55 dos factos provados. 26° No âmbito da responsabilidade contratual, tendo conjugadamente em conta o disposto nos artigos 398, 762 n°2, 763, 798, 799 n° 2, 487 n° 2 e 342, todos do Código Civil, um exame de colonoscopia, inserido num âmbito alargado de acompanhamento e tratamento de um doente, consubstancia uma obrigação de meios cabendo a prova da ilicitude ao doente. 27° Ilicitude liminarmente excluída face ao consentimento informado prestado. 28° Aliás, haverá que ressaltar que, no caso de uma colonoscopia, existem riscos evidentes (aliás, dados como provados) em virtude de se tratar de um exame invasivo. 29° Não se trata de um mero exame de diagnóstico (de que se pretende apenas o "relatório"), mas sim um exame que ofende a integridade física do paciente, com os riscos inerentes a tal fato, sendo que, e havendo essa necessidade, tal exame será complementado com objetivos curativos (v. g. extração de pólipos). 30° A atuação do médico é unitária e toda ela se esgota no mesmo procedimento, o qual está na origem, seja do exame médico, seja da perfuração do intestino enquanto evento adverso 31° Quando se defende (erradamente) a irrelevância da distinção entre obrigação de meios e de resultado, o que se está a defender é que se trata - sempre - de uma obrigação de resultado...; 32° E, então, na realização de uma colonoscopia, o médico não estaria obrigado, a contrario sensu, a atuar segundo as regras da arte, utilizando o seu melhor saber, uma vez que, naquela tese, só interessaria "o resultado" (poderia violar as leges artis desde que não houvesse perfuração). 33° Trata-se de um conclusão absurda, que não se pode manter na ordem jurídica! 34° O presente caso, é diferente e diverso do que estava em causa no citado acórdão do STJ de 01/10/2015 (invocado pelo douto acórdão recorrido), que não tem aplicação no presente caso: (I) porque no caso aí julgado, não tinha havido (prova) de um consentimento expresso de risco consentido - e, aqui, tal consentimento existiu; (ii) porque, nesse mesmo processo, a prova do "processamento" da colonoscopia (digamos assim) tinha sido praticamente inexistente - e, aqui, ficou provada toda a atenta, cuidadosa e profissionalmente correta atuação do recorrido CC. 35° A "visão" do douto acórdão recorrido ("vendo em tudo" obrigações de resultado ou considerando que, na responsabilidade contratual, se impõe sempre a inversão do ónus da prova por força do disposto no art.° 799 n° 1 do C.C. - o que, na prática acaba por ser a mesma coisa), se adotada pelos nossos Tribunais, levaria, na realidade, a uma constante e injusta suscitação do regime de presunção da ilicitude do profissional de saúde: (I) teria de ser o profissional de saúde a provar - sempre - que não praticou qualquer ato ilícito e, na hipótese negativa (de não conseguir efetuar tal prova, ainda que o contrário também não fique provado) a responder por força de tal presunção; (II) tanto mais que a ilicitude não é o único pressuposto da responsabilidade subjetiva e a prova do nexo de causalidade entre o facto e o dano é muito mais fácil e simples se estiver em causa uma obrigação de resultado e não de meio. 36° O douto acórdão recorrido é nulo e como tal deve ser declarado. Caso assim se não entenda e subsidiariamente, deve ele ser revogado, por erro de interpretação do disposto nos citados preceitos e diplomas legais, e substituído por outro que decida no sentido defendido (decisão de 1ª instância) A interveniente Seguradoras EE, S.A. (seguradora da R. Hospital, S.A.) concluiu da seguinte forma: 1. A aqui recorrente não pode aceitar o entendimento perfilhado pelo Acórdão recorrido nos termos do qual se verifica objectivamente o preenchimento inevitável do requisito da ilicitude sempre que de um acto médico, mesmo quando este é autorizado e os respectivos riscos explicados ao paciente, decorre uma ofensa à integridade física do doente, tida como não querida ou não exigida pelo cumprimento do contrato. 2. Considerando que na maior parte dos actos médicos - como acontece no caso das colonoscopias - por via de regra, existe sempre uma ofensa à integridade física do paciente, para se aferir da existência da eventual verificação do requisito da ilicitude, importa proceder sempre a uma avaliação concreta do grau, da natureza e da extensão dessa ofensa em função do acto médico realizado e da finalidade da intervenção médica em causa. 3. A análise levada a cabo pelo Tribunal recorrido na apreciação do caso dos autos configura, ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, um estímulo a uma prática médica defensiva, sem assunção dos riscos próprios e moderados da actividade médica, com manifesto prejuízo da saúde pública, dos doentes e da evolução das técnicas médicas. 4. De todo o modo, sempre se dirá que mesmo segundo a perspectiva do Tribunal a quo, o pressuposto da ilicitude nunca estaria seria verificado na hipótese dos autos, pois a lesão sofrida pela primitiva autora não é nem completamente estranha ao cumprimento do contrato (era, aliás, um risco conhecido da primitiva autora, que esta mesmo assim assumiu), nem, em concreto, se pode considerar desproporcionada relativamente aos riscos normais inerentes aquela intervenção (realização de uma colonoscopia). 5. Na análise que levou a cabo, o Tribunal a quo não atendeu à circunstância de o cólon da autora se encontrar fragilizado, por virtude de aquela ter sido anteriormente submetida a uma intervenção cirúrgica para remoção de tumor maligno, diagnosticado pelo segundo réu num exame idêntico. 6. De todo o modo, face à factualidade que vem dada como demonstrada, não se divisa, na actuação dos réus qualquer conduta errada ou negligente que indicie a prática por parte de qualquer um deles de algum ilícito. 7. Pelo contrário, a factualidade que vem dada como provada indicia que o segundo réu actuou com todo o cuidado na execução do exame aqui em apreço, agindo mais lentamente do que é habitual, visto estar perante um colón mais fragilizado e insuflando uma quantidade maior de ar, para mais facilmente permitir avanço do colonoscópio. 8. Resulta bem assim da factualidade provada que nada fazia suspeitar ao segundo réu, ou à enfermeira e ao anestesista que acompanharam a primitiva autora, durante o período em que esta esteve no recobro, que teria ocorrido uma perfuração do cólon durante o exame a que a mesma fora submetida. 9. Em suma, na conduta do segundo réu não se vislumbra qualquer desvio do dito padrão de comportamento diligente e competente, designadamente uma desconformidade entre a actuação e as "leges artis", seja por ter realizado o exame de modo deficiente, seja por ter omitido actos necessários e adequados à identificação e tratamento da sobredita perfuração. 10. O mesmo diz relativamente à primeira ré, já que não se vislumbra no seu comportamento qualquer acto, ou omissão susceptível de poder ser configurada como contrária às "leges artis". 11. Daí que, salvo o devido respeito, não seja possível censurar civilmente a conduta dos réus, os quais deverão ser absolvidos do pedido, com a consequente absolvição da ora recorrente. 12. Ainda que assim se não entenda, o que apenas se admite para efeitos do presente raciocínio, sempre se dirá que, face à factualidade que vem dada como demonstrada, não há fundamento que justifique a condenação da primeira ré e, consequentemente, da aqui recorrente, tal como estabelecida pelo Tribunal a quo. 13. Na verdade, não resultou demonstrado que tipo de contrato foi celebrado (se é que o foi) entre a mencionada AA e a primeira ré, não se sabendo nomeadamente se aquela foi internada nas instalações desta última como doente particular do segundo réu, ou se contratou os serviços directamente com o hospital e em que termos. 14. A decisão proferida pelo Acórdão recorrido quanto à primeira ré e à aqui recorrente é inaceitável, dado que nada se provou nos autos relativamente ao comportamento interventivo daquela no acto médico realizado à primitiva autora, inexistindo, por isso, a verificação dos pressupostos da responsabilidade contratual da primeira ré, nomeadamente qualquer ilicitude que tenha sido por si praticada e muito menos a sua culpa. 15. Daí que a primeira ré deva ser absolvida do pedido, o que desde já se requer, com a consequente absolvição da ora recorrente. 16. Mas mesmo que assim se não entendesse, o que apenas se equaciona para efeitos do presente raciocínio, sempre importa referir que Acórdão recorrido peca também nos termos em que condenou a recorrente, sem atender ao contrato de seguro que a legitima para os termos da presente acção. 17. A este propósito importa ter presente que relativamente à cobertura de "Responsabilidade Civil Profissional" o contrato de seguro aqui em apreço apenas garante a Responsabilidade Civil "...profissional de médicos que pertençam aos quadros efectivos do hospital", tal como consta da al. h) do n°. 2 das Condições Particulares da Apólice, isto é do documento de fls. 221 a 234 dos autos, junto com a contestação da aqui recorrente e cujo teor foi dado por reproduzido na matéria de Facto Provada (vide respectivo Ponto 57). 18. Ora, não consta dos autos e, muito menos, está dado como provado que o segundo réu Dr. CC alguma vez tenha integrado os quadros efectivos do Hospital BB, ou que os integrasse, aquando da realização do exame médico aqui em discussão. 19. Não estando a actividade exercida pelo médico Dr. CC nas instalações da primeira ré abrangida pelo contrato de seguro celebrado com a ora recorrente, deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva a ora recorrente do pedido. 20. Ainda que assim não fosse - o que apenas se admite para efeitos do presente raciocínio - cumpre salientar que, apesar de ser ter demonstrado que a cobertura de "Responsabilidade Civil Profissional" prevista no contrato de seguro celebrado com a ora recorrente, tem estabelecida uma franquia de 10%, sobre o valor do sinistro, com o mínimo de 1.000,00€ (vide ponto 57 da Fundamentação de Facto e documento de fls 221 a 234 dos autos), o Acórdão recorrido não procedeu à sua dedução no momento da atribuição da indemnização que arbitrou aos recorridos. 21. Em face do exposto, importa proceder à dedução à indemnização que venha a ser fixada aos recorridos um montante equivalente a 10% do valor dessa indemnização, o qual não poderá ser inferior a 1.000,00€. 22. Quando assim se não entenda, sempre se dirá que o montante arbitrado pelo Tribunal a quo a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela primitiva autora se mostra excessivo e desajustado, se tivermos em conta não apenas os factos dados como provados, mas também a orientação que vem sendo seguida pela nossa Jurisprudência em situações análogas e até mais gravosas. 23. Importa salientar a este propósito que a estabilização [a estabilização] total da lesão sofrida pela mencionada AA, em consequência da perfuração cólica ocorrida, deu-se cerca de 8 meses depois, não havendo notícia nos autos que aponte no sentido de esta ter ficado a padecer de qualquer sequela permanente decorrente dos factos aqui em apreço. 24. Por outro lado, também não se demonstrou que, após 07.011.2011, a indicada AA tivesse sofrido quaisquer dores, incómodos, ou outros padecimentos, relacionados com os factos aqui em discussão, ou mesmo que aquela se visse na necessidade de se submeter a qualquer consulta, ou tratamento que a obrigasse a alterar as suas rotinas diárias. 25. Importa, bem assim, salientar que, a perfuração do cólon que veio a ocorrer e, consequentemente, todos os efeitos e constrangimentos a ela inerentes, foram, de certo modo, consentidos pela primitiva autora, que, conhecendo a possibilidade da verificação desse risco, ainda assim o aceitou, face aos benefícios que o aludido exame lhe poderia trazer. 26. Note-se que o segundo réu tinha já anteriormente diagnosticado à primitiva autora um tumor maligno, por via de um exame complementar de diagnóstico idêntico que realizou, o que permitiu que, tal tumor, lhe viesse a ser mais tarde removido. 27. Acresce que no caso aqui em apreço sabemos que a compensação que venha a ser atribuída por danos morais sofridos pela indicada AA jamais cumprirá, por força das circunstâncias conhecidas, a sua função reparadora, uma vez que será atribuída aos seus herdeiros e não à própria. 28. Atento o supra exposto, considerando a factualidade que vem dada como provada e a orientação que vem sendo seguida pela nossa Jurisprudência em situações análogas (nomeadamente as que se citam no corpo destas alegações), é a recorrente da opinião de que se mostra mais adequada a quantia de 15.000,00 € como indemnização pelos danos morais sofridos pela primitiva autora. 29. A este montante sempre haverá de ser deduzida a franquia de 10%, com um mínimo de 1.000,00€, tal como estabelecido no contrato de seguro celebrado entre a ora recorrente e a primeira ré 30. O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 342.°, 483.°, 800.°, 496.°, 562.° e 566.° do Código Civil. Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso. A interveniente GG, S.A. (seguradora do R. CC) concluiu da seguinte forma: 1. Os autos versam a questão da responsabilidade civil médica, visando os recorridos a fixação de indemnização por alegados danos patrimoniais e não patrimoniais, causados à malograda AA e que atribuem à realização de endoscopia digestiva baixa levada a cabo pelo R. médico nas instalações do R, HOSPITAL. 2. Aos recorridos assistirá o direito à indemnização mediante a prova de que os danos foram causados pela falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. 3. No caso concreto, e de acordo com o alegado, o dano traduz-se na alteração das condições de saúde da falecida AA. 4. Tal como resulta do douto acórdão em apreciação no presente recurso a páginas 31, quando o médico privado ou a entidade privada prestadora de cuidados de saúde, por causa que lhe seja imputável não efetue, ou efetue defeituosamente, a prestação de cuidados de saúde a que se obrigou, causando danos ao doente, credor dessa prestação, por regra, constituísse na obrigação de reparar o prejuízo causado - artigos 798° e 562°, ambos do Código Civil. Como assim, é preciso que o facto do não cumprimento (ação ou omissão) se revista de ilicitude, a qual, no domínio da responsabilidade contratual, se traduz numa relação de desconformidade entre o comportamento devido, que seria necessário para a realização da prestação devida, e o comportamento tido pelo agente (artigo 762° do Código Civil). 5. A responsabilidade extracontratual surge como consequência da violação de direitos absolutos, que se encontram desligados de qualquer relação pré-existente entre o lesante e o lesado (obrigação de indemnizar em consequência de um acidente de viação, por exemplo), a responsabilidade contratual pressupõe a existência de uma relação intersubjetiva, que atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa mesma relação (caso típico de um contrato). 6. Nesta conformidade, aceita-se que a responsabilidade civil médica admite ambas as formas de responsabilidade referidas. É que o mesmo facto poderá, ao mesmo tempo, representar a violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual. Mas, no domínio da responsabilidade aquiliana, apenas a responsabilidade civil fundada em factos ilícitos é admissível (e não pelo risco ou por facto lícitos). 7. Em situações de concurso entre uma e outra das responsabilidades, e não olvidando que em última análise toda a responsabilidade civil radica num princípio geral de "neminem laedere", surgindo a responsabilidade contratual como uma das aplicações possíveis deste princípio, a resposta deve encontrar-se no regime da responsabilidade contratual, entendendo-se que esta subsume a responsabilidade extracontratual (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de setembro de 2012, processo n.° 512/10.8TCFUN.L1-2, sendo relatora TERESA ALBUQUERQUE). 8. Os autos versam a questão da responsabilidade civil pela prática de ato médico, entendido o conceito como ato executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnostica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas. 9. Com efeito, a autora mediante o pagamento de um preço solicitou ao réu, enquanto médico gastrenterologista, a realização de um exame médico da sua especialidade, o que exprime vinculação contratual. 10. A atuação do médico perante o doente/paciente pode, nuns casos, reconduzir-se às obrigações de meios e, noutros, às obrigações de resultado, dependendo o enquadramento numa ou noutra da ponderação casuística da natureza e do objetivo do ato médico (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de junho de 2014, processo nº 11279/09.2TBVNG.P1, sendo relator M. PINTO DOS SANTOS). 11. No caso em apreço, provou-se que a autora foi submetida a um exame de endoscopia digestiva baixa em regime de acompanhamento; o exame em causa demorou cerca de 50 minutos; uma colonoscopia, em média, num paciente cuja execução da mesma não comporte especial dificuldade, demora cerca de 15-20 minutos; a duração do exame deveu-se à circunstância de se tratar de cólon anteriormente sujeito a uma operação de retirada de um tumor com necessidade de insuflar mais ar do que em outras situações para facilitar a progressão do colonoscópio; a taxa de perfuração cólica para colonoscopias está descrita como sendo da ordem dos 0,1 a 0,8%; a causa de uma perfuração do colon durante uma colonoscopia pode não derivar de incorreta introdução ou manuseamento do aparelho ou excessiva introdução de ar, podendo ter origem em cólon com certos locais com processos aderenciais derivados de anteriores operações, a configuração do próprio cólon (sua angulação) ou a existirem segmentos eólicos isolados que podem conduzir a um aumento de pressão intracólica durante a colonoscopia. 12. A Autora foi submetida à colonoscopia com vista a verificar da evolução da sua doença, porquanto em 15 de janeiro de 2010 tinha-se realizado um outro exame de colonoscopia digestiva baixa e detetado um tumor maligno. 13. «É de considerar que em especialidade como medicina interna, cirurgia geral, cardiologia, gastroenterologia, o especialista compromete-se com uma obrigação de meios – o contrato que o vincula ao paciente respeita apenas às leges artis na execução do ato médico; a um comportamento de acordo com a prudência, o cuidado, a perícia e atuação diligentes, não estando obrigado a curar o doente. Mas especialidades há que visam não uma atuação direta sobre o corpo do doente, mas antes auxiliar na cura ou tentativa dela, como sejam os exames médicos realizados, por exemplo, nas áreas da bioquímica, radiologia e, sobretudo, nas análises clínicas» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de junho de 2014, processo 1279/09.2TBVNG.P1, sendo relator M. PINTO DOS SANTOS). 14. Independentemente do facto de a endoscopia a realizar ter ou não fins terapêuticos ou curativos, este exame traduz-se numa intervenção de natureza invasiva, implica a introdução e manuseamento do colonoscópio no organismo do paciente, possibilitando a observação do intestino com vista ao diagnóstico e terapêutica, tais como, a recolha de fragmentos da mucosa (biópsia), a remoção de pólipos (polipectomia) ou outros. 15. Na situação dos autos o médico, ora réu, ao aceitar fazer a colonoscopia apenas se obrigou a desenvolver e desempenhar a sua atividade colocando o seu saber à disposição da autora para assim alcançar o fim pretendido, o diagnóstico e eventual definição de terapêutica. 16. Pretendia-se averiguar se existia qualquer anomalia, o que impunha a introdução do colonoscópio o organismo da autora para observação direta do intestino, o médico comprometeu-se a desenvolver prudente e diligentemente esta intervenção, mas sem assegurar que efetivamente seria possível a observação correta do intestino, a recolha de fragmentos da mucosa (biópsia) ou a remoção de pólipos (polipectomia) (v. g. a obrigação do médico de empregar o seu saber tendente à cura do doente, mas não se comprometendo à cura efetiva). 17. O médico não pode assegurar o resultado, nem tal lhe pode ser exigido, a falta de obtenção do resultado almejado com o exame pode resultar de factos que lhe são alheios. Alguns doentes apresentam angulações muito acentuadas do intestino, algumas congénitas, outras adquiridas após processos inflamatórios, o que inviabiliza ou dificulta a progressão do endoscópio. 18. A presença de lesões que obstruem significativamente o interior do intestino, também inviabiliza a progressão do aparelho, impedindo a exploração intestinal acima dessa lesão. 19. A realização da colonoscopia à autora não era uma intervenção rotineira, conforme resulta demonstrado nos autos, o seu historial clínico obrigou o médico a redobrados cuidados. 20. Constatando-se a perfuração cólica, mas não provado, como alegado pela autora, que tal se deveu a violação grave das leges artis, fica por determinar a sua causa, tanto mais que o exame comporta alguns riscos e a perfuração cólica podia ter resultado de a autora ter sido sujeita a uma operação prévia de retirada de tumor e existirem no local processos aderenciais derivados dessa intervenção cirúrgica, o que pode ter conduzido a um aumento de pressão intracólica durante a colonoscopia e ter dado causa à perfuração. 21. O réu médico não pode ser responsabilizado civilmente com base em incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso. 22. Para a procedência da ação impunha-se a demonstração de algum comportamento do médico que, objetivamente considerado, se mostrasse contrário ao Direito, com desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado. 23. Na opinião da ora recorrente, da matéria assente não se consegue descortinar o que o médico fez e não deveria ter feito ou o que não fez e deveria ter feito. 24. Não é suficiente a alegação e prova da não obtenção de um dado resultado. É necessário provar a desconformidade objetiva entre os atos praticados pelo médico e os que lhe são exigíveis, atendendo à situação concreta do paciente. No campo da medicina, essa desconformidade objetiva que é a ilicitude, afere-se pela violação das leges artis. Significa portanto, que a ilicitude na atuação do médico traduz-se no comportamento que aquele tenha tomado que contrarie as guide lines e standards de atuação clínicos, atendendo à situação concreta. 25. Não resulta da matéria de facto provada nenhum comportamento que o R. devesse ter tomado em obediência às boas práticas médicas atendendo ao caso concreto. O que vale por dizer que não existe nenhum facto ilícito gerador do dever de indemnizar. 26. «Na responsabilidade contratual por negligência em ato médico, compete ao lesante provar a não culpa, mas a ilicitude da atuação deve ser provada pelo lesado. Ilicitude e culpa no ato médico danoso são conceitos diferentes, indicando o primeiro o que houve de errado na atuação do médico e o segundo se esse erro deve ser-lhe assacado a título de negligência» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de setembro de 2011, processo 674/2001 P.L.S1, sendo relator BETTENCOURT DE FARIA). 27. Ao decidir diferentemente o douto acórdão sob recurso violou as disposições dos artigos 483.°, 798.°, 799.° e 342.°, do Código Civil. 28. Se se entender não assistir razão à recorrente, contrariamente ao que aqui se defende e que se admite por mero dever de patrocínio, o presente recurso destina-se ainda à reapreciação por este Tribunal do douto acórdão que decidiu arbitrar uma indemnização por dados não patrimoniais no valor de €28.000,00. 29. Existem danos não patrimoniais sempre que é ofendido objetivamente um bem imaterial, cujo valor é insuscetível de ser avaliado pecuniariamente. 30. E o montante da indemnização, nos termos dos artigos 496.°, n.° 3 e 494.° do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente aditados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda (ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 5a edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485). 30. Na situação em apreciação provou-se que a recorrida em virtude da perfuração cólica sofreu três intervenções cirúrgicas, vários período de internamento hospitalar, sofreu dores, teve de usar um saco de colostomia (para armazenar as fezes), carecendo durante cerca de oito meses de ajuda de terceiras pessoas para se vestir e despir, assim como para cuidar da sua higiene pessoal, sentiu-se diminuída, sofreu incómodos e mal-estar e abalo moral. 31. Sem embargo destas lesões e do sofrimento intrínseco, o dano sofrido não assume a gravidade que é traduzida pelo valor compensatório fixado, isto atendendo às situações apreciadas e valorizadas pela jurisprudência mais recente. 32. As circunstâncias específicas do caso concreto demandam uma ponderação do montante equivalente a uma compensação digna de todo o sofrimento, sem olvidar que a mesma se dirige, primordialmente, para satisfação do próprio lesado, na perspetiva de minimizar a sua dor e as suas perdas, por isso se impõe que seja séria e que corresponda à dignidade dos valores lesados mas, por outro lado, levando em consideração a relatividade de cada caso e as circunstâncias da vida que evidenciam, quotidianamente, que valores mais elevados são infringidos. 33. Para alcançarmos esta harmonia importa considerar os critérios jurisprudenciais como forma de evitar desigualdade, apelando à dimensão e abrangência dos valores imateriais efetivamente tutelados. 34. Assim sendo, à luz dos critérios jurisprudenciais mais recentes (atente-se nos acórdão citados no corpo destas alegações) crê-se que a indemnização arbitrada em primeira instância é excessiva, tendo o tribunal feito errada aplicação e interpretação do disposto no artigo 496.°, do Código Civil. Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que absolva os RR. e as intervenientes do pedido. Subsidiariamente, pede que seja reduzido o montante fixado para compensação por danos não patrimoniais. A Recorrida herdeira habilitada AA contra-alegou, formulando as seguintes conclusões: A) Como decidido e sumariado no douto Acórdão recorrido, "se a prestação de serviços médicos se reconduz à realização de um exame-colonoscopia-, sem fins curativos ou terapêuticos, é de considerar verificado o pressuposto da ilicitude quando a lesão sofrida (perfuração cólica) seja em altíssimo grau estranha ao cumprimento do fim do contrato (probabilidade inferior a 1%) e a sua gravidade resulte desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela intervenção ou acto médico." B) Na verdade, "nas sobreditas circunstâncias, o consentimento informado do doente (o conhecimento de risco de perfuração cólica) não exclui a ilicitude do acto médico, pois que o consentimento não abrange a lesão física perpetrada." C) Posto que "verificada a ilicitude, por força do preceituado no art. 799°, n° 1 do Código Civil incumbe ao médico afastar a presunção de culpa, comprovando que os procedimentos adoptados eram os exigidos pelas "leges artis" aplicáveis ao caso ou que a lesão sobreveio por causa de força maior e/ou facto imputável ao lesado". D) Ao contrário do que pretende o recorrente CC, da matéria de facto dada como provada na sentença de 1ª Instância não é possível de forma alguma dar por ilidida a referida presunção de culpa. E) Aliás, ainda que o douto Acórdão "a quo" tivesse errado na apreciação da prova, o que de todo não se verifica, tal facto não poderia ser objecto do presente recurso de revista, como decorre do disposto no art.° 674°, n° 3, do C.P.C F) Inexiste, ao contrário do que pretende o recorrente CC, qualquer contradição entre os fundamentos da decisão, os factos provados e o decidido, susceptível de gerar a pretendida nulidade do Acórdão recorrido. G) O Acórdão em questão destrinçou de forma detalhada e profunda no domínio da responsabilidade civil médica, a obrigação de meios da obrigação de resultado, não procedendo a alegação segundo a qual dele resultaria a irrelevância da distinção entre obrigação de meios e de resultado, acabando por considerar que se trataria sempre de uma obrigação do resultado, tese que não encontra qualquer sustentação no douto Acórdão "a quo". H) Ao contrário do que sustenta o recorrente Hospital BB, no douto Acórdão não existe qualquer contradição entre os fundamentos apresentados e a conclusão deles extraída, inexistindo a invocada nulidade nos termos do art. 615°, n° 1, c), do C.P.C. I) Posto que como resultou clara e inequivocamente provado nos autos, do exame em causa resultou a perfuração cólica que era em altíssimo grau estranha ao cumprimento do fim do contrato (probabilidade inferior a 1%) e a sua gravidade desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela concreta intervenção ou acto médico. J) De resto, uma coisa é o facto ilícito resultante de ter havido a referida perfuração cólica, outra coisa bem distinta é, uma vez verificada a ilicitude, incumbir aos RR afastar a presunção de culpa por força do disposto no art. 799°, n° 1, do Código Civil, o que, atendendo aos factos dados como provados, não ocorreu. K) Improcede a alegação do recorrente Hospital BB, segundo a qual caberia à Autora o ónus da prova da ilicitude como facto constitutivo do direito da indemnização quando aquela decorre "ipso facto" da perfuração do cólon verificada, no que o Acórdão recorrido acolhe e subscreve o entendimento sufragado pelo douto Acórdão desse Supremo Tribunal (cfr. Acórdão de 1 de Outubro de 2015, 7ª Secção, Relatora Cons.ª Maria dos Prazeres Beleza, tirado no Recurso n.° 2104/05.4TBPVZ.P.S1, disponível in www.dgsi.pt), em situação análoga à dos autos. L) O Acórdão "a quo" considerou, com total congruência, que havendo facto ilícito caberia ao R. médico afastar a presunção de culpa por força do disposto no art. 799°, n° 1, do Código Civil, comprovando que os procedimentos adoptados eram os exigidos pelas «leges artis» ou que a lesão sobreveio por causa de força maior ou facto imputável ao lesado, o que não provou. M) Improcede, pois, a tese do Hospital segundo a qual a decisão recorrida estaria ferida de nulidade por não especificar os fundamentos de facto e de direito que a justificam. N) Não se mostra igualmente procedente a alegação do recorrente Hospital segundo a qual a factualidade assente não evidencia que o Réu médico tivesse actuado como auxiliar no cumprimento dos serviços contratados entre a Autora e o Réu Hospital, concluindo não ter aplicação o disposto no art. 800° do Código Civil, uma vez que a tese agora defendida pelo Recorrente Hospital contradiz o teor da contestação que apresentou na 1ª Instância. O) A questão suscitada ex novo pela recorrente seguradora segundo a qual não estaria provado que o réu Dr. CC alguma vez tivesse integrado os quadros efectivos do Hospital BB, ou que os integrasse, aquando da realização do exame médico, não foi suscitada oportunamente nem foi considerada na decisão de 1ª Instância, pelo que é intempestiva, não podendo constituir fundamento da presente Revista. P) Com efeito, não pode agora em sede de recurso de Revista suscitar tal dúvida sobre a integração, ou não, do Réu Dr. CC nos quadros efectivos do Hospital BB, matéria que notoriamente está em contradição com os factos singelos dados como provados na 1ª Instância e que oportunamente não impugnou. Q) Quanto ao carácter pretensamente excessivo da quantia atribuída por danos não patrimoniais (de € 28.000,00) - e atento o extenso rol de danos sofridos pela A. e dados como provados - não se afigura passível da menor crítica a indemnização fixada pelo Acórdão recorrido. Cumpre decidir. 3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias): 1 - A Autora nasceu a 19.01.1928. 2 - A Autora foi paciente do Réu CC que exerce as funções de médico gastrenterologista no Réu Hospital [BB, SA] desde 1.03.1999. 3 - O Réu Hospital tem por objecto a prestação de cuidados de saúde. 4 - No dia 15.03.2011, pelas 17 horas, a Autora foi submetida a um exame de endoscopia digestiva baixa nas instalações do Réu Hospital pelo Réu CC em regime de consulta de acompanhamento. 5 - O Réu CC conhecia a situação clínica anterior da Autora. 6 - O exame em causa demorou cerca de 50 minutos. 7 - Uma colonoscopia, em média, num paciente cuja execução da mesma não comporte especial dificuldade, demora cerca de 15-20 minutos. 8 - A Autora, depois da realização do exame, foi para o recobro, de onde saiu pelas 20:00 horas. 9 - Não foram dadas à Autora, ao ser-lhe dada alta, recomendações médicas em concreto, nomeadamente quanto ao que deveria comer. 10 - Quando saiu do Réu Hospital, a Autora sentia desconforto na zona da barriga caminhando com a ajuda primeiro de uma enfermeira e depois da sua filha. 11 - No dia 16.03.2011, a Autora sentia desconforto na zona da barriga, com dores e mal-estar tendo, depois de ter telefonado de manhã para o Dr. LL e à tarde para o Réu Hospital, por volta das 23 horas deu entrada no então denominado Hospital Privado …., actual Hospital MM onde realizou radiografia abdominal e toráxica, tomografia axial computorizada (TAC) ao abdómen e zona pélvica bem como exames hematológicos. 12 - Nesse Hospital Privado … foi concluído que a Autora apresentava exuberante quantidade de ar livre intra-abdominal (intra e retro peritoneal) sugerindo perfuração de víscera oca, tinha pequena quantidade de líquido livre na cavidade pélvica, aspectos imagiológicos compatíveis com cirurgia cólica prévia. Foi igualmente concluído que a Autora apresentava distensão abdominal e dor localizada nos quadrantes inferiores e que a radiografia abdominal não foi possível de interpretar mas que com a TAC se confirmou pneumoperitoeu. 13 - A pedido da Autora, esta foi encaminhada para o Hospital NN, onde foi internada no dia 17.03.2011, às 01h e 25 m, apresentando no serviço de urgência abdómen distendido, timpanizado, com dores à palpação difusa sem sinais de irritação peritoneal, tendo sido submetida a laparotomia, constatando-se perfuração cólica e realizou colostomia lateral sobre bagette. 14 - A Autora teve alta do Hospital NN, em 30.03.2011. 15 - Com o consentimento da Autora, esta foi admitida no Hospital OO no mesmo dia 30.03.2011 para realização de medidas de suporte e tratamento, por motivo de infecção e deiscência de ferida operatória (com evisceração contida), desnutrição e cuidados de manuseamento e colostomia derivativa, tendo alta a 9.04.2011, em condição estável, apirética, a tolerar dieta com reforço proteico e vitamínico, com necessidade de suporte de terceira pessoa para algumas actividades da vida diária e para a realização de pensos. 16 - Foi prevista na data da alta pelo Hospital OO um novo internamento de curto prazo para desbridamento cirúrgico da ferida operatória e enxerto de pele sendo considerada futura candidata a reconstrução do trânsito cólico e reparação da hérnia incisional. 17 - Em 12.04.2011, a Autora foi sujeita a cirurgia plástica pelo Dr. PP para fechamento da deiscência da pele mediante enxerto em rede tendo ficado internada depois dessa cirurgia até 18.04.2011. 18 - Em 2.11.2011, a Autora foi internada na Ordem QQ para encerramento da colostomia, tendo aí ficado internada até 17.11.2011. 19 - As operações cirúrgicas referidas em 13., 15., 17. e 18. tiveram como causa directa a perfuração referida em 13. ocorrida no exame de colonoscopia de 15.03.2011. 20 - O Réu não referiu à Autora nem à filha que tinha ocorrido perfuração do cólon na realização do exame do dia 15.03.2011. 21 - A Autora, depois do exame, sentia desconforto e mal-estar abdominal, com a sensação de ter «duas barrigas» e sentir a barriga como «um tambor». 22 - No recobro, foi colocada uma sonda na Autora para a aliviar retirando o ar que tinha sido colocado no intestino, tendo a Autora passado a sentir-se melhor. 23 - Pessoal de enfermagem do Réu Hospital informou a filha da Autora que esta se encontrava no recobro em bom estado de saúde. 24 - O Réu CC realizou a 25.01.2010 um outro exame de colonoscopia digestiva baixa à Autora tendo-lhe detectado um tumor maligno. 25 - Antes dessa colonoscopia realizada em 2010, a 29.12.2009 o mesmo CC iniciou colonoscopia à Autora interrompendo-a por falta de preparação adequada do colon. 26 - Desde o fim do exame realizado pelo Réu CC a 15.03.2011 e até Abril de 2011 a Autora sentiu dores. 27 - Na operação realizada a 17.03.2011 no Hospital NN, Porto, ocorreu abertura do abdómen da Autora por uma anterior abertura cicatrizada. 28 - Com essa abertura, depois de cicatrizada, a Autora sentiu mais cansaço. 29 - Por força dessa abertura, a Autora passou a usar cinta que lhe causava desconforto e a nível estético a perturbou não usando roupas que permitissem que fosse vista a cicatriz, nomeadamente na praia. 30 - A Autora sentia-se desconfortável com o saco de colostomia que não aplicava sozinha, necessitando de ajuda de terceiros para o mudar, tendo mesmo rebentado por algumas vezes, incluindo de noite, implicando a toma de banho e mudança de roupa pessoal e de cama. 31 - Depois da intervenção cirúrgica do dia 17.03.2011 e até Novembro de 2011, a Autora ficou dependente de terceiros para se vestir e despir, tratar da sua higiene. 32 - O filho da Autora, que vive com a mesma, auxiliou-a, incluindo na mudança de saco, tomas de banho, mudança de roupa, dormindo inclusive a Autora no seu quarto durante algum tempo. 33 - Por usar saco de colostomia, a Autora sentiu-se diminuída, com perda de auto-estima e vergonha da sua situação, reduziu as suas saídas de casa e convivência com amigas. 34 - Antes da colocação de tal saco, a Autora era uma pessoa alegre, autónoma, que gostava de sair sozinha ou com amigas, fazia «Pilates», que se destinava também à melhora da sua escoliose. 35 - Depois da colocação do referido saco, a Autora deixou de praticar «Pilates». 36 - Por força da acima referida perfuração do colon, a Autora teve as seguintes despesas: » 1. 275, 00 € – operação realizada a 12.04.2011; » 300 € - serviços médicos prestados durante o internamento da operação realizada em 12.04.2011 pelo Dr. RR; » 400 € - assistência hospitalar e realização de pensos à Autora no internamento ocorrido a 30.03.2011; » 1. 830, 09 € - internamento na Ordem QQ pelo internamento de 12.04 a 18.04.2011; » 60 € - consulta de cirurgia geral na Ordem QQ; » 2. 753, 25 € – internamento na Ordem QQ de 2.11. a 7.11.2011; » 2. 000, 00 € - pagamentos de actos médicos da cirurgia de 2.02.2011; » 1 € em paracetamol, 12, 60 € em vitaminas, 1, 18 € em sabão, 0, 61 € em compressas, 41, 45 € (um saco de colostomia), 0, 90 € em ligadura, 2, 75 € em adesivo, 1, 71 € em soro fisiológico, 3, 40 € em compressas, 2, 25 € em compressas, 2, 25 € em compressas, 1, 70 € em compressas, 15, 82 € em medicamentos, 41, 11 € em material ortopédico e/ou fisiátrico. 37 - A Autora conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, tendo-lhe sido transmitido em 29.12.2009, 25.01.2010 e 15.03.2011, informação relativa à realização dos exames. 38 - A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos. 39 - Antes da realização do exame, foi enviado pelo Réu Hospital um e-mail à filha da Autora com as recomendações para a realização da colonoscopia. 40 - A duração do exame referida em 6. deveu-se à circunstância de se tratar de um colon anteriormente sujeito a uma operação de retirada de um tumor com necessidade de se insuflar mais ar do que em outras situações para facilitar a progressão do clonoscópio. 41 - O exame foi realizado com sedação geral da Autora. 42 - No decurso do exame não foi detectada a perfuração do colon, sem sinais de sangue no mesmo. 43 - O Réu CC tentou retirar a maior quantidade de ar possível na fase final do exame. 44 - Parte do ar que foi insuflado para o intestino delgado, aumentando a distensão do abdómen da Autora. 45 - Depois do exame, na sala de recobro, a Autora esteve sempre vigiada pelo anestesista e enfermeira. 46 - No recobro, o Réu CC analisou a Autora, apalpou-lhe o abdómen e referiu-lhe que tinha muito ar. 47 - No recobro, a Autora foi à casa de banho evacuar ar e revelou melhorias. 48 - A Autora comeu bolachas e bebeu chá no recobro e andou a pé ainda que com auxílio de terceiros. 49 - No recobro não foram detectados sinais de perfuração cólica, estando a tensão arterial da Autora estável e em valores adequados à idade desta, sem febre e sempre consciente. 50 - Tais sinais de perfuração cólica podem ser a presença de sangue na realização do exame, contratura abdominal, dor aguda, vómitos, febre, incapacidade de o doente se alimentar, levantar ou andar. 51 - Se o Réu CC tivesse detectado indícios de perfuração do cólon da Autora, não teria permitido a sua saída e determinava a realização de exames para o aferir e se fosse confirmada seria, em princípio, sujeita a intervenção cirúrgica. 52 - Depois da alta, a Autora não conseguiu falar com o Réu CC por telefone. 53 - A taxa de perfuração cólica para colonoscopias diagnóstica está descrita como sendo da ordem dos 0,1 a 0,8%. 54 - A causa de uma perfuração do colon durante uma colonoscopia pode não derivar de incorrecta introdução ou manuseamento do aparelho ou excessiva introdução de ar, podendo ter origem em cólon estar em certos locais com processos aderenciais derivados de anteriores operações, a configuração do próprio colon (sua angulação) ou existirem segmentos cólicos isolados que podem conduzir a um aumento de pressão intracólica durante a colonoscopia. 55 - A perfuração do colon durante a colonoscopia pode iniciar-se com uma microfissura, pode a perfuração estar oculta nomeadamente por uma prega do intestino ou pela parede do mesmo. 56 - O Réu CC é um gastroenterologista conceituado, com mais de 30 anos de experiência, tendo realizado inúmeros exames como o realizado à Autora. 57 - Por contrato titulado pela apólice n.º 0001…2 foi transferida para a interveniente “ Companhia de Seguros DD, SA “ a responsabilidade civil imputável ao Réu Hospital por lesões materiais ou corporais causadas involuntariamente a pacientes ou terceiros em geral sendo os capitais contratados de 1. 250. 000, 00 para «Responsabilidade Civil Exploração», com franquia de 10 %, sobre o valor do sinistro, com um mínimo de € 250, 00, 1. 250. 000, 00 para «Responsabilidade Civil Profissional», com franquia de 10% sobre o valor do sinistro, com um mínimo de € 1. 000, 00, conforme documento a fls. 221 a 234 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido. 58 - Por contrato titulado pela apólice n.º 0084…6 foi transferida para a interveniente “FF - Companhia de Seguros, S.A.” a responsabilidade civil imputável ao Réu CC por danos causados a terceiros no exercício da sua profissão de gastroenterologista de € 300. 000, 00 para «Responsabilidade Civil Exploração» e € 600. 000, 00 para «Responsabilidade Civil Profissional», conforme documento a fls. 246 a 265 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido. Foram dados como não provados os seguintes factos: 1) O Réu CC exerça funções no «Gabinete de Endoscopia Digestiva-Doutor CC & Doutor SS, Lda.», Ordem do TT. 2) O exame referido em 4), dos factos provados tenha durado até às 20.30 horas. 3) A Autora levasse consigo o seu processo clínico. 4) Quando a Autora saiu do Réu «Hospital.,.» estivesse com dores intensas na barriga. 5) O Réu CC tenha dito à Autora e filha que o exame de 15/03/2011 tinha sido difícil. 6) A Autora tenha sido incapaz de realizar movimentos incluindo abdominais para o seu alívio. 7) A Autora tenha repetido várias vezes ao Réu CC «entrei bem e saio daqui muito mal». 8) O pessoal do Réu «Hospital, .. » tenha ignorado as queixas da Autora . .... " 9) Quando a Autora saiu do Réu «Hospital, .. » o seu abdómen estivesse anormalmente inchado e estivesse incapaz de andar sozinha. 10) À Autora tenha sido unicamente recomendado pelo Réu CC que tinha de «ficar a chá» no dia 16/03/2011. 11) A Autora tenha sentido dores duramente meses após 15/03/2011. 12) A cicatriz no abdómen da Autora referida em 27) tenha 15 cms. por 3,5 cms. e exista por causa da perfuração no colon causada pelo exame realizado pelo Réu CC. 13) A Autora por causa da perfuração no colon ocorrida no dia 15/03/2011 gaste 1 073,93 EUR em medicamentos, 152 EUR em cintas, 137,65 EUR em exames médicos, 228,50 EUR em tratamentos de fisioterapia, 200 EUR em deslocações, 1 000 EUR com assistência no domicílio. 14) À Autora tenha sido expressamente referido pelo Réu CC ou por algum profissional do Réu «Hospital, .. » que por estar em causa um cólon operado e o estado geral do mesmo cólon estar mais debilitado face à operação ao tumor, o exame consubstanciava um maior risco. 15) Tenha sido dito à Autora que o exame ia demorar mais tempo por que tinham de se adotar cuidados acrescidos. 16) À Autora, no fim do recobro, tenha sido aconselhado a comer mais bolachas e beber chá. 17) Depois da alta, a Autora não tenha contactado o Réu «Hospital. .. ». 18) Os anos concretos de experiência do Réu CC e o número de colonoscopias que já realizou. 19) O Réu «Hospital... » tenha entregue à Autora ou à sua filha a denominada nota informativa 302 cuja cópia consta a fls. 162 164, seja em dezembro de 2001, janeiro de 2010 ou março de 2011, previamente aos exames referidos nos factos provados. 4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos delimita-se pelas conclusões dos mesmos. Assim, nos presentes recursos, estão em causa as seguintes questões: Recurso da R. Hospital BB, S.A.: - Nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto (art. 615º, nº 1, alínea b), do CPC); - Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC); - Não verificação do pressuposto da ilicitude da conduta do R. CC; - Não verificação do pressuposto da culpa da conduta do R. CC; - Inexistência de relação contratual entre a A. e a R. Hospital. S.A. ou existência de duas relações contratuais (uma entre a A. e o médico CC, e outra entre a A. e o Hospital); - Inexistência de solidariedade entre a responsabilidade da R. Hospital e a responsabilidade do R. CC; - Subsidiariamente, redução da indemnização por danos não patrimoniais. Recurso da interveniente Seguradoras EE (seguradora da R. Hospital, S.A.): - Não verificação do pressuposto da ilicitude da conduta do R. médico; - Subsidiariamente, inexistência de relação contratual entre a A. e a R. Hospital. S.A. ou, se existiu, falta de prova da sua natureza; - Subsidiariamente, exclusão do evento lesivo da cobertura do contrato de seguro celebrado entre a R. Hospital, S.A. e a interveniente Tranquilidade (actual Seguradoras EE); - Subsidiariamente, dedução do valor da franquia, prevista no mesmo contrato de seguro; - Subsidiariamente, redução do montante da indemnização por danos não patrimoniais para € 15.000. Recurso do R. CC: - Nulidade por contradição entre os fundamentos, a matéria dada como provada, e o decidido; - Não responsabilização do médico por não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa. Recurso da interveniente GG, S.A. (seguradora do R. CC): - Ausência de responsabilidade do R. CC por não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa; - Subsidiariamente, redução da indemnização por danos não patrimoniais. As questões serão apreciadas pela seguinte ordem de precedência: - Nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto (art. 615º, nº 1, alínea b), do CPC) [recurso da R. Hospital, S.A.]; - Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC) [recursos da R. Hospital, S.A. e do R. CC]; - Não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa na conduta do médico (o R. CC) [todos os recursos]; - Subsidiariamente, redução da indemnização por danos não patrimoniais [recursos da R. Hospital, S.A. e de ambas as intervenientes]; - Inexistência de relação contratual entre a A. e a R. Hospital, S.A. ou existência de duas relações contratuais (uma entre a A. e o médico CC; e outra entre a A. e o Hospital, S.A.) [recurso da R. Hospital, S.A. e da interveniente Seguradoras EE]; - Inexistência de solidariedade entre a responsabilidade da R. Hospital, S.A. e a responsabilidade do R. CC; [recurso da R. Hospital, S.A.]; Apenas em relação à responsabilidade da interveniente Seguradoras EE (seguradora da R. Hospital, S.A.): - Subsidiariamente, exclusão do evento lesivo da cobertura do contrato de seguro celebrado entre a R. Hospital, S.A. e a interveniente DD (actual Seguradoras EE); - Subsidiariamente, dedução do valor da franquia, prevista no mesmo contrato de seguro. 5. Relativamente à questão da alegada nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão (art. 615º, nº 1, alínea b), do CPC), suscitada pela Recorrente Hospital, S.A. de forma repetida ao longo das conclusões recursórias, a resposta não pode deixar de ser negativa. Não apenas a factualidade dada como provada consta do acórdão recorrido, como a decisão de direito resulta da interpretação das normas legais e sua aplicação aos factos. Tal decisão poderá padecer de erro de julgamento, mas este não se confunde com o vício de falta de fundamentação de facto que justifique a decisão, concluindo-se pela inexistência da alegada nulidade. 6. Quanto à questão da alegada nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC), constata-se que a Recorrente Hospital, S.A. e o Recorrente CC pretendem que existe contradição entre os fundamentos de facto e a decisão de direito. Mais uma vez, incorrem num equívoco. A nulidade prevista na primeira parte da alínea c), do nº 1 do art. 615º, do CPC, refere-se à contradição entre a fundamentação de direito e a decisão final; o que qualificam como contradição entre os fundamentos de facto e a decisão de direito poderá configurar erro de julgamento, mas não vício que comine o acórdão recorrido com a sanção de nulidade. 7. Antes de iniciar a apreciação das questões substantivas, afigura-se conveniente considerar os termos em que as instâncias decidiram. Quer a 1ª instância, quer a Relação qualificaram a relação jurídica da A. com os RR. como uma relação contratual de prestação de serviços médicos (no caso, um exame de colonoscopia), estando em causa o alegado cumprimento defeituoso do mesmo contrato. A 1ª instância concluiu pela não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa da conduta do médico (o aqui R. CC), tanto porque não foi provada a violação das leges artis no decurso da colonoscopia ou na fase de recuperação da paciente, como porque se deu como provado que o exame em causa comporta um certo grau de risco de perfuração do colon e se provou também que a A. tomou antecipadamente conhecimento desse risco, aceitando-o. Tendo a A. vindo a falecer (sem relação causal com o evento lesivo dos autos), os herdeiros habilitados interpuseram recurso da sentença: (i) impugnando a decisão da matéria de facto, pretendendo que se dê como provados factos que poderão revelar cumprimento defeituoso do contrato na fase de recuperação (tanto antes como após a alta médica), quer pelo R. médico quer pela R. hospital; (ii) e pedindo a reapreciação da decisão de direito. A Relação decidiu considerar prejudicada a questão da impugnação da matéria de facto e, reapreciando a decisão de direito, apoiou-se no teor do acórdão deste Supremo Tribunal de 01/10/2015 (proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt) para concluir pela verificação da ilicitude e consequente culpa presumida do R. médico. Não se pronunciando especificamente sobre a relevância da declaração de consentimento e/ou dos esclarecimentos prestados à A. sobre os riscos inerentes ao exame médico, decidiu, a final, em sentido favorável à apelante, condenando os RR. e as intervenientes no pagamento de indemnização por danos patrimoniais, no montante de € 8.746,98, e, por danos não patrimoniais, no montante de € 28.000. Deste modo, deve ter-se presente que, se no presente recurso se vier a concluir pela ausência de responsabilidade de um ou de ambos os RR. pelos factos ocorridos no decurso do exame de colonoscopia, sempre se terá de considerar a necessidade de mandar baixar o processo ao Tribunal de Relação para apreciar a questão da impugnação da matéria de facto quanto aos factos relativos à fase de recuperação do exame de colonoscopia (tanto antes como após a alta médica), questão que foi julgada prejudicada pelo acórdão recorrido, desde que se conclua que a eventual procedência daquela impugnação poderá alterar a decisão de mérito. 8. A questão essencial a apreciar é a da verificação ou não dos pressupostos da ilicitude e da culpa na conduta do médico (o R. CC) na execução do exame médico de colonoscopia e na fase de recuperação (com base na factualidade dada como provada). 8.1. Estamos perante uma situação típica de alegado cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos. Sem prejuízo de ser também convocável a responsabilidade extracontratual, uma vez que foi violado o direito à integridade física da A., direito absoluto tutelado pelo princípio geral da responsabilidade civil delitual do art. 483º, nº 1, do Código Civil. Trata-se, afinal, de uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, como ocorre frequentemente nas hipóteses de responsabilidade civil por actos médicos. A orientação reiterada da jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. por exemplo, os acórdãos de 17/12/2009 (proc. 544/09.9YFLSB), de 15/09/2011 (proc. nº 674/2001.P1.S1), de 15/12/2011 (proc. nº 209/06.3TVPRT.P1.S1), de 11/06/2013 (proc. nº 544/10.6TBSTS.P1.S1), de 02/06/2015 (proc. nº 1263/06.3TVPRT.P1.S1), de 01/10/2015 (proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1), de 28/01/2016 (proc. nº 136/12.5TVLSB.L1.S1) e de 23-03-2017 (proc. nº 296/07.7TBMCN.P1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt) é no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual tanto por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efectiva do lesado. No caso dos autos, relevam os seguintes factos provados: 5 - O Réu CC conhecia a situação clínica anterior da Autora. 6 - O exame em causa demorou cerca de 50 minutos. 7 - Uma colonoscopia, em média, num paciente cuja execução da mesma não comporte especial dificuldade, demora cerca de 15-20 minutos. 11 - No dia 16.03.2011, a Autora sentia desconforto na zona da barriga, com dores e mal-estar tendo, depois de ter telefonado de manhã para o Dr. LL e à tarde para o Réu Hospital, por volta das 23 horas deu entrada no então denominado Hospital Privado …, actual Hospital MM onde realizou radiografia abdominal e toráxica, tomografia axial computorizada (TAC) ao abdómen e zona pélvica bem como exames hematológicos. 12 - Nesse Hospital Privado … foi concluído que a Autora apresentava exuberante quantidade de ar livre intra-abdominal (intra e retro peritoneal) sugerindo perfuração de víscera oca, tinha pequena quantidade de líquido livre na cavidade pélvica, aspectos imagiológicos compatíveis com cirurgia cólica prévia. Foi igualmente concluído que a Autora apresentava distensão abdominal e dor localizada nos quadrantes inferiores e que a radiografia abdominal não foi possível de interpretar mas que com a TAC se confirmou pneumoperitoeu. 13 - A pedido da Autora, esta foi encaminhada para o Hospital NN, onde foi internada no dia 17.03.2011, às 01h e 25 m, apresentando no serviço de urgência abdómen distendido, timpanizado, com dores à palpação difusa sem sinais de irritação peritoneal, tendo sido submetida a laparotomia, constatando-se perfuração cólica e realizou colostomia lateral sobre bagette. 19 - As operações cirúrgicas referidas em 13., 15., 17. e 18. tiveram como causa directa a perfuração referida em 13. ocorrida no exame de colonoscopia de 15.03.2011. 24 - O Réu CC realizou a 25.01.2010 um outro exame de colonoscopia digestiva baixa à Autora tendo-lhe detectado um tumor maligno. 37 - A Autora conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, tendo-lhe sido transmitido em 29.12.2009, 25.01.2010 e 15.03.2011, informação relativa à realização dos exames. 38 - A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos. 39 - Antes da realização do exame, foi enviado pelo Réu Hospital um e-mail à filha da Autora com as recomendações para a realização da colonoscopia. 40 - A duração do exame referida em 6. deveu-se à circunstância de se tratar de um colon anteriormente sujeito a uma operação de retirada de um tumor com necessidade de se insuflar mais ar do que em outras situações para facilitar a progressão do clonoscópio. 41 - O exame foi realizado com sedação geral da Autora. 42 - No decurso do exame não foi detectada a perfuração do colon, sem sinais de sangue no mesmo. 43 - O Réu CC tentou retirar a maior quantidade de ar possível na fase final do exame. 44 - Parte do ar que foi insuflado para o intestino delgado, aumentando a distensão do abdómen da Autora. 45 - Depois do exame, na sala de recobro, a Autora esteve sempre vigiada pelo anestesista e enfermeira. 46 - No recobro, o Réu CC analisou a Autora, apalpou-lhe o abdómen e referiu-lhe que tinha muito ar. 47 - No recobro, a Autora foi à casa de banho evacuar ar e revelou melhorias. 48 - A Autora comeu bolachas e bebeu chá no recobro e andou a pé ainda que com auxílio de terceiros. 49 - No recobro não foram detectados sinais de perfuração cólica, estando a tensão arterial da Autora estável e em valores adequados à idade desta, sem febre e sempre consciente. 50 - Tais sinais de perfuração cólica podem ser a presença de sangue na realização do exame, contratura abdominal, dor aguda, vómitos, febre, incapacidade de o doente se alimentar, levantar ou andar. 51 - Se o Réu CC tivesse detectado indícios de perfuração do cólon da Autora, não teria permitido a sua saída e determinava a realização de exames para o aferir e se fosse confirmada seria, em princípio, sujeita a intervenção cirúrgica. 53 - A taxa de perfuração cólica para colonoscopias diagnóstica está descrita como sendo da ordem dos 0,1 a 0,8%. 54 - A causa de uma perfuração do colon durante uma colonoscopia pode não derivar de incorrecta introdução ou manuseamento do aparelho ou excessiva introdução de ar, podendo ter origem em cólon estar em certos locais com processos aderenciais derivados de anteriores operações, a configuração do próprio colon (sua angulação) ou existirem segmentos cólicos isolados que podem conduzir a um aumento de pressão intracólica durante a colonoscopia. 55 - A perfuração do colon durante a colonoscopia pode iniciar-se com uma microfissura, pode a perfuração estar oculta nomeadamente por uma prega do intestino ou pela parede do mesmo. 56 - O Réu CC é um gastroenterologista conceituado, com mais de 30 anos de experiência, tendo realizado inúmeros exames como o realizado à Autora. Importa também ter presente que foram dados como não provados os seguintes factos: 14) À Autora tenha sido expressamente referido pelo Réu CC ou por algum profissional do Réu «Hospital, .. » que por estar em causa um cólon operado e o estado geral do mesmo cólon estar mais debilitado face à operação ao tumor, o exame consubstanciava um maior risco. 15) Tenha sido dito à Autora que o exame ia demorar mais tempo por que tinham de se adotar cuidados acrescidos. Tal como assinalado pelo acórdão recorrido, a situação dos autos – realização de exame de colonoscopia com perfuração do colon – encontra evidente paralelismo com a situação apreciada no acórdão deste Supremo Tribunal de 01/10/2015 (proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P.S1), já indicado. Porém, com pelo menos a seguinte importante diferença, que desde já se regista: enquanto no acórdão de 01/10/2015 não se provou ter existido esclarecimento da paciente quanto aos riscos de perfuração nem declaração de consentimento informado da mesma paciente, no caso dos autos, foram provados factos (pontos 37 e 38) relativos à prestação de esclarecimentos à A. lesada e à declaração de consentimento por esta assinada. Tendo presente tal diferença, consideremos os termos em que o referido acórdão de 01/10/2015 fundamentou a decisão de condenação do réu médico pela ocorrência de perfuração no intestino no decurso de um exame de colonoscopia: “8. Trata-se de um contrato destinado à realização de um exame médico – um contrato de prestação de serviços médicos (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08A183) –, sem função curativa; e não se questiona a correcção do resultado do exame (diferentemente do caso que se apreciou no acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Janeiro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 9434/06.6TBMTS.P1.S1). Não tem pois utilidade procurar determinar, no caso concreto, se a obrigação que o médico assumiu perante a autora deve ser havida como uma obrigação de meios ou de resultado, para o efeito de definir o conteúdo da obrigação contraída e, assim, apurar o seu cumprimento ou incumprimento (cfr. o citado acórdão de 4 de Março de 2008). Vem assente que o réu BB assumiu e executou a obrigação de realizar a colonoscopia e deu a conhecer à autora o correspondente resultado. Na execução da obrigação contratualmente assumida, BB perfurou o intestino da autora. Ora, poder-se-á questionar se essa perfuração deve ser considerada como que desligada do contrato em execução (estranha à execução do contrato, escreve-se na sentença), e tratá-la como uma agressão à integridade física da autora e, por esse facto, como geradora de responsabilidade civil extra-contratual. Foi a via seguida em 1ª Instância (…). Mas a Relação deslocou a questão para o cumprimento imperfeito do contrato de serviços médicos e veio a concluir que, no caso, não estava preenchido o pressuposto da ilicitude (“não se apurou que no decurso do exame tivesse havido por parte do réu qualquer afastamento das boas práticas da medicina”), não cabendo curar dos demais. Referiu, no entanto, que, a ter-se provado a ilicitude, a autora beneficiaria de uma presunção de culpa do réu. No entanto, a justificação da Relação, no que toca à não verificação da ilicitude, não se afigura adequada à obrigação concretamente assumida no caso dos autos, que se não pode analisar como se de uma obrigação de meios se tratasse; numa situação dessas – como ocorrerá, por exemplo, com a realização de uma intervenção cirúrgica ou com a definição de um tratamento, em ambos os casos com função curativa (não vem agora ao caso analisar a especificidade das intervenções ou tratamentos com finalidade estética) – é que se poderia ponderar se o médico estaria apenas vinculado a actuar segundo as regras da arte, utilizando o seu melhor saber, e não a obter a cura, ou a melhoria pretendida. Mas a inadequação da conclusão de que não se demonstrou a prática de um acto ilícito não significa que se deva desconsiderar o enquadramento contratual da actuação do réu e dos danos dela resultantes. Na verdade, a perfuração do intestino ocorreu durante e por causa da execução do contrato destinado à realização de um exame médico; independentemente de encontrar a construção juridicamente mais correcta, a verdade é que objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada. Com esta afirmação quer-se dizer que, em si mesmo, o exame foi uma intromissão na integridade física, natural e necessariamente consentida e pretendida pela autora; assim sucederá, em regra, com os exames médicos. Mas esse consentimento ou pretensão da autora não abrange a lesão em discussão neste processo. Poder-se-á sustentar que se não se tratará (ou não se tratará apenas) de um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos, mas da lesão do direito à integridade física da autora, ocorrido no âmbito e por causa da execução do contrato; no entanto, esta ligação intrínseca significa que o regime aplicável às consequências dessa execução deve ser o regime da responsabilidade contratual. Aliás, dificilmente se poderá sustentar que a protecção da integridade física do paciente não integra o âmbito de protecção de um contrato de prestação de serviços médicos. 9. Sabe-se que a realização da colonoscopia implica a utilização de métodos dos quais pode resultar a perfuração do intestino, ainda que raramente (cfr. ponto 127 da matéria de facto); o que significa que o profissional que a executa há-de adoptar os procedimentos próprios do exame com a específica preocupação de tentar evitar que haja perfuração. Pode assim entender-se que está em causa um “dever imposto pela regra de que, no cumprimento dos contratos, cada contraente deve ter na devida conta os interesses da contraparte (nº 2 do artigo 762º do Código Civil); e que, sendo violado”, acarreta a responsabilidade do médico, nos termos próprios da responsabilidade contratual (artigo 798º do Código Civil). A frase que se transcreveu consta do acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 623/09.2YFLSB, que não versou sobre um caso de responsabilidade médica, como agora sucede, mas no qual também se tratava da lesão de um direito absoluto (então o direito de propriedade) ocorrida na execução de um contrato, no caso, de empreitada. O apelo a este acórdão destina-se a mostrar o ponto comum às duas situações em apreciação. Também está em causa no caso presente a “violação” de “deveres de protecção, de conduta ou laterais (para referir algumas das designações que têm sido utilizadas) caracterizados “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, resultantes da sua “conexão com o contrato” (Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimp, Coimbra, 1982, pág.337 e segs.)”. Como ali se dá nota e todos sabemos, há divergências quanto ao enquadramento da violação de tais deveres no âmbito da responsabilidade contratual ou extra-contratual. E “sabe-se igualmente que, embora unificados pela função desempenhada, têm conteúdos muito diversos, englobando deveres tão distintos como “deveres de informação e conselho, de cooperação, de segredo e não concorrência, de custódia e de vigilância, de lealdade, etc” (a exemplificação é de Manuel Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, pág. 40), que Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, I, Coimbra, 1984, pág. 604) agrupa em “deveres de protecção, de esclarecimento e de lealdade”. Aqui como ali, no entanto, entende-se que não vem ao caso “optar, em tese geral, pela aplicação do regime da responsabilidade contratual (por exemplo, Mota Pinto, op. cit, pág. 342) ou extra-contratual (por exemplo, Pedro Romano Martínez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 2001, pág. 253) a todas as situações (realmente diversificadas) que podem reconduzir-se à sua violação”; mas que, também aqui, a apontada ligação entre a realização da prestação principal e o risco de perfuração do intestino torna especialmente desadequado analisar o dever do médico «à luz do “dever geral de cuidado da área delitual” (expressão de Manuel Carneiro da Frada, op.cit., pág. 275)».” (negrito nosso). Vejamos até que ponto esta orientação é susceptível de ser aplicada ao caso sub judice. Antes de mais, não oferece dúvidas que, do contrato de prestação de serviços médicos dos autos, nasceu uma obrigação de resultado, qual seja a de obtenção dos dados clínicos do exame de colonoscopia. Que tal resultado tenha sido alcançado não é posto em causa pela A., não sendo de considerar a hipótese de a colonoscopia ter tido uma função curativa, uma vez que tal não foi alegado pelas partes. Assim, o que está em discussão não é o cumprimento do dever primário de prestação do médico, mas o cumprimento do dever acessório de, na realização do exame clínico, respeitar a integridade física da A. Ora, na construção dogmática acolhida pelo citado acórdão do STJ de 01/10/2015, tendo ocorrido “uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada”. Aceitando-se esta via qualificativa, e procurando-se aplicá-la ao caso dos autos, a perfuração do colon no decurso do exame de colonoscopia configurará, sem mais, ilicitude do resultado. Por via do regime do art. 799º, nº 1, do CC, tal facto será presuntivamente culposo. Em alternativa, segundo a orientação, porventura prevalente na jurisprudência no domínio da responsabilidade civil médica (cfr., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24/06/2016 (proc. nº 6844/03.4TBCSC.L1.S1) e de 23/03/2017 (proc. nº 296/07.7TBMCN.P1.S1), in www.dgsi.pt, ambos relativos a casos, em que em intervenções cirúrgicas ao fémur, ocorreu uma lesão do nervo ciático), caberá ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física do paciente. No caso dos autos, tendo sido provado que os riscos de perfuração, embora raros, são inerentes a um exame de colonoscopia, mesmo que correctamente executado (facto provado 53) e ainda que, devido aos antecedentes clínicos da A., tais riscos eram acrescidos (factos provados 40 e 54), afigura-se que ambas as concepções (ilicitude do resultado ou ilicitude da conduta) conduzirão, afinal, a soluções convergentes. Vejamos. Admitindo-se a primeira concepção (a ocorrência da perfuração do colon basta para configurar ilicitude), haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado da A. quanto aos riscos próprios daquela colonoscopia, tendo presente que, segundo a regra geral do art. 340º, nº 1, do Código Civil, “O acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”. Seguindo-se a segunda concepção (necessidade de que o paciente faça prova do incumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado na execução do exame médico, imposto pelas leges artis), tem de se reconhecer que tal prova não foi feita. Ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar a A. dos riscos inerentes à intervenção médica e se aquela os aceitou. Deste modo, a existência ou não de consentimento devidamente informado constitui factor essencial para a decisão do pleito. 8.2. Tanto o direito nacional (cfr., além do citado art. 340º do Código Civil, os arts. 70º e 81º do mesmo Código, assim como o art. 157º do Código Penal e o nº 11, do artigo 135º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 282/77, de 5 de Julho, republicado em anexo à Lei nº 117/2015, de 31 de Agosto (“O médico deve fornecer a informação adequada ao doente e dele obter o seu consentimento livre e esclarecido”), como instrumentos internacionais (cfr. o art. 5º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina -Convenção de Oviedo), impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência; e que o consentimento dos pacientes seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando estes cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica. Antes de se apreciar se, no caso dos autos, tais exigências foram respeitadas, considerem-se as consequências que, a existir, terá o consentimento informado prestado pela paciente. Afigura-se que, seguindo-se o entendimento de que a perfuração do colon no decurso do exame de colonoscopia configura, sem mais, ilicitude do resultado, a prova do consentimento devidamente informado por parte da A. constituirá causa de exclusão da ilicitude. Seguindo-se a segunda concepção (ilicitude da conduta) e nas palavras de André Dias Pereira (Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra Editora, 2015, pág. 459), “se o paciente consentiu (tendo sido previamente devidamente informado) só há lugar a indemnização em caso de má prática médica, por violação negligente das regras da arte. O consentimento válido transfere para a esfera jurídica do paciente os riscos da intervenção, desde que esta seja realizada diligentemente.” Afigura-se, assim, ser este o problema nuclear a resolver: pode ou não considerar-se que a A. assumiu na sua esfera jurídica os riscos do exame de colonoscopia efectuado de acordo com as leges artis? Enquanto facto impeditivo do direito da A. (art. 342º, nº 2, do CC), não se discute que compete ao R. médico fazer a prova do consentimento informado (neste sentido, cfr. os acórdãos do STJ de 02/06/2015, proc. nº 1206.3TVPRT.P1.S1 e de 16/06/2015, proc. nº 308/09.0TBCBR.C1.S1. consultáveis em www.dgsi.pt). Vejamos se tal prova foi feita. Foi dado como provado que “A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos”. Do documento de fls. 125 consta a declaração da A. a autorizar a realização do exame de colonoscopia, “estando perfeitamente informada e consciente dos riscos, complicações ou sequelas que possam surgir”. O consentimento, prestado desta forma genérica, não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado. Porém, há que atentar também na prova de que “A Autora conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, tendo-lhe sido transmitido em 29.12.2009, 25.01.2010 e 15.03.2011, informação relativa à realização dos exames”. Qual a relevância desta prova? Considera-se relevante o facto de a A. ter sido informada do risco concreto de perfuração do intestino e ainda que tal informação tenha sido prestada em 15/03/2011, em momento anterior ao exame dos autos (embora se pudesse discutir se com a antecedência suficiente). Com efeito, não podem considerar-se como relevantes – para efeitos da validade do consentimento – os esclarecimentos prestados por ocasião de anteriores colonoscopias. Em relação a cada um dos exames tais esclarecimentos têm de ser actualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo. Se assim é para qualquer paciente, por maioria de razão para alguém como a A. que, em 15/03/2011, tinha já 83 anos de idade. Porém, não basta a prova do esclarecimento quanto aos riscos comuns de perfuração. No caso dos autos em que os riscos de perfuração eram superiores ao normal (factos 40 e 54) era imperativo que o R. fizesse prova de que a A. fora informada de tais riscos acrescidos. Ora, não se provou que “À Autora tenha sido expressamente referido pelo Réu CC ou por algum profissional do Réu «Hospital, .. » que por estar em causa um cólon operado e o estado geral do mesmo cólon estar mais debilitado face à operação ao tumor, o exame consubstanciava um maior risco”. Assim sendo, conclui-se não ter sido feita prova bastante para preencher as exigências do consentimento devidamente informado. 8.3. A avaliação das consequências da falta de prova da existência de consentimento devidamente informado da A. implica a ponderação de quais sejam os bens jurídicos protegidos pela exigência desse consentimento e, em correspondência, de quais sejam os danos ressarcíveis. Retomemos as duas vias de aferição da ilicitude enunciadas supra, no ponto 8.2. Considerando-se que a ocorrência da perfuração no colon configura sem mais, ilicitude do resultado, a ausência de consentimento devidamente informado do lesado conduz à não exclusão da ilicitude. Assim sendo, estando em causa a tutela do bem “integridade física”, serão ressarcíveis, nos termos gerais, tanto os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais resultantes do facto ilícito culposo. Considerando-se que é de exigir a prova da ilicitude da conduta do médico, a ausência de consentimento devidamente informado configura, por si só, um acto ilícito autónomo (e, por aplicação do regime do art. 799º, nº 1, do CC, presuntivamente culposo). De acordo com André Dias Pereira, se se “concluir que a informação (maxime sobre os riscos) não foi suficiente para o paciente se poder autodeterminar com toda a informação de que necessitava, o consentimento é inválido e a intervenção médica ferida de ilicitude, visto que a causa de justificação – consentimento – não é eficaz, como resulta dos arts. 81º e 340º do CC e do art. 157º do CP. Por isso mesmo, a violação do dever de esclarecimento do paciente é fundamento de responsabilidade médica independentemente de negligência no que respeita à intervenção médica em termos técnicos e independentemente do seu resultado positivo ou negativo (“O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica”, in Responsabilidade civil dos médicos, Coimbra Editora, 2005, pág. 459). Subsistindo a questão de apurar quais os bens jurídicos tutelados e os danos ressarcíveis. Seguindo a orientação do autor que vimos citando: - “Se a intervenção médica for arbitrária, porque não se obteve consentimento ou se obteve um consentimento viciado (por falta de informação adequada), devemos distinguir duas situações: na primeira, verifica-se uma intervenção médica sem consentimento (ou com consentimento viciado), mas sem quaisquer danos (corporais), ou seja, sem qualquer agravamento do estado de saúde do paciente; na segunda, a intervenção é arbitrária e não obteve êxito, ou verificaram-se riscos próprios da operação, ou provocou consequências laterais desvantajosas” (Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, cit., pág. 459); - Na primeira situação, o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão, havendo lugar a indemnização por danos não patrimoniais (cit., págs. 459 e segs.); - Na segunda situação, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a integridade física e moral, pelo que “serão, assim ressarcíveis não só os danos não patrimoniais causados pela violação do seu direito à autodeterminação e à liberdade, mas também por violação da sua integridade física (e, eventualmente, da vida) (arts. 70º e 483º CC), bem como os danos patrimoniais derivados do agravamento do estado de saúde” (cit., pág. 465); - “Assim sendo, o montante das indemnizações resultantes de um processo de responsabilidade por violação do consentimento informado pode ser tão elevado como os casos de negligência médica” (pág. 465). No caso dos autos, estamos perante um caso subsumível na segunda situação: a intervenção não foi devidamente consentida e teve consequências laterais desvantajosas, isto é, a perfuração do colon. Haverá pois lugar a reparação tanto dos danos não patrimoniais como dos danos patrimoniais dados como provados. Neste sentido decidiu o já indicado acórdão deste Supremo Tribunal de 02/06/2015 (proc. nº 1206.3TVPRT.P1.S1) num caso de inexistência de consentimento: “Não tendo a autora prestado qualquer consentimento, escrito ou verbal, expresso ou tácito, presumido ou hipotético, para a prática do ato cirúrgico a que foi sujeita, estão assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual: ilicitude (incumprimento do contrato de prestação de serviços e de regras de conduta decorrentes da ética médica e do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, como a obrigação de obter um consentimento informado); culpa, a qual se presume nos termos do art. 799.º, n.º 1 do CC; nexo de causalidade entre o facto – intervenção médica não consentida – e o dano, no sentido em que aquela é a causa adequada do dano; danos patrimoniais e não patrimoniais amplamente documentados nos autos e refletidos na matéria de facto.” Especialmente relevante se afigura o teor do acórdão do STJ de 02/11/2017 (proc. nº 23592/11.4T2SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt) relativo a um caso de falta de consentimento informado quanto aos riscos inerentes à extracção de um dente do siso incluso: “É exacto que não se pode afirmar que, naturalisticamente, foi a falta de informação – que, no caso, está provada (pontos ccc), iii), bbbb)) e tem como objecto a comunicação do risco que a extracção do siso incluso implica para o paciente –, que provocou “a lesão do nervo lingual direito” (bbb)) e demais danos que vêm provados; desde logo, nem sequer vem demonstrado que, se conhecesse o risco que a intervenção implicava, a autora não teria consentido na sua realização; se essa prova tivesse sido feita, poder-se-ia estabelecer uma cadeia naturalística de causas, assim contrariando a alegação dos recorrentes, como é manifesto. Não estando provado que a autora só aceitou submeter-se à intervenção porque não foi devidamente informada quanto aos respectivos riscos, porque, se tivesse sido, não a teria aceitado, a perspectiva jurídica que se nos afigura correcta é antes a de determinar se deve ser ressarcido o concreto dano consistente na perda da oportunidade de decidir correr o risco da lesão do nervo e das suas consequências; perda de oportunidade que, em si mesma, é um dano causado pela falta de informação devida, em abstracto susceptível de ser indemnizado, e cuja protecção tem como sustentação material o direito à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1 da Constituição e artigo 70º, nº 1 do Código Civil). No seu conteúdo inclui-se, nomeadamente, o poder do titular de decidir em que agressões à sua integridade física consente, assim afastando a ilicitude das intervenções consentidas (cfr. nº 2 do artigo 70º e artigo 81º do Código Civil). Nesta perspectiva, está ostensivamente demonstrado o concreto nexo de causalidade naturalístico, questionado pelos recorrentes; e preenchido o requisito da causalidade adequada (art. 563º do Código Civil), consagrado na lei portuguesa no âmbito da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual): para além de fáctica ou naturalisticamente se ter de apurar se uma determinada actuação (acção ou omissão) provocou o dano (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. 1399/06.OTVPRT.P1.S1), cumpre ainda averiguar, tendo em conta as regras da experiência, se era ou não provável que da acção ou omissão resultasse o prejuízo sofrido, ou seja, se aquela não realização é causa adequada do prejuízo verificado. É necessário que, em concreto, a acção (ou omissão) tenha sido condição do dano; e que, em abstracto, dele seja causa adequada (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ªed., Coimbra, 2000, pág. 900). No fundo, pode entender-se que ocorre ainda a hipótese descrita por André Gonçalo Dias Pereira, O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica, in “Responsabilidade Civil dos Médicos, Coimbra, 2005, pág. 435 e segs., pág. 496: “a falta de informação impossibilitou o paciente de tomar uma decisão informada em termos de ponderação adequada de riscos e benefícios”, apta a gerar responsabilidade civil do médico, através da sua inserção no círculo de protecção das normas que exigem o consentimento informado; embora se entenda, com Rui Cardona Ferreira A perda de chance na responsabilidade civil por acto médico, sep. da Revista de Direito Civil, II (2017), 1, pág. 131-155, que o dano da perda de oportunidade tem autonomia, para efeitos indemnizatórios. Assim se decidiu, aliás, no acórdão de 14 de Março de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 78/09.1TVLSB.L1.S1.” No caso dos autos, o exame médico realizado destinava-se à obtenção de dados quanto ao estado de saúde da A., sem que tivesse sido provado ou sequer alegado que o mesmo exame possuísse qualquer função curativa. Também aqui não se sabe se a A., se tivesse sido devidamente informada dos riscos acrescidos de perfuração do intestino em razão dos seus antecedentes clínicos, teria ou não aceitado submeter-se à colonoscopia. De qualquer forma, quer o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo do médico (a intervenção não devidamente autorizada) e os danos seja aferido pela causalidade adequada, quer pelo âmbito de protecção das normas que impõem o consentimento informado, sempre deverá ser ressarcida a perda da oportunidade de a A. decidir não correr os riscos da lesão. Conclui-se assim que, quer se siga a concepção da ilicitude do resultado quer a concepção da ilicitude da conduta, o R. médico e a respectiva seguradora se encontram solidariamente obrigados a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela A. com fundamento em falta de consentimento devidamente informado da A. para a realização da colonoscopia. 9. Na apreciação da questão da redução da indemnização por danos não patrimoniais recordam-se os parâmetros indicados no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2016, proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1, www.dgsi.pt, relatado pela relatora do presente acórdão): - “A compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, nº 1, do CC), não pode – por definição – ser feita através da fórmula da diferença. Deve antes ser decidida pelo tribunal, segundo um juízo de equidade (art. 496º, nº 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art. 494º, do CC”; - “Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. nº 381/2002.S1, todos em www.dgsi.pt), “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”; - “A sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 2012, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, www.dgsi.pt, “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição”. Exigência plasmada também no art. 8º, nº 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” Tendo presentes estes parâmetros, vejamos os termos em que o acórdão recorrido fundamentou a decisão: “(…) no caso dos autos, temos que a Autora, em virtude da perfuração cólica, teve que ser assistida no Hospital Privado … (hoje MM), onde efectuou consulta e exames, sofreu três intervenções cirúrgicas, vários períodos de internamento hospitalar entre os dias 16.03 a 30.03.2011, 30.03.2011 a 9.04.2011, de 12.04.2011 a 18.04.2011 e, ainda, de 2.11.2011 a 17.11.2011 – vide factos provados em 11., 13., 14., 15., 17., 18. e 19. Sofreu, assim, a Autora 49 dias de internamento hospitalar. Por outro lado, desde o termo do exame de colonoscopia (a 15.03.2011) e até Abril de 2011, a Autora sofreu dores, ou seja durante cerca de 1 mês e meio. (facto provado em 26.) Depois da intervenção cirúrgica do dia 17.03.2011, a Autora teve de usar um saco de colostomia (para armazenar as fezes), carecendo, até Novembro de 2011, de ajuda de terceiras pessoas para se vestir e despir, assim como para cuidar da sua higiene (facto provado em 31.) O uso do aludido saco fazia a Autora sentir-se desconfortável, sendo que o mesmo chegou a rebentar em algumas ocasiões, incluindo de noite, obrigando a tomas de banho e mudança de roupa, no que contou com a ajuda de terceiros, nomeadamente do seu filho (factos provados em 30. e 32.) A Autora, por ter que usar o saco de colostomia, sentiu-se diminuída, com perda de auto-estima e vergonha, reduzindo as suas saídas e o convívio com amigas, sendo certo que antes do evento em causa, a Autora era uma pessoa alegre, autónoma e que saía sozinha e com amigas, participando em aulas de «Pilates», aulas que deixou após ter de usar o dito saco. (factos provados em 33., 34. e 35.) Por outro lado, ainda, é de considerar que a Autora tinha, à data do evento, uma idade avançada (83 anos), assumindo, pois, as sobreditas circunstâncias uma maior penosidade, pois que associadas às limitações de saúde próprias e naturais de quem possui aquela provecta idade. Por último, é de considerar que a culpa do Réu/médico é uma culpa presumida. Como assim, ponderando todos os sobreditos elementos, à luz de critérios de equidade e tendo presente os valores indemnizatórios que se colhem da nossa jurisprudência já antes citada, afigura-se-nos ser equitativo fixar-se a favor da Autora (e ainda que a indemnização em apreço integre já a sua herança e, por via do fenómeno sucessório, se venha a transmitir aos seus herdeiros – os ora apelantes), a título de danos não patrimoniais, e tendo por referência a data do presente acórdão, a quantia de € 28. 000, 00 (vinte e oito mil euros), a que acrescerão os juros de mora à mesma taxa legal, desde a data deste acórdão e até integral e efectivo pagamento.” Entende-se serem inteiramente correctos os pressupostos e limites dentro dos quais se situou o juízo equitativo da Relação, fixando a indemnização pelos danos não patrimoniais da A. no valor de € 28.000,00, conclusão que se afigura em linha com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, respeitando-se assim as exigências impostas pelo princípio da igualdade. Conclui-se, assim, ser de manter o montante indemnizatório por danos não patrimoniais. 10. Quanto à questão da inexistência de relação contratual entre a A. e a R. Hospital. S.A. ou existência de duas relações contratuais (uma entre a A. e o médico CC, e outra entre a A. e a R. Hospital, S.A.), importa ter em conta a tipologia que a doutrina mais recente propõe, a respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados (ver André Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, cit., págs. 684 e segs., desenvolvendo a proposta de Carlos Ferreira de Almeida, “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, in Direito da Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, págs. 75 e segs.), tipologia que aqui se indica: (i) “contrato total”, que é “um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos)”; (ii) “contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional)”, que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”; (iii) “contrato dividido”, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos).” Os factos provados relevantes são os seguintes: 2 - A Autora foi paciente do Réu CC que exerce as funções de médico gastrenterologista no Réu Hospital [Hospital BB, SA] desde 1.03.1999. 3 - O Réu Hospital tem por objeto a prestação de cuidados de saúde. 4 - No dia 15.03.2011, pelas 17 horas, a Autora foi submetida a um exame de endoscopia digestiva baixa nas instalações do Réu Hospital pelo Réu CC em regime de consulta de acompanhamento. 5 - O Réu CC conhecia a situação clínica anterior da Autora. 24 - O Réu CC realizou a 25.01.2010 um outro exame de colonoscopia digestiva baixa à Autora tendo-lhe detectado um tumor maligno. 25 - Antes dessa colonoscopia realizada em 2010, a 29.12.2009 o mesmo CC iniciou colonoscopia à Autora interrompendo-a por falta de preparação adequada do colon. 38 - A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos. 39 - Antes da realização do exame, foi enviado pelo Réu Hospital um e-mail à filha da Autora com as recomendações para a realização da colonoscopia. Não oferece dúvida que, entre o R. CC, médico gastrenterologista, e a A. existe uma relação contratual de prestação de serviços médicos. Aquele R. foi o médico escolhido pela A. para a acompanhar ao longo de vários anos. Quanto à relação entre a A. e a R. Hospital, S.A., os factos provados, ainda que escassos, permitem concluir pela existência de uma relação contratual directa, mas são insuficientes para que tal relação possa ser qualificada como de “contrato total com escolha de médico”. É certo que a celebração de um contrato de prestação de serviços médicos completos entre a A. e a R. Hospital, S.A. não depende da prova de que entre esta R. e o R. médico existisse uma relação de contrato de trabalho. Com efeito, na prestação de serviços médico-clínicos, o Hospital tanto se pode socorrer de médicos que integrem os seus quadros (mediante relação laboral) como de médicos com os quais celebre contratos de prestação de serviços. Em qualquer caso, o que importa apurar é se a A. contratou com a R. Hospital, S.A. a prestação total de serviços, ainda que escolhendo ela o médico de entre os que prestam serviços no mesmo hospital; ou se, diferentemente, a A. contratou, separadamente, o médico e o hospital. Perante a prova feita, afigura-se que se trata de uma situação de “contrato dividido” ou autónomo pelo qual a A. e a R. Hospital, S.A. acordaram que esta prestaria àquela serviços “decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.)”. Identifica-se, assim, uma relação contratual entre a A. e o R. CC, que tem como objecto a prestação dos serviços especificamente médicos; e uma outra relação contratual entre a A. e a R. Hospital, S.A., que não envolve a prestação de serviços médicos em sentido estrito. Deste modo, quanto ao fundamento da acção relativo à execução do exame de colonoscopia, o R. médico não é auxiliar de cumprimento das obrigações da R. Hospital, S.A., não podendo, pois, esta ser responsabilizada pela conduta daquele (ao abrigo do regime geral do art. 800º, nº 1, do Código Civil). Tendo-se concluído no presente acórdão pela responsabilidade do R. médico CC com fundamento na falta de consentimento devidamente informado da A., não pode responsabilizar-se a R. Hospital, S.A. pela conduta do mesmo médico. 11. Contudo, não pode esquecer-se existir um outro fundamento da acção – a alegada deficiente prestação dos serviços médico-clínicos na fase de recuperação do exame (tanto antes como após a alta médica) – podendo, pelos factos alegados na petição inicial e na réplica, estar em causa quer a violação de obrigações do R. médico quer da R. Hospital, pelo que ambos poderiam vir ser responsabilizados. Pela factualidade dada como provada pela 1ª instância não terá havido deficiências na prestação dos serviços na fase pós-colonoscopia. Mas, recorde-se, sempre se teria de considerar a necessidade de mandar baixar o processo ao Tribunal de Relação para apreciar a questão da impugnação da matéria de facto quanto aos factos relativos à fase de recuperação do exame de colonoscopia (tanto antes como após a alta médica), questão que foi julgada prejudicada pelo acórdão recorrido, desde que se conclua que a eventual procedência daquela impugnação poderá alterar a decisão de mérito. Ora, compulsada a p.i. e a réplica verifica-se que todos os danos alegados são conexionados com a ocorrência da perfuração do colon no decurso da execução do exame de colonoscopia e não com o eventual agravamento dos danos na fase pós-colonoscopia. Ou seja, apesar de terem sido alegados abundantes factos relativos a um alegado incumprimento dos deveres de diligência e de cuidado, tanto do médico como dos funcionários do Hospital, na fase de recuperação, certo é que o conhecimento da impugnação da matéria de facto nesta parte sempre se revelaria como inútil, na medida em que os danos alegados e provados pela A. foram causados pela perfuração do colon e não pelo agravamento do estado de saúde na fase de recuperação. Conclui-se, assim, ficar prejudicada a questão do conhecimento da impugnação da matéria de facto pela Relação. Consequentemente, a R. Hospital, S.A. e a interveniente Seguradoras EE, S.A. não são responsáveis pelos danos sofridos pela A. 12. Concluindo-se pela ausência de responsabilidade quer da R. Hospital, S.A. quer da interveniente Seguradoras EE, S.A. todas as demais questões relativas a estas ficam prejudicadas. 13. Pelo exposto, julgam-se procedentes os recursos da R. Hospital BB, S.A.. e da interveniente Seguradoras EE, S.A. e improcedentes os recursos do R. CC e da interveniente GG, S.A., decidindo-se: a) Revogar parcialmente o acórdão recorrido, absolvendo do pedido a R. Hospital BB, S.A.. e a interveniente Seguradoras EE, S.A.; b) Manter a condenação do R. CC – com fundamento em falta de consentimento devidamente informado da A. para a realização da colonoscopia – e da interveniente GG, S.A, a pagar solidariamente à A. a indemnização, por danos patrimoniais a por danos não patrimoniais, fixada pelo acórdão recorrido. Na ação, custas na proporção do decaimento. Nos recursos da R. Hospital BB, S.A.. e da interveniente Seguradoras EE, S.A., custas pelos Recorridos. Nos recursos do R. CC e da interveniente GG, S.A., custas pelos Recorrentes. Lisboa, 22 de Março de 2018 Maria da Graça Trigo (Relatora) Maria Rosa Tching Rosa Maria Ribeiro Coelho
Fonte:"https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/7053-2018-116181965"
Lei n.º 31/2018
de 18 de julho
Direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida
A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
1 - A presente lei estabelece um conjunto de direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, consagrando o direito a não sofrerem de forma mantida, disruptiva e desproporcionada, e prevendo medidas para a realização desses direitos.
2 - A presente lei prevê ainda um conjunto de direitos dos familiares das pessoas doentes previstas no número anterior.
Artigo 2.º
Âmbito
Para efeitos da presente lei, considera-se que uma pessoa se encontra em contexto de doença avançada e em fim de vida quando padeça de doença grave, que ameace a vida, em fase avançada, incurável e irreversível e exista prognóstico vital estimado de 6 a 12 meses.
Artigo 3.º
Direitos em matéria de informação e de tratamento
1 - As pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, desde que nisso tenham consentido depois de informadas pelos profissionais de saúde, têm direito a receber informação detalhada sobre os seguintes aspetos relativos ao seu estado de saúde:
2 - As pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida têm também direito a participar ativamente no seu plano terapêutico, explicitando as medidas que desejam receber, mediante consentimento informado, podendo recusar tratamentos nos termos previstos na presente lei, sem prejuízo das competências dos profissionais de saúde.
3 - As pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida têm ainda direito a receber tratamento rigoroso dos seus sintomas, e nos casos em que seja evidente um estado confusional agudo ou a agudização de um estado prévio, à contenção química dos mesmos através do uso dos fármacos apropriados para o efeito, mediante prescrição médica.
4 - A contenção física com recurso a imobilização e restrição físicas reveste caráter excecional, não prolongado, e depende de prescrição médica e de decisão da equipa multidisciplinar que acompanha a pessoa doente.
Artigo 4.º
Obstinação terapêutica e diagnóstica
As pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida têm direito a ser tratadas de acordo com os objetivos de cuidados definidos no seu plano de tratamento, previamente discutido e acordado, e a não ser alvo de distanásia, através de obstinação terapêutica e diagnóstica, designadamente, pela aplicação de medidas que prolonguem ou agravem de modo desproporcionado o seu sofrimento, em conformidade com o previsto nos códigos deontológicos da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Enfermeiros e nos termos de normas de orientação clínica aprovadas para o efeito.
Artigo 5.º
Consentimento informado
1 - As pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida têm direito a dar o seu consentimento, contemporâneo ou antecipado, para as intervenções clínicas de que sejam alvo, desde que previamente informadas e esclarecidas pelo médico responsável e pela equipa multidisciplinar que a acompanham.
2 - O consentimento previsto no número anterior deve ser prestado por escrito, no caso de intervenções de natureza mais invasiva ou que envolvam maior risco para o bem-estar dos doentes, sendo obrigatoriamente prestado por escrito e perante duas testemunhas quando estejam em causa intervenções que possam pôr em causa as suas vidas.
3 - As pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, desde que devidamente informadas sobre as consequências previsíveis dessa opção pelo médico responsável e pela equipa multidisciplinar que as acompanham, têm direito a recusar, nos termos da lei, o suporte artificial das funções vitais e a recusar a prestação de tratamentos não proporcionais nem adequados ao seu estado clínico e tratamentos, de qualquer natureza, que não visem exclusivamente a diminuição do sofrimento e a manutenção do conforto do doente, ou que prolonguem ou agravem esse sofrimento.
Artigo 6.º
Cuidados paliativos
1 - As pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida têm direito a receber cuidados paliativos através do Serviço Nacional de Saúde, com o âmbito e forma previstos na Lei de Bases dos Cuidados Paliativos.
2 - Considera-se ainda prestação de cuidados paliativos o apoio espiritual e o apoio religioso, caso o doente manifeste tal vontade, bem como o apoio estruturado à família, que se pode prolongar à fase do luto.
3 - Os cuidados paliativos são prestados por equipa multidisciplinar de profissionais devidamente credenciados e em ambiente hospitalar, domiciliário ou em instituições residenciais, nos termos da lei.
4 - Para os efeitos do disposto no número anterior, cabe ao médico responsável e à equipa multidisciplinar que acompanham a pessoa doente contribuir para a formação do respetivo consentimento informado, com base numa rigorosa avaliação clínica da situação no plano científico, e pela adequada ponderação dos princípios da beneficência e da não maleficência, no plano ético.
Artigo 7.º
Cuidados paliativos em ambiente domiciliário
1 - Os cuidadores informais da pessoa em contexto de doença avançada e em fim de vida que recebe cuidados paliativos em ambiente domiciliário têm direito a receber formação adequada e apoio estruturado, proporcionados pelo Estado através da articulação entre o Ministério da Saúde e o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.
2 - Os profissionais de saúde devem requerer o direito ao descanso do cuidador informal da pessoa em contexto de doença avançada e em fim de vida que se encontra em ambiente domiciliário sempre que tal se justifique.
3 - Para efeitos do disposto nos n.os 1 e 2, a pessoa em contexto de doença avançada e em fim de vida tem de estar devidamente sinalizada na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados e ou na Rede Nacional de Cuidados Paliativos.
4 - No âmbito dos cuidados de saúde primários, os profissionais de saúde têm a obrigação de sinalizar todos os casos de pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida que se encontrem em ambiente domiciliário sem acesso ao devido apoio estruturado e profissionalizado.
Artigo 8.º
Prognóstico vital breve
1 - As pessoas com prognóstico vital estimado em semanas ou dias, que apresentem sintomas de sofrimento não controlado pelas medidas de primeira linha previstas no n.º 1 do artigo 6.º, têm direito a receber sedação paliativa com fármacos sedativos devidamente titulados e ajustados exclusivamente ao propósito de tratamento do sofrimento, de acordo com os princípios da boa prática clínica e da leges artis.
2 - As pessoas que se encontrem na situação prevista no número anterior são alvo de monitorização clínica regular por parte de equipas de profissionais devidamente credenciados na prestação de cuidados paliativos.
3 - À pessoa em situação de últimos dias de vida, é assegurado o direito à recusa alimentar ou à prestação de determinados cuidados de higiene pessoal, respeitando, assim, o processo natural e fisiológico da sua condição clínica.
Artigo 9.º
Direitos não clínicos
São direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, nos termos previstos na lei:
Artigo 10.º
Decisões terapêuticas
1 - Caso as pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida nisso consintam, podem ser assistidas pelos seus familiares ou cuidadores na tomada das decisões sobre o seu processo terapêutico.
2 - Quando as pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida não estejam no pleno uso das suas faculdades mentais, e não se verificando o caso previsto no número anterior, é ao médico responsável e à equipa de saúde que as acompanham, que compete tomar decisões clínicas, ouvida a família, no exclusivo e melhor interesse do doente e de acordo com a vontade conhecida do mesmo.
Artigo 11.º
Discrepância de vontades ou decisões
1 - Em caso de discordância insanável entre os doentes ou seus representantes legais e os profissionais de saúde quanto às medidas a aplicar, ou entre aqueles e as entidades prestadoras quanto aos cuidados de saúde prestados, é facultado aos doentes ou aos seus representantes legais o acesso aos conselhos de ética das entidades prestadoras de cuidados de saúde.
2 - Quando a assistência seja prestada no domicílio ou em entidade que não disponha de conselho de ética é facultado aos doentes ou aos seus representantes legais o acesso aos órgãos competentes em matéria de ética da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Enfermeiros e da Ordem dos Psicólogos.
Artigo 12.º
Disposições finais
O disposto na presente lei não prejudica a aplicação do regime jurídico sobre diretivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde, testamento vital e nomeação de procurador de cuidados de saúde.
Aprovada em 4 de maio de 2018.
O Vice-Presidente da Assembleia da República, em substituição do Presidente da Assembleia da República, Jorge Lacão.
Promulgada em 29 de junho de 2018.
Publique-se.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Referendada em 9 de julho de 2018.
O Primeiro-Ministro, António Luís Santos da Costa.
Publicação: Diário da República n.º 137/2018, Série I de 2018-07-18,
Emissor: Assembleia da República
Data de Publicação: 2018-07-18
Fonte:"https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/31-2018-115712240"
RECUSRO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
NEGLIGENCIA MEDICA
RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
Verificando-se que o circunstancialismo fáctico subjacente aos acórdãos em confronto não se afigura tipologicamente coincidente de um ponto de vista jurídico-normativo, o que exclui que haja identidade substancial da situação litigiosa para poder ser equiparada nesse núcleo essencial de apreciação da matéria subjacente a cada uma das decisões em confronto, assim como que a fundamentação dos acórdãos não revela diversidade interpretativa e aplicativa, em termos de …
oposição expressa e frontal, das normas jurídicas que exigem o consentimento informado do paciente (desde logo, o art. 340.º, n.ºs 1 e 3, do CC) para efeitos de responsabilidade civil em caso de intervenção médico-cirúrgica, desde logo porque não existe equiparação dos objetos decidindo, não se preenche a contradição-oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito que justifique a admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, como exigido pelo art. 688.º, n.º 1, do CPC.
Processo n.º 765/16.8T8AVR.P1.S1-A
Recurso de Uniformização de Jurisprudência (arts. 688º e ss CPC)
Recorrente e Reclamante (art. 692º, 2, CPC): AA
Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
Para este efeito, alegaram a contradição do julgado com o Acórdão deste STJ, proferido em 2 de Junho de 2015, 1263/06.3TVPRT.P1.SI, 1.ª Secção, de 02 de junho de 2015, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYPOR, com trânsito em julgado, juntando certidão com cópia certificada e comprovativa do trânsito.
“A. O recurso de uniformização de jurisprudência é um meio processual previsto para suprir a contradição de julgados de um mesmo tribunal superior, sobre a mesma questão fundamental de Direito, no domínio temporal da mesma legislação.
Inconformada, veio a Recorrente interpor Reclamação para a Conferência, nos termos previstos no art. 692º, 2, do CPC, desta feita apresentando as seguintes Conclusões:
“A) O recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência comporta dois momentos distintos, designadamente: o primeiro, consubstanciado na sua interposição toutcourt, queobedece ao preceituado nosartigos688.ºa692.º, n.ºs 1 e 2; o segundo que pressupõe a admissão do recurso interposto, pelo Sr. Dr. Juiz Conselheiro Relator primitivo do processo ou pelo coletivo primitivo caso haja reclamação para a conferência e esta assim o determine, e que implica o envio do processo à distribuição, artigo 692.º, n.os 3, 4 e 5 do mesmo inciso legal.
As partes recorridas responderam e pugnaram pela confirmação da decisão reclamada e consequente inadmissibilidade do recurso.
*
Foram dispensados os vistos legais (arts. 657º, 4, 679º, CPC).
Cumpre apreciar e decidir.
“Alega a aqui Recorrente que o acórdão recorrido se encontra em contradição com o acórdão fundamento, porque teria decidido de forma e com critério diferentes a questão da verificação do consentimento informado como condição de licitude da actuação médica e sua consequência na responsabilidade civil do Réu.
O art. 688º, 1, do CPC estabelece: «As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito».
Não basta que se verifique uma qualquer diversidade ou oposição de acórdãos para que se sacrifique a certeza do caso julgado e o STJ seja chamado a pronunciar-se em Pleno. Para este efeito, tem de existir uma inequívoca contradição entre o modo como dois acórdãos decidem a mesma questão fundamental de direito.
Para que a contradição exista é necessário que os acórdãos em confronto interpretem e apliquem a ou as mesmas disposições legais, num e noutro acórdão, em termos opostos (de forma directa e expressa, por regra), sendo essa interpretação/aplicação essenciais para a decisão jurídica obtida numa e noutra das decisões (ratio decidendi), no contexto de uma identidade ou similitude do núcleo factual subjacente, o que tem pressuposta, por via de regra, a equiparação tipológica das circunstâncias do litígio ao qual a lei é aplicável.”;
“O acórdão recorrido discorreu assim sobre a questão alegadamente julgada em contradição, em dois passos da fundamentação da questão decidenda (“verificação dos pressupostos da responsabilidade civil indemnizatória por acto médico para o efeito de condenação do Réu, em especial visando sindicar a adequação e a preparação do procedimento cirúrgico durante o qual acontece o evento gerador dos danos na esfera da Autora”):
“A operação médico-cirúrgica foi realizada em execução de um contrato de prestação de serviço: art. 1154º do CCiv. («aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição»). O Réu médico vinculou-se e aceitou executar um acto de anuscopia, para extracção do referido “pólipo hemorroidário” com recurso a electrocução, com ministração de anestesia local, e dar a conhecer o seu resultado clínico, no exercício da medicina a título privado e em regime de profissional liberal – cfr. factos provados 12., 13., 14., 16.; a Autora paciente vinculou-se e aceitou submeter-se a esse acto, depois de um exame de diagnóstico anteriormente feito (“retossigmoidoscopia”) – cfr. factos provados 9., 10., 11 – e consentimento dado em face dos esclarecimentos previamente fornecidos pelo Ré médico e pela sua assistente de consultório – cfr. factos provados 12., 13., 14., 15., 16., 17., 18., 20., 21., 22.; e factos não provados 5., 10. e 11.”;
“Por fim, não se demonstrou que tenha havido intervenção não consentida (que poderia levar a que se concluísse ser ilícita a intervenção em execução do contrato: art. 340º, 1, 3, CCiv.), sendo certo que as informações prestadas para um consentimento livre e esclarecido não implicam que se transmita ao paciente o conjunto de riscos ou efeitos adversos que não sejam típicos – conhecidos e previsíveis –, graves e – ainda –, a não ser que sejam sérios e graves, de forte grau de improbabilidade de ocorrência (em esp., v. os arts. 157º do CPenal; arts. 44º, 2 e 5, e 50º, 1 e 2, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos; Norma n.º 15/2013 da Direcção-Geral de Saúde, de 3/10/2013, actualizada em 4/11/2015, ponto 4., als. e), f), g)) – v. factos provados 12., 13., 20. e 22..
De outra banda, quanto à preparação antecedente do acto médico, não deixou de se verificar esclarecimento próprio sobre a actuação da paciente antes do exame, de acordo com o dado como conhecido e adquirido na experiência do Réu médico – cfr. facto provado 20. Em rigor, não se tratou de informação adequada ao consentimento; antes de esclarecimento terapêutico, que não tutela a auto-determinação do paciente mas sim o seu corpo e saúde, sendo, portanto, a sua omissão discutida – como já foi – em sede de erro na execução do acto médico – com resposta negativa.”;
“O acórdão fundamento tratou a questão como contraditoriamente julgada como a questão essencial (“ausência de consentimento informado”) para decidir da verificação da responsabilidade civil contratual por acto médico numa situação de “cirurgia estética ou reconstrutiva”, “que se destinava a corrigir um determinado defeito físico e a melhorar a aparência ou a imagem de uma pessoa”:
“Nestas intervenções, a dimensão do resultado assume maior relevância. Como já entendeu a jurisprudência deste Supremo Tribunal, «Em cirurgia estética se a obrigação contratual do médico pode não ser uma obrigação de resultado, com o médico a comprometer-se “em absoluto” com a melhoria estética desejada, prometida e acordada, é seguramente uma obrigação de quase resultado porque é uma obrigação em que “só o resultado vale a pena”. Aqui, em cirurgia estética, a ausência de resultado ou um resultado inteiramente desajustado são a evidência de um incumprimento ou de um cumprimento defeituoso da prestação por parte do médico devedor. Ao médico compete, por isso, em termos de responsabilidade contratual, o ónus da prova de que o resultado não cumprido ou cumprido defeituosamente não procede de culpa sua, tal como o impõe o n.º 1 do art.799.º do CCivil» (Cf. acórdão de 17-12-2009, processo n.º 544/09.9YFLSB, relatado pelo Conselheiro Pires da Rosa).
As cirurgias estéticas, para além da especificidade de comportarem obrigações de quase resultado, exigem um dever de esclarecimento mais intenso e mais rigoroso aos médicos, pelo facto de serem intervenções que não são necessárias do ponto de vista da saúde, tal como a doação de órgãos para transplante ou a participação em ensaios clínicos.”;
“Na relação contratual entre médico e paciente, a par de deveres de prestação com vista a atingir um determinado resultado, coexistem outros deveres de conduta articulados entre si de forma orgânica e igualmente orientados para o mesmo objetivo. É que as obrigações decorrentes da prestação de serviços médicos caraterizam-se pela designada “relação obrigacional complexa” ou “relação obrigacional em sentido amplo”, em que coabitam deveres laterais, alguns dos quais persistem mesmo após a extinção da relação contratual e que, mesmo que não incluídos no clausulado do contrato ou em norma legal expressa, encontram no princípio geral da boa fé a sua razão de ser.
Esse princípio impõe, no caso do contrato de prestação de serviços médicos, que o médico, de forma simples e facilmente percetível, informe o paciente da situação clínica deste, dos tratamentos e terapêuticas aconselhados à referida situação e dos riscos que os mesmos comportam.
Essa obrigação encontra-se prevista no artigo 38.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, fazendo o n.º 1 recair sobre o médico o dever de esclarecer o doente acerca dos métodos de diagnósticos ou de terapêutica que se propõe aplicar, enquanto o n.º 2 do mesmo normativo lhe impõe, antes de adotar um método de diagnóstico ou de terapêutica que considere arriscado, o dever de obter do doente, preferencialmente por escrito, o seu consentimento.
O consentimento do paciente é um dos requisitos da licitude da atividade médica (atigos 5.º da CEDHBioMed e 3.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e tem que ser livre e esclarecido para gozar de eficácia. Ou seja, se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados dessa intervenção.”;
“O consentimento informado do paciente, por força do primado da dignidade da pessoa humana e da sua autodeterminação, é um requisito essencial da licitude da intervenção cirúrgica.
No caso vertente, a questão central discutida no processo diz respeito à existência ou não deste consentimento em relação à vulvoplastia realizada.
A vulvoplastia é uma cirurgia estética destinada a corrigir um defeito físico e exige, como vimos, um rigor extremo na prestação do consentimento e no dever de informação a cargo do médico acerca dos seus riscos.
O facto de a cirurgia ser medicamente indicada não é suficiente para determinar a sua licitude, exigindo-se o conhecimento do doente e o esclarecimento sobre a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento.”;
“A paciente prestou o consentimento por escrito, para uma lipoaspiração com o objetivo de realizar uma cirurgia estética de «subida» de cicatrizes na zona inguinal (…). O teor literal desta declaração, assinada pela paciente, não comporta qualquer autorização para a realização de uma vulvoplastia, pelo que não podemos considerar que tenha havido consentimento escrito. (…) Foram apenas a lipoaspiração e a subida das cicatrizes os procedimentos médicos autorizados pela autora, discutidos com o réu e abrangidos pelo termo de consentimento/autorização.”;
“A operação estética integra o conceito de cirurgia voluntária, distinguindo-se assim da cirurgia curativa ou assistencial, a qual é necessária do ponto de vista da cura de uma doença ou de um problema de saúde. Embora a autora sofresse com o defeito físico de que era portadora desde os 19 anos, e se pudesse considerar esta cirurgia (a vulvoplastia) necessária para a sua saúde psíquica, os factos indicam que, não só tal intervenção médica não foi contratualizada entre médico e paciente, como não havia qualquer urgência em realizá-la para proteção da saúde ou da vida da paciente.
Como consta do facto provado n.º 54, o médico aproveitou a cirurgia para injetar na vulva os enxertos de gordura, colhidos da face interna das coxas por lipoaspiração, sem estar justificado em qualquer necessidade urgente, do ponto de vista da saúde da paciente, que exigisse tal intervenção. Ou seja, a modificação do projeto operatório não se fundamentou em qualquer motivo ligado à proteção da saúde ou da vida da paciente, mas apenas no aproveitamento da oportunidade para proceder à correção de um defeito físico do corpo da autora, que não tinha sido objeto do contrato nem foi imposta por razões imprevisíveis e inadiáveis de proteção da saúde.”;
“ (…) no caso sub judice, os factos indicam de forma inequívoca, que a intervenção cirúrgica não foi objeto de consentimento prévio, não visava evitar qualquer perigo para a vida, o corpo ou a saúde, nem tinha uma natureza urgente, que não permitisse adiar a mesma para momento posterior depois da obtenção do consentimento informado da paciente. De acordo com a lei e com a ética médica, o médico deve dar prioridade à possibilidade de escolha do paciente face à incomodidade de se repetir a intervenção.”;
“Estamos no âmbito da cirurgia estética ou voluntária, e não da cirurgia assistencial. As exigências relativas ao consentimento e aos deveres de esclarecimento são mais rigorosas. Não havia qualquer perigo para a saúde ou para a vida no adiamento da operação. A intervenção, apesar de poder melhorar, se feita com sucesso, a vida sexual da paciente e a sua saúde psíquica, não era urgente e inadiável.
Deve exigir-se, portanto, para ser realizada de forma lícita, a obtenção de um consentimento prévio, livre e esclarecido quanto à realização da intervenção em si mesma, a sua natureza, riscos e consequências.
A atuação do médico é ilícita porque colocou, como afirma o acórdão recorrido, a autora perante o facto consumado, ou seja, perante a conclusão de um ato médico para o qual ela não prestou o seu consentimento, nem fora informada acerca da sua natureza e riscos.
Estamos perante uma violação grave do dever de informar, uma vez que se trata de uma operação realizada sem consentimento prévio e não meramente de um caso de falta de informação (ou de informação insuficiente) acerca dos riscos de uma operação autorizada.”;
“Não tendo a autora prestado qualquer consentimento, escrito ou verbal, expresso ou tácito, presumido ou hipotético, para a prática do ato cirúrgico a que foi sujeita, estão assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual (…).”;
“No que respeita à questão relativa aos pressupostos do consentimento informado do paciente, verifica-se que o acórdão fundamento se refere a esse consentimento no âmbito e como antecedente necessário de um procedimento cirúrgico de natureza estética e reconstrutiva, que é factual-juridicamente tratado em termos diversos da cirurgia curativa ou assistencial, na qual se integra o procedimento sindicado no acórdão recorrido. Recordemos, desde logo, que nele se assume como mais relevante – ou até exclusivo – a vinculação a uma obrigação de resultado. É, portanto, nesse contexto diferenciado que se pondera no acórdão fundamento o procedimento de consentimento do paciente, com dimensão e natureza mais qualificada e exigente para se assumir como causa de justificação da ilicitude do procedimento médico-cirúrgico, ao invés do acórdão recorrido.
Por outro lado, o acórdão fundamento conclui que, a essa luz mais exigente, a operação foi realizada sem consentimento prévio, nem sequer “presumido” ou “hipotético”, nomeadamente porque se referia a intervenção surgida no desenvolvimento e por ocasião do procedimento médico-cirúrgico para o qual o médico obtivera expressamente consentimento escrito. Ora, o acórdão recorrido, pelo contrário, conclui que, na medida exigível para a tomada de decisão da paciente, o médico cumpriu a sua obrigação de esclarecimento e assim instruiu devidamente o consentimento favorável (e excludente de ilicitude, se fosse o caso) obtido pela paciente. E não se vislumbra que esta conclusão tenha infirmado ou contrariado o que o acórdão fundamento sustenta quanto ao dever de esclarecimento que deve basear o consentimento para que este seja prestado de forma informada, em particular no que respeita aos riscos da intervenção médico-cirúrgica.
Além do mais, não é esta discussão sobre a existência de consentimento, livre e esclarecido, o requisito crucial ponderado no julgamento da revista no acórdão recorrido, para decidir da responsabilidade civil imputada ao Réu médico nem esta foi, apesar de considerada e objecto de pronúncia, a questão fundamental de direito da qual dependeu a solução jurídica fornecida pelo terceiro grau no acórdão recorrido [em vez de “fundamento”: rectificação oficiosa, art. 614º, 1, CPC].
Em suma:
(i) o circunstancialismo fáctico subjacente aos acórdãos em confronto não se afigura tipologicamente coincidente de um ponto de vista jurídico-normativo, o que exclui que haja identidade substancial da situação litigiosa para poder ser equiparada nesse núcleo essencial de apreciação da matéria subjacente a cada uma das decisões em confronto;
(ii) a fundamentação dos acórdãos não revela diversidade interpretativa e aplicativa, em termos de oposição expressa e frontal, das normas jurídicas que exigem o consentimento informado do paciente (desde logo, o art. 340º, 1 e 3, do CCiv.), desde logo porque não existe equiparação dos objectos decidendos.
Por isso, a alegada contradição de decisões na questão fundamental do prejuízo dos credores, que, na tese da aqui Recorrente, conduziria ao recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, não se verifica, pelo que este recurso extraordinário é destituído de base legal.”
Não trouxe a Reclamante na sua impugnação qualquer razão adicional que tivesse a virtude de infirmar o decidido quanto ao requisito da oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental (ou questões fundamentais) de direito, respeitante no núcleo essencial dos acórdãos em confronto.
Ao invés, verifica-se que a Reclamante traz novamente a juízo, ainda que com roupagem acrescida pela fundamentação trazida pelo STJ ao processo – referimo-nos às Conclusões E), I), J) e L) –, algumas das considerações que, em matéria de risco da intervenção e sua ligação com o consentimento informado para intervenção médico-cirúrgica, invocou brevitatis causa nas contra-alegações apresentadas na revista interposta do acórdão proferido pela Relação. Ora, esses são argumentos que não são próprios para um recurso extraordinário e destinado a criar estabilidade decisória na jurisprudência; o RUJ não é nem pode ser enquadrado processualmente como mais um grau pleno de jurisdição, provocando uma infindável produção de decisões no último grau da estrutura judiciária; deve ser visto como a lei o prefigura, de acordo com os seus critérios estritos e assinalavelmente trabalhados pelo STJ, a fim de superar verdadeiras e claras situações de contradição jurisprudencial relevante, sob pena de um expediente de ultima ratio se converter num instrumento de vulgarização da reapreciação de acórdãos já transitados em julgado.
A Reclamante persiste, como será natural, em não se conformar com o modo como o acórdão recorrido aplicou o direito à factualidade submetida à subsunção jurídica promovida pelo STJ, mesmo no exercício do poder judicativo atribuído pelo art. 5º, 3, do CPC. Porém, tal insatisfação não encontra preenchimento nos pressupostos de um recurso de uniformização de jurisprudência, tal como configurado, pois não há interpretação divergente nos dois acórdãos sobre a interpretação e aplicação do regime do consentimento informado para a responsabilidade civil resultante da prática de actos médicos.
Importa, pois, agora colegialmente em conferência, sublinhar a sua adequação e subscrever a argumentação constante da decisão liminar, fazendo recair acórdão sobre a decisão reclamada, confirmando-se o entendimento de que não se verifica a contradição-oposição de decisões sobre a mesma questão de direito que justifique a admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.
III) DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em indeferir a Reclamação, confirmando-se a decisão de não admitir o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.
Custas pela Reclamante, que se fixa em taxa de justiça no valor correspondente a 3 UCs.
STJ/Lisboa, 6 de Outubro de 2021
Ricardo Costa (Relator)
Ana Paula Boularot
Fernando Pinto de Almeida
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).
Declaração de voto:
Não obstante a extensa e douta fundamentação que fez vencimento, não posso deixar de referir um aspecto que me parece essencial: não encontro fundamento para a afirmação de que a preparação (limpeza) da intervenção médica aqui discutida não fosse exigível ou, pelo menos, aconselhável, por adequada a prevenir um risco que, não sendo usual, poderia ocorrer.
Com efeito, apenas se provou que a mesma não é feita habitualmente, o que se justificaria por a limpeza do canal anal (rectal) não impedir que os gases provenham de zona mais a montante. O que me parece é que essa razão não é determinante, já que não exclui que a limpeza dessa zona mais a montante (colon) não pudesse eliminar a presença de gases.
A meu ver, se existe o risco de o evento danoso se produzir – como o próprio réu admitiu (arts 41 e 42 da contestação) e a Relação confirmou ao excluir que fosse imprevisível –, como veio efectivamente a verificar-se, não concebo que se sujeite o paciente a esse risco, sem se adoptarem medidas adequadas a evitá-lo.
Em suma, entendo que se verificam todos os pressupostos da responsabilidade – o facto voluntário, a ilicitude (violação da integridade física da autora), a culpa (por não terem sido adoptados os cuidados necessários para evitar a ocorrência do evento danoso), o nexo de causalidade (a intervenção foi condição do dano, não tendo concorrido para este qualquer circunstância estranha e extraordinária) e, evidentemente, o dano – pelo que, aderindo aos respectivos fundamentos, confirmaria o acórdão recorrido.
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[1] Deve entender-se a existência de lapso de escrita no dispositivo decisório do acórdão recorrido, na medida em que resulta do texto do acórdão que os juros devidos, a partir da prolação da decisão, são os que incidem sobre as quantias indemnizatórias fixadas a título de dano decorrente do défice funcional permanente (€ 70.000,00) e de danos não patrimoniais (€ 30.000,00), que perfazem a quantia de € 100.000,00, em detrimento, portanto, da quantia referida.
[2] V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 637º, pág. 133, sub art. 641º, págs. 180, 185.
[3] Destaque-se a modificação do facto provado 28., que passou de “A situaçãso descrita em 25 não é normal ou usual, nem previsível” para “A situação descrita em 25 não é normal ou usual”, em referência ao facto provado 25. (“Quando foi accionada a electrocoagulação com vista a queimar o pólipo que se situava em pleno canal anal, aconteceu uma explosão, tendo o réu, acto contínuo, interrompido o tratamento.”).
[4] Aceite há muito na doutrina, seguindo a tradição dominante do direito estrangeiro: v. J. C. MOITINHO DE ALMEIDA, “A responsabilidade civil do médico e o seu seguro”, Scientia Iuridica, 1972, págs. 329, 337, ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “A responsabilidade civil do médico”, CJ, 1983, I, págs. 341, 343, JOÃO ÁLVARO DIAS, “Breves considerações em torno da natureza da responsabilidade civil médica”, Revista Portuguesa do Dano Corporal, 1993, n.º 3, págs. 27 e ss, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, Direito da Saúde e Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, págs. 82 e ss, em esp. 85 e ss; ÁLVARO GOMES RODRIGUES, “Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos”, Direito e Justiça – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, 2000, pág. 180; RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico. Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, págs. 56 e ss, em esp. 60-61, 70 e ss; PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Responsabilidade civil por acto médico ou omissão do médico. Responsabilidade civil médica e seguro de responsabilidade civil profissional”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Volume II, Almedina, Coimbra, 2011, págs. 462 e ss, 465-466, VERA LÚCIA RAPOSO, Do ato médico ao problema jurídico. Breves notas sobre o acolhimento da responsabilidade civil e criminal na jurisprudência nacional, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 39, ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, págs. 665 e ss, em esp. 671 e ss.
[5] V., por todos, ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pág. 1040: “quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil”
[6] Estamos perante um procedimento de aleatoriedade reduzida e finalidade garantida previamente ao paciente: v. RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico… cit., págs. 98 e ss. Também ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direito dos pacientes… cit., págs. 717 e ss, para a identificação de uma obrigação “intrinsecamente de resultado”, sem, à partida, “carácter aleatório”.
[7] V. ainda ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., pág. 1039: “(…) em que o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza (ex.: a obrigação contratual do médico de empregar a sua ciência na cura do doente (…)”.
[8] V., para confirmação, apenas para amostra, JOÃO ÁLVARO DIAS, “Breves reflexões…”, loc. cit., págs. 49-51, RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico… cit., pág. 119.
[9] V., como exemplo de uma pronúncia depois seguida em variados arestos, o Ac. do STJ de 22/9/2011, processo n.º 674/2001.PL.S1, Rel. BETTENCOURT DE FARIA, in www.dgsi.pt. Em geral, na doutrina, v., para a defesa de um sistema de não cúmulo, assente num “concurso aparente, legal ou de normas, (…) em que só «aparentemente se pode falar de um concurso, já que nos deparamos com uma única conduta ilícita – a merecer, portanto, uma só indemnização”, ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., págs. 548 e ss.
A questão está claramente em aberto e é de discussão farta e plural no que toca à responsabilidade médica, como se pode verificar, entre outros, em ÁLVARO GOMES RODRIGUES, “Reflexões…”, loc. cit., págs. 191 e ss; VERA LÚCIA RAPOSO, Do ato médico… cit., págs. 35 e ss; NUNO PINTO OLIVEIRA, “Ilicitude e culpa na responsabilidade médica”, (I) Materiais para o Direito da Saúde n.º 1, Instituto Jurídico da FDUC/Centro de Direito Biomédico, Coimbra, 2019, págs. 19 e ss, partindo da assunção de que “[e]ntre os deveres contratuais e os deveres extracontratuais dos médicos não há nenhuma diferença fundamental” e optando por uma combinação diferenciada dos regimes concorrentes (págs. 32-33, 36 e ss).
[10] Para argumentos ponderosos, v. ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes… cit., págs. 749-753, FILIPE ALBUQUERQUE MATOS, “Responsabilidade civil médica: breves reflexões em torno dos respectivos pressupostos”, CDP n.º 43, 2013, págs. 63-65.
[11] V. RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico… cit., págs. 90 e ss, 115 e ss, “Da tutela do doente lesado – Breves reflexões”, Revista da FDUP, 2008, págs. 444 e ss, com relativização das obrigações de meios e transmutação em resultado (mediato) de não destruição das chances de atingir o fim pretendido com o acto médico (cura, sobrevivência, a não consumação de uma deficiência ou de uma incapacidade); convergente: PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Responsabilidade civil por acto médico…”, loc. cit., págs. 476-478 (distingue “resultado último de uma intervenção médica do resultado concreto da actividade desenvolvida pelo médico). Antes, desvalorizando e dissolvendo a obrigação de meios no resultado do “tratamento”, em adequação ao art. 1154º do CCiv., v. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Os contratos civis…”, loc. cit., págs. 110 e ss.
Elucidativos sobre a construção que se generalizou, na jurisprudência, entre muitos outros, v. os Acs. do STJ de 17/1/2013, processo n.º 9434/06.6TBMTS.P1.S1, Rel. ANA PAULA BOULAROT, e de 2/6/2015, processo n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, sempre in www.dgsi.pt.
[12] CARLOS MOTA PINTO, Cessão da posição contratual, Almedina, Coimbra, 1982 (reimp.), pág. 339 (em continuidade das prévias 337-338) e nt. 2, ss, 402 e ss; sublinhado nosso. Convergente: ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., pág. 552, no contexto da defesa da consumpção da responsabilidade extracontratual pela contratual, que permite a convocação da “relação obrigacional complexa, concebida como um todo e um processo dirigidos à tutela dos interesses globais das partes nela envolvidos” e, nesse aproveitamento, a determinação de “deveres de protecção e cuidado para com a pessoa e o património dos intervenientes”.
[13] Por exemplo, RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico… cit., pág. 71: “relação firme de confiança”, “contrato intuitus personae” (para esta configuração do contrato de prestação de serviço médico, v. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Os contratos civis…”, loc. cit., págs. 84, 89).
[14] Neste sentido, a comungar, os Acs. do STJ de 1/10/2015, processo n.º 2104/05.4TBPVZ.P.S1, Rel. MARIA DOS PRAZERES BELEZA, e de 28/1/2016, processo n.º MARIA DA GRAÇA TRIGO – seguidos pelo acórdão recorrido nesta aceitação do conteúdo obrigacional do contrato –, sempre in www.dgsi.pt. Na literatura da responsabilidade médica, convergentes, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Os contratos civis…”, loc. cit., pág. 113, ÁLVARO GOMES RODRIGUES, “Reflexões…”, loc. cit., pág. 184, 197, RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico… cit., págs. 79 e ss, ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes… cit., pág. 744.
Note-se que estes deveres (e os outros deveres secundários acessórios) “avultam sobretudo nas relações obrigacionais que (…) comprometem especialmente a personalidade dos contraentes no correcto cumprimento dos deveres contratuais”: ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Volume I, 10.ª ed., 2000 (reimp. 2005), pág. 126; também RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações, FDUC, Coimbra, 1983, pág. 67. Para a configuração do contrato de prestação de serviço médico como sendo celebrado intuitu personae, v. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Os contratos civis…”, loc. cit., págs. 84, 89.
[15] CARLOS MOTA PINTO, Cessão… cit., págs. 348-349.
Os deveres laterais com finalidade negativa, onde se poderá integrar o que acabámos de identificar, são crismados e aceites como “deveres de protecção”, inspirado na dogmática de Hans Stoll, por MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Contrato e deveres de protecção, Separata do Volume XXXVIII do Suplemento ao BFDUC, Coimbra, 1994, págs. 41-43 (em esp. nt. 71), 44 e ss, 143 e ss (onde se autonomizam os deveres a que se devem observância durante a execução do contrato, no que toca aos riscos que a própria prestação deficiente potencie em relação a bens do credor), em crítica à tese da sua irrelevância na responsabilidade e enquadramento directo na cláusula do art. 483º, 1, do CCiv, a cargo de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil, Almedina, Coimbra, 1982, págs. 603-604, 639-640.
[16] Seguimos ainda CARLOS MOTA PINTO, Cessão… cit., págs. 404 e ss, em esp. 409-410.
[17] Processo n.º 6669/11.3TBVNG.S1, Rel. GABRIEL CATARINO, in www.dgsi.pt.
[18] MARIA PAULA RIBEIRO DE FARIA, “O erro em medicina e o direito penal”, Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde, 2010, n.º 14, pág. 24.
[19] Desenvolvidamente, v. JOÃO ÁLVARO DIAS, “Culpa médica: algumas ideias-força”, Revista Portuguesa do Dano Corporal, 1995, n.º 5, págs. 21 e ss, 29 e ss.
[20] V. Ac. do STJ de 28/5/2015, processo n.º 3129/09.6TBVCT.G1.S1, Rel. ABRANTES GERALDES, in www.dgsi.pt.
[21] Processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1, Rel. SILVA SALAZAR, in www.dgsi.pt.
[22] ANDRÉ DIAS PEREIRA, “Breves notas sobre a responsabilidade médica em Portugal”, Revista Portuguesa do Dano Corporal n.º 17, 2007, pág. 17.
[23] V. VERA LÚCIA RAPOSO, Do ato médico… cit., págs. 45-46, ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes… cit., págs. 761 e ss.
[24] V., sobre a dicotomia com a “ilicitude do resultado”, JORGE SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Almedina, Coimbra, 1990, págs. 301 e ss.
[25] MARIA PAULA RIBEIRO DE FARIA, “O erro em medicina…”, loc. cit., págs. 11, 13-14, 18 e ss, 23 e ss.
[26] Embora se possa e deva ir mais longe em determinadas circunstâncias e atendendo a certos factores de esclarecimento mais qualificado e completo para ser suficiente: v. GUILHERME DE OLIVEIRA, “Estrutura jurídica do acto médico”, Temas de direito da medicina, 2.ª ed., Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 66 e ss, a quem pertence a citação, na sequência do seu anterior “Estrutura jurídica do acto médico, consentimento informado e responsabilidade médica”, RLJ n.º 3819, 1992, págs. 167 e ss.
[27] V., neste sentido e inequivocamente, os Acs. do STJ de 24/4/2016, processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1, Rel. SILVA SALAZAR, e de 23/3/2017, processo n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, in www.dgsi.pt.
Na doutrina, em geral e por todos, MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil. Responsabilidade civil. O método do caso, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 81-82 (“é (…) ao credor que compete identificar e fazer provar a exigibilidade de tais meios ou da diligência (objetivamente) devida. (…) se a falta de cumprimento carece sempre de ser positivamente demonstrada pelo credor lesado, esta exigência traduz-se aqui, em termos práticos, na demonstração da ilicitude da conduta do devedor. (…) Ele [credor] tem sempre de individualizar uma concreta falta de cumprimento (ilícita). Dada a índole da obrigação, carece de demonstrar que os meios não foram empregues ao devedor ou que a diligência prometida com vista a um resultado não foi observada.”), com confirmação na responsabilidade médica a pág. 116. Em particular, v. ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “A responsabilidade civil do médico”, loc. cit., págs. 344-345, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Os contratos civis…”, loc. cit., págs. 117-118, JOÃO ÁLVARO DIAS, “Breves considerações…”, loc. cit., págs. 30-31, JORGE RIBEIRO DE FARIA, “Da prova na responsabilidade civil médica”, Revista da FDUP, 2004, págs. 115 e ss, 177 e ss, RUTE TEIXEIRA PEDRO, “Da tutela do doente lesado…”, loc. cit., págs. 421-423, ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes… cit., págs. 701-702, 709 e ss, 776 e ss, 787 e ss, MAFALDA MIRANDA BARBOSA, “Algumas considerações acerca da causalidade e da imputação objectiva ao nível da responsabilidade médica", Direito da Saúde – Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, Volume 2, Profissionais de saúde e pacientes. Responsabilidades, Almedina, Coimbra, 2016, págs. 48 e ss, NUNO PINTO OLIVEIRA, “Ilicitude e culpa na responsabilidade médica”, loc. cit., págs. 81 e ss, com vária jurisprudência, em esp. 87.
[28] Sobre o ponto, v. ANTUNES VARELA, Das obrigações, Volume II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997 (reimp. 2009), págs. 16-17, 60, 62, 63-64, 92.
[29] ANTUNES VARELA, Das obrigações, Volume II cit., pág. 94.
[30] V. PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, 1972, págs. 153 e ss (em esp. 163, 164-165, para o campo da responsabilidade obrigacional), 167 e ss (em esp. 174-175), ANTUNES VARELA, Das obrigações, Volume II cit., págs. 94-95 (o não cumprimento da obrigação pode constituir um acto lícito nas situações em que proceda do cumprimento de um dever), RABRINDANATH CAPELO DE SOUSA, O direito geral de personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, págs. 437-438, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997 (reimp. 2000), págs. 342-343, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 335º”, Código Civil comentado, I, Parte geral (artigos 1.º a 396.º), coord. A. Menezes Cordeiro, 2020, pág. 946.
[31] «Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.»
[32] Claramente neste sentido, v. PESSOA JORGE, Ensaio… cit., pág. 174 (acrescentando os arts. 336º, 3, 337º e 339º, 1, do CCiv.), ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., págs. 568-569, e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil português, II, Direito das obrigações, III, Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 485-486.
[33] V., nomeadamente, os arts. 4º da Convenção para a protecção dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face às aplicações da biologia e da medicina: convenção sobre os direitos do homem e a biomedicina («Qualquer intervenção na área da saúde, incluindo a investigação, deve ser efectuada na observância das normas e obrigações profissionais, bem como das regras de conduta aplicáveis ao caso concreto.»; Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001, de 19/10/2010, in DR, I Série-A, n.º 2, de 3/1/2011), 150º do CPenal, 135º, 1, 8 e 10 do Estatuto da Ordem dos Médicos e 4º, 1 e 8, 5º, 8º, 1, e 10º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Regulamento n.º 707/2016, de 20 de Maio (in DR, 2.ª Série, n.º 139, de 21/7/2016).
[34] V., eludicativo e rigoroso, o Ac. do STJ de 22/3/2018, processo n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt.
[35] Neste sentido, CARLOS MOTA PINTO, Cessão… cit., págs. 349, 407, 409, ID., Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, nt. 187 – pág. 187, RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações cit., pág. 68, ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., pág. 77.
[36] ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes… cit., págs. 715-716, 724-725.
[37] VERA LÚCIA RAPOSO, Do ato médico… cit., pág. 46.
[38] Neste sentido, quanto ao “dever de informação” do médico pelo mandante-paciente, ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes… cit., pág. 675.
[39] VERA LÚCIA RAPOSO, Do ato médico… cit., págs. 46-47, 94, ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes… cit., págs. 772-773 (“os standards são, também eles, padrões de decisão jurídicos e jurisprudenciais para uma decisão de litígios legais que provêm da atividade médica”).
[40] Quanto à sentença de 1.ª instância, destaque-se a motivação referida ao “Parecer emitido pela Ordem dos Médicos (Colégio de Especialidade de Gastroenterologia) junto de fls. 403 a 405, o qual constitui um elemento fundamental no caso em discussão, uma vez que do seu teor, com toda a clareza, resulta que o réu observou as regras ou procedimentos que estão indicados para o acto médico que praticou no dia 12/9/2012, quer relativamente aos meios utilizados, quer no que diz respeito à ausência de preparação (jejum/limpeza intestinal) (…)”.
[41] V., neste sentido, o Ac. do STJ de 6/1/2000, processo n.º 700.16.3T8PRT.P1.S1, Rel. ROSA RIBEIRO COELHO, disponível in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/, ao qual pertencem as transcrições.
[42] Assim, ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes… cit., pág. 701.
ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “A responsabilidade civil do médico”, loc. cit., pág. 347, refere-se a “indícios suficientemente lógicos e fortes para corporizar uma legítima convicção da existência de uma falta do médico”.
[43] JOÃO ÁLVARO DIAS, “Culpa médica…”, loc. cit., págs. 29, 31.
[44] Assim, ANA AMORIM, A responsabilidade do médico enquanto perito, Centro de Direito Biomédico/FDUC, volume 26, Petrony, Lisboa, 2019, págs. 135-136.
[45] ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “A responsabilidade civil do médico”, loc. cit., pág. 348.
[46] V. ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Volume II cit., págs. 74 e ss (situações que “escapam manifestamente à letra e ao espírito do n.º 2 do art. 795º” do CCiv.), ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., págs. 1072 e ss, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997 (reimp. 2014), págs. 361, 364.
[47] Disponível in https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0152013-de-03102013-pdf.aspx.
[48] Na doutrina, em abono, VERA LÚCIA RAPOSO, O ato médico… cit., págs. 225 e ss, NUNO PINTO DE OLIVEIRA, “Ilicitude e culpa na responsabilidade médica”, loc. cit., págs. 56 e ss, 60 e ss.
[49] V., quanto a esta delimitação relevante, VERA LÚCIA RAPOSO, O ato médico… cit., pág. 215.
[50] RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico… cit., págs. 152 e ss.
[51] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, “Algumas considerações…”, loc. cit., pág. 42.
[52] Delineado recentemente por este Colectivo no Ac. do STJ de 7/9/2020, processo n.º 12651/15.4T8PRT.P1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[53] RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações cit., pág. 278.
[54] V., também para as transcrições, RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações cit., págs. 281-283, ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Vol. I cit., págs. 887 e ss, 899-901, ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., págs. 763-764.
[55] RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações cit., págs. 284-285; v. ainda ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Vol. I cit., págs. 892-893.
Desenvolvidamente, FRANCISCO PEREIRA COELHO, O problema da causa virtual na responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 1998 (reimp. 1955), pág. 175: “o momento decisivo para a averiguação do nexo de causalidade (condicionalidade) entre o facto e o dano é, obviamente, o próprio momento em que o dano (real) se verifica. (…) É neste momento que deve ser proferido o juízo de adequação, pois aqui, como se sabe, supõe-se o efeito ainda não verificado e pergunta-se se a acção era capaz, segundo a sua natureza geral, de produzir um efeito danoso daquele género; é claro, porém, que se se trata de apurar a condicionalidade da acção para o efeito realmente verificado, o juízo de condicionalidade não pode ser proferido em momento anterior àquele em que o efeito danoso real se verifica. Mas também não deve ser proferido em momento posterior, pois o processo causal efectivo, como alguma coisa que aconteceu e atingiu, com a produção efectiva do efeito danoso, o seu termo, não pode, evidentemente, ser influenciado por circunstâncias futuras, quaisquer que sejam, hipotéticas ou mesmo reais. (…) não se compreende que o momento em que se julga sobre a relação de condicionalidade entre o facto e o dano real seja retardado para além do momento da verificação do dano, pois o dano real é uma entidade fixa e não se concebe como é que aquela relação de condicionalidade possa ser influenciada por factos posteriores.”
[56] VERA LÚCIA RAPOSO, O ato médico… cit., págs. 93-94, com elenco de factores de densificação deste “profissional médio”, e NUNO PINTO OLIVEIRA, “Ilicitude e culpa na responsabilidade médica”, loc. cit., págs. 78 e ss (“O comportamento do médico preencherá os requisitos da tipicidade e da ilicitude, desde que omita a mais elevada medida de cuidado exterior — desde que, no caso concreto, o médico não preste ao paciente os cuidados ao alcance de um médico ideal, com as mais amplas capacidades e a mais completa experiência razoavelmente concebíveis.”); antes, JOÃO ÁLVARO DIAS, “Culpa médica…”, loc. cit., págs. 24 e ss, RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico… cit., págs. 111 e ss, 127 e ss.
[57] V. ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Vol. I cit., págs. 896-897.
[58] Tal como sustentado no estudo referencial, ainda antes do CCiv. de 1966, de FRANCISCO PEREIRA COELHO, “O nexo de causalidade na responsabilidade civil”, BFDUC, 1951, págs. 215-217.
[59] Para o diálogo entre a “probabilidade” e a “previsibilidade” da situação concreta do sujeito e das suas circunstâncias no nexo da causalidade, v. PEREIRA COELHO, “O nexo de causalidade na responsabilidade civil”, loc. cit., págs. 218 e ss, CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 318 e ss, NUNO PINTO OLIVEIRA, Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 664 e ss.
[60] V. ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., pág. 766.
[61] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, “Algumas considerações…”, loc. cit., pág. 68 (sublinhado nosso); “Novas perspetivas em torno da causalidade na responsabilidade médica”, Cadernos do CEJ, 2017, n.º 1, págs. 12, 36-37, 38-39 (“O julgador só deve recusar a imputação quando haja prova da efetiva causa do dano ou quando haja prova da elevada probabilidade de que a lesão se teria realizado mesmo sem o desvio na conduta.”); “Responsabilidade civil médica e nexo de causalidade. Tópicos de compreensão de um problema clássico do direito delitual”, Saúde, novas tecnologias e responsabilidades – Nos 30 anos do Centro de Direito Biomédico, Cadernos Lex Medicinae, Vol. II, Instituto Jurídico da FDUC, Coimbra, 2019, págs. 361-363. Para considerações mais desenvolvidas e delimitação de tal “nexo de imputação objectiva”, v. Lições de responsabilidade civil, Principia, Cascais, 2017, págs. 255 e ss, em esp. 265-274, e 426-427 (“ligação entre o não-cumprimento do contrato (entendido em termos amplos) e a referida lesão [de direitos e interesses] para, posteriormente, se ligar a lesão aos interesses que foram postos em causa” – “duplo nexo” em sede de responsabilidade contratual).
[62] ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “A responsabilidade civil do médico”, loc. cit., págs. 344, 346.
[63] Para apoio destas asserções conclusivas quanto ao requisito do nexo da causalidade na responsabilidade civil médica, devidamente adequado a um nexo de imputação objectiva, v., com aproveitamento no texto, ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “A responsabilidade civil do médico”, loc. cit., pág. 348, 354; ÁLVARO GOMES RODRIGUES, “Reflexões…”, loc. cit., págs. 214 e ss; RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico... cit., págs. 155 e ss, “Da tutela do doente lesado…”, loc. cit., págs. 429 e ss; VERA LÚCIA RAPOSO, Do ato médico… cit., págs. 49 e ss (em esp. 51 – “a aplicação dos princípios que regulam o nexo de causalidade no campo médico reveste-se de particular dificuldade, dada a imprevisibilidade do funcionamento do corpo humano, de tal forma que, e salvo raras exceções, é praticamente impossível afirmar com toda a certeza que se determinada conduta tivesse sido adotada, ou não tivesse sido adotada, o dano não se teria efectivado” –, 53-54), 76 e ss; MAFALDA MIRANDA BARBOSA, “Novas perspetivas…”, loc. cit., págs. 29 e ss, “Responsabilidade civil médica…”, loc. cit., págs. 360 e ss (“Exclui-se a imputação quando o risco não foi criado (não criação do risco), quando haja diminuição do risco e quando ocorra um facto fortuito ou de força maior.”); ANA AMORIM, A responsabilidade… cit., págs. 133 e ss.
INTRODUÇÃO
O presente documento é uma especificação da Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes, publicada pelo Ministério da Saúde e posteriormente, pela Direcção-Geral da Saúde e pela Comissão de Humanização em duas edições.
Esta carta agrupa direitos consagrados em diversos textos legais, nomeadamente na Constituição da República Portuguesa, na Lei de Bases da Saúde, na Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina e na Carta dos direitos fundamentais da União Europeia. Apenas o Direito a uma segunda opinião não está previsto em nenhuma disposição legal nacional.
O regime legal de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho) prevê também o direito à qualidade dos bens e serviços e o direito à protecção da saúde e segurança física.
A presente Carta dos Direitos do Doente Internado respeita o enunciado dos direitos tal como aparecem na Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes com exclusão dos direitos 13 e 14 que foram enunciados atendendo à condição especial que é o internamento (hospitais e centros de saúde). No mesmo sentido os comentários feitos aos direitos redigiram-se considerando a situação específica do internamento.
Foi omitido deste documento o Direito a livre escolha, contemplado na Lei de Bases da Saúde, atendendo aos condicionalismos do sistema.
Omitiram-se também os deveres do doente por três razões:
As reformas dos sistemas de saúde variam de país para país, mas é consensual que o cidadão não pode ser excluído do processo de decisão, porque é co-financiador do sistema através dos seus impostos e é beneficiário do mesmo considerando as suas necessidades e, sobretudo, porque é o principal responsável pela sua saúde.
Na Carta de Otawa (1996) já se previa o reforço das capacidades dos cidadãos no que respeita à responsabilidade pela sua saúde. Isto só é possível com uma informação objectiva, transparente e compreensível que o tornem apto a decidir, como cidadão livre e esclarecido.
O Conselho da Europa através do seu "Comité" Europeu da Saúde, reconheceu na 45.ª Reunião que as organizações de entre-ajuda dos doentes têm um papel importante na representação dos seus interesses.
Os cidadãos internados num estabelecimento de saúde ou seguidos por este no domicílio, são pessoas com direitos e deveres. Não deverão ser consideradas apenas do ponto de vista da sua patologia, deficiência ou idade, mas com todo o respeito devido à dignidade humana.
Para além da regulamentação aplicada pelos estabelecimentos de saúde, devem zelar pelo respeito dos direitos do homem e do cidadão reconhecidos universalmente, e dos seguintes princípios gerais: não discriminação, respeito da pessoa, da sua liberdade individual, da sua vida privada e da sua autonomia.
Também, as instituições e os profissionais devem zelar pela boa aplicação das regras de deontologia profissional. Enfim, devem assegurar que os doentes tenham a possibilidade de fazer valer os seus direitos e afirmar a sua primazia como pessoa.
No que respeita às crianças internadas, os pais ou substitutos que se encontrem junto delas, dia e noite, qualquer que seja a sua idade e estado de saúde, deverão ser encorajados e apoiados nestas estadias, convidados a participar nos cuidados a prestar aos filhos.
As crianças não devem ser admitidas em serviços para adultos mas em locais adequados que correspondam às suas necessidades físicas, psíquicas e afectivas. Em internamentos prolongados deverá ser garantida a continuidade dos seus estudos.
Para mais esclarecimentos deve ser consultada a "Carta da Criança Hospitalizada" do Instituto de Apoio à Criança por se tratar de um documento específico sobre este tema.
Os direitos e deveres do utente dos serviços de Saúde Mental vêm enumerados na Lei n.º 36/98,de 24 de Julho, Lei de Saúde Mental.
Esta Carta refere-se apenas a internados em estabelecimentos hospitalares e centros de saúde com internamento, não incluindo assim outras situações de internamento, como por exemplo os lares de idosos da responsabilidade da Segurança Social.
É cada vez mais importante reforçar as relações de confiança e de colaboração entre o doente e os prestadores de cuidados.
Embora, numa linguagem clara, esta versão da carta está destinada fundamentalmente ao pessoal de saúde e deverá ser elaborado um folheto para o público em geral.
Sempre e em qualquer situação toda a pessoa tem o direito a ser respeitada na sua dignidade, mas mais ainda quando está internada e fragilizada pela doença. Assim, todos os que intervêm
no complexo processo de saúde têm de respeitar a dignidade do doente, direito fundamental do qual decorrem os restantes.
O doente deve estar informado sobre o nome e a profissão de todo o pessoal. Assim, todo o pessoal deverá estar devidamente identificado, com um cartão, segundo legislação em vigor.
O doente deve ser considerado um interlocutor que sabe com quem dialoga e ser visto como um parceiro num processo de saúde e não um subordinado cumpridor.
As instalações e equipamentos que o doente utiliza devem estar de acordo com a sua vulnerabilidade e situação clínica. A fragilidade devida à situação clínica determina, para o doente internado, necessidades específicas não só de diagnóstico e tratamento, mas também de instalações e equipamentos.
As barreiras arquitectónicas deverão ser reduzidas ao mínimo: nos quartos ou enfermarias, na disposição dos equipamentos, na sinalização interna, nas escadas, etc.
O doente com deficiências tem direito a dispor de instalações que não apresentem barreiras arquitectónicas, que permitam a sua livre circulação e favoreçam o seu conforto (rampas, elevadores, etc.).
Não é admissível, salvo por período curto nunca superior a 24 horas, a permanência de doentes em macas durante o internamento.
Por outro lado, a vulnerabilidade do doente depende também de características que lhe são próprias, mas relativamente independentes da sua situação clínica, como por exemplo, a idade, a educação, a cultura, a situação social, etc. No internamento de indivíduos com deficit cognitivo, deve ter-se em conta a sua vulnerabilidade acrescida e a necessidade de uma presença securizante.
A actuação de todos os que se relacionem com os doentes deverá pautar-se por critérios de tolerância e afectividade.
Está totalmente interdito o tratamento por tu ou você por parte de qualquer elemento das equipas de saúde. Todas as solicitações devem ser feitas usando compreensão e gentileza
A privacidade e a intimidade do doente deverão ser sempre asseguradas.
A tranquilidade do doente deve ser garantida. Por exemplo: em algumas enfermarias pode observar-se que aparelhos de TV estão ligados com intenção de distrair alguns embora incomodem outros. Em outras enfermarias o pessoal fala muito alto dificultando o descanso dos doentes.
Todos os incómodos devem ser reduzidos ao mínimo, nomeadamente, nas horas de repouso ou de sono. A intensidade da luz deverá ser tida em consideração.
Deverá existir uma limpeza escrupulosa em todos os serviços de internamento especialmente nas instalações sanitárias.
As convicções culturais, filosóficas e religiosas do doente internado, bem como a sua orientação sexual deverão ser respeitadas pelo estabelecimento de saúde e pelos respectivos profissionais.
Cada pessoa é um todo único e singular, protagonista de uma história e de uma entidade cultural e espiritual, que para muitos se define religiosamente. Considerar estes aspectos é fundamental na prática dos cuidados de saúde. A experiência do sofrimento torna estas dimensões particularmente importantes para o doente internado.
Nos estabelecimentos de saúde, existem serviços religiosos, aos quais compete explicitamente garantir o respeito pela identidade espiritual e religiosa dos doentes e procurar ir ao encontro de todos sem excepção, directamente ou facilitando o acesso aos ministros de outras religiões de modo a encontrar a resposta pessoal pretendida por cada um.
Todos os doentes têm direito a assistência religiosa sempre que o solicitarem. As instituições devem zelar para que este direito seja respeitado. Faz-se notar que é altamente incorrecto que o ministro duma religião faça assédio religioso a outros doentes internados.
Esta recomendação estende-se aos membros de Ordens Religiosas não ministros assim como outros evangelizadores voluntários.
Chama-se a atenção para alguns grupos não religiosos, bastante activos, que se aproveitam do relativo isolamento e da fragilidade dos indivíduos internados para, abusando desta situação, captarem simpatizantes ou aderentes.
As convicções culturais, filosóficas e religiosas deverão também ser tidas em consideração quer nos aspectos terapêuticos (por exemplo: colostomia nos muçulmanos ou transfusões nas testemunhas de Jeová), quer nos hábitos alimentares, bem como algumas regras sociais referentes ao relacionamento entre as pessoas e aos rituais de nascimento e morte.
Todo o proselitismo é proibido, seja por uma pessoa internada, um voluntário, um visitante ou um membro do pessoal.
O doente internado tem direito a cuidados apropriados ao seu estado de saúde que respondam às suas necessidades específicas e que sejam prestados em tempo útil.
Os cuidados apropriados dizem respeito a todos os níveis de prevenção, incluindo a reabilitação que deve começar o mais precocemente possível.
A qualidade dos cuidados, tendo em conta o contexto nacional, é um direito que assiste ao doente internado.
Todo o doente internado tem direito ao tratamento da dor. Os conhecimentos científicos permitem, hoje, dar uma resposta, quase na totalidade, às dores crónicas ou agudas, quer sejam sentidas por crianças, adultos ou idosos.
Os cuidados terminais, além da sua especificidade técnico-científica, devem integrar uma componente sócio-afectiva especial que deve ser assegurada por todo o pessoal atendendo ao respeito por esta fase da vida. O acompanhamento deve ser integral e, por isso contemplar a dimensão espiritual.
Os doentes internados no final da vida ou que necessitem de cuidados paliativos, têm direito a ser acompanhados, se assim o desejarem, pelos seus familiares e / ou pessoa da sua escolha, assim como a condições ambientais condignas.
Dada a importância da continuidade dos cuidados o doente tem direito a que o hospital em conjunto com o centro de saúde assegurem, antes da alta hospitalar, a continuação dos cuidados.
Assim, a avaliação da situação social e financeira do doente bem como a articulação com os outros serviços de saúde, Segurança Social, Organizações Não Governamentais e Instituições Privadas de Solidariedade Social, terão que ser realizados antes da alta.
A preparação cuidadosa da alta, deve iniciar-se o mais cedo possível e tendo em conta o conhecimento da situação sócio-económica (nomeadamente a habitacional e familiar) tomam-se as medidas em consonância, incluindo o encaminhamento social e administrativo para a sua reintegração social.
O doente e os seus familiares têm direito a ser informados das razões da transferência do doente de um nível técnico de cuidados para outro e a ser esclarecidos de que a continuidade e a qualidade dos cuidados ficam, no entanto, garantidas.
Devem ser proporcionados os conhecimentos e informações essenciais aos prestadores de cuidados no domicílio, de preferência acompanhados de um documento escrito que o doente poderá consultar em sua casa.
É desejável que, de acordo com a situação do doente e os condicionalismos do serviço, se integre na equipa prestadora de cuidados, ainda durante o internamento, um familiar ou pessoa da escolha do doente, que receberá a formação adequada para prestar os cuidados básicos no domicílio.
O doente internado deve ser informado sobre os diferentes serviços existentes no estabelecimento, incluindo aqueles não directamente relacionados com a prestação de cuidados, como por exemplo - gabinete do utente, correio, banco, cafetaria, serviços religiosos e voluntariado.
A sinalização interna deve ser suficientemente clara para que o doente possa deslocar-se com facilidade dentro do hospital. As cores, o tipo e o tamanho das letras deverão ser cuidadosamente estudados.
Os organogramas do serviço deverão estar afixados para que o doente e visitas conheçam a organização e os seus responsáveis.
Deverá ser entregue ao doente na altura da sua admissão ou, preferencialmente, antes da mesma um manual de acolhimento. Neste manual deverão constar (entre outros) o horário das refeições, das visitas, visitas de crianças, uso de tabaco, correios, uso de telefones, flores, cabeleireiro, quiosque / bazar, banco, serviços religiosos, serviço de voluntariado, gabinete do utente e formalidades administrativas. Em alguns serviços poderão existir folhetos específicos. As cores, o tipo e o tamanho das letras deverão ser perceptivas para os doentes.
Deverão ser preparadas formas alternativas para a transmissão da informação contida nestes manuais designadamente para pessoas com deficiência visual, iletrados ou com dificuldades linguísticas.
Em caso de dificuldades linguísticas no acompanhamento das populações migrantes, deve haver possibilidade de recurso a intérpretes.
Deverá ser dada informação sobre as associações de doentes portadores das diversas patologias que os poderão ajudar posteriormente.
O doente internado será claramente informado sobre o seu diagnóstico, prognóstico, tratamentos a efectuar, possíveis riscos e eventuais tratamentos alternativos.
O doente tem direito, se assim o desejar, de não ser informado sobre o seu estado de saúde, podendo, nesse caso, indicar quem pode receber a informação em seu lugar, devendo este facto ficar registado no processo clínico.
Um prognóstico grave deve ser revelado com circunspecção e os familiares devem ser prevenidos, excepto se o doente, previamente, o tiver proibido, manifestando a sua vontade por escrito.
As informações deverão ser dadas da maneira mais adequada às características do doente e num contexto de empatia, confidencialidade e privacidade atendendo a que esta informação determina muitas vezes o futuro do indivíduo e da família.
Esta informação é uma condição essencial para o doente poder dar o seu consentimento livre e esclarecido, para aderir às medidas terapêuticas e de reabilitação que venham a ser recomendadas, ou para pedir uma segunda opinião.
A informação permitirá, ainda, ao doente participar desde a escolha das terapêuticas que lhe dizem respeito, até à escolha da roupa e objectos de uso pessoal.
Os menores devem ser informados, na medida do possível, dos actos ou exames necessários ao seu estado de saúde, em função da sua idade e capacidade de compreensão, com prévia e indispensável informação aos seus representantes legais, que darão ou não o seu consentimento.
Os adultos legalmente "incapazes" ou os seus representantes legais devem beneficiar de uma informação apropriada.
Devem ser reservados períodos de tempo para que os familiares possam dialogar com os médicos e os enfermeiros responsáveis.
O doente internado tem direito a obter o parecer de um outro médico da mesma especialidade, o que lhe permitirá complementar a informação sobre o seu estado de saúde ou sobre tratamentos, dando-lhe possibilidade de decidir de forma mais esclarecida.
O exercício deste direito, no entanto, deverá ficar restrito aos casos graves ou aos de cirurgia electiva para se obter um benefício real.
Este direito do doente internado está sujeito às restrições que decorrem da sua situação de internamento e aos recursos existentes nesse estabelecimento. Nestes casos deverá constar no processo clínico do doente a impossibilidade de respeitar este direito.
Não estando este direito consignado em textos legais é, no entanto, mais fácil de ser cumprido no meio hospitalar onde existem muitos e diferentes profissionais.
O doente tem, no entanto, o direito de recorrer a um profissional externo ao estabelecimento, mas, neste caso, deverá assegurar o pagamento dos respectivos honorários.
Para que o consentimento seja verdadeiramente livre e esclarecido a informação deverá ser objectiva e clara e transmitida num ambiente de calma e privacidade, numa linguagem acessível e tendo em conta a personalidade, o grau de instrução e as condições clínicas e psíquicas do doente. Os profissionais deverão assegurar-se que a informação foi compreendida.
O consentimento livre e esclarecido ficará registado em ficha adequada, devendo ser renovado para cada acto clínico posterior sendo revogável em qualquer momento. O mesmo se aplica à participação do doente em investigação, ensaios clínicos ou ensino clínico. O doente pode sempre recusar os cuidados que lhe são propostos.
O consentimento pode, ainda, ser presumido em situações de emergência.
No que respeita a menores que não podem tomar decisões graves que lhes digam respeito, compete aos seus representantes legais expressar o seu consentimento. Quando a saúde ou integridade física de um menor possa ficar comprometida pela recusa do seu representante legal ou pela impossibilidade de obter o seu consentimento, o médico responsável deve, ao abrigo das disposições legais, prestar os cuidados necessários, desencadeando através do Tribunal, o processo de retirada provisória do poder paternal.
Nos casos em que, face à idade e grau de maturidade do menor, é possível obter a sua opinião, esta deve, na medida do possível, ser tida em consideração.
O médico deve ter, também, em consideração a opinião dos adultos legalmente "incapazes", para além da dos seus representantes legais.
No âmbito da doação de órgãos e utilização de elementos e produtos do corpo humano, da reprodução assistida e do diagnóstico pré-natal, o consentimento rege-se pela legislação em vigor. A colheita, em pessoas vivas, de órgãos, tecidos e produtos humanos não pode ser realizada sem consentimento prévio do dador, sendo este consentimento revogável em qualquer momento e sem justificação.
Os menores e adultos legalmente incapazes só poderão ser dadores de substâncias regeneráveis. Nestes casos o consentimento deve ser prestado pelos pais ou representantes
legais, carecendo também da concordância do próprio quando este tenha capacidade de entendimento e de manifestação de vontade.
A colheita em adultos incapazes por anomalia psíquica só pode ser realizada, se houver autorização judicial para o efeito.
O rastreio do HIV só é obrigatório em certos casos (doação de sangue, tecidos, células e, nomeadamente, de esperma e leite). Em todos os outros casos é necessário um consentimento prévio claramente expresso. Nenhum rastreio pode ser feito sem o conhecimento do doente, sob pena de ser passível de recurso por atentado à autonomia do doente.
Todas as informações relativas ao doente – situação clínica, diagnóstico, prognóstico, tratamento e dados pessoais – são confidenciais.
No entanto, se o doente der o consentimento e não houver prejuízo para terceiros, ou se a Lei o determinar podem estas informações ser utilizadas. O doente deve ser alertado para a necessidade de não colocar em risco a segurança ou a vida de outros.
Este direito implica obrigatoriedade do segredo profissional, a respeitar por todo o pessoal que desenvolve a sua actividade no estabelecimento, incluindo o voluntário, que por força das funções que desempenha partilham informação.
Os registos hospitalares devem ser mantidos em condições que assegurem a sua confidencialidade, merecendo atenção especial os dados informatizados.
Chama-se especialmente a atenção para que as informações prestadas pelo telefone, em que se desconhece o interlocutor, têm que ser verdadeiras mas tendo em conta a necessária confidencialidade.
As declarações que se fazem aos média, nomeadamente, nos casos frequentes que envolvem personalidades públicas como por exemplo: desportistas, políticos e artistas só podem ser feitas com autorização do próprio e do Conselho de Administração da Instituição.
As certidões deverão evitar incluir dados que possam prejudicar o doente ou terceiros, devendo nelas constar que foram passadas a pedido do doente ou de quem o representa, bem como o fim a que se destinam.
Um indivíduo internado pode pedir que a sua presença no hospital não seja divulgada.
O acesso de jornalistas, fotógrafos, publicitários e comerciantes deve estar condicionado à autorização prévia do doente e da direcção do estabelecimento. Os delegados de informação médica não devem entrar nas áreas de atendimento clínico.
O segredo profissional tem por finalidade respeitar e proteger o doente.
Deve ser salvaguardada a confidencialidade referente às crianças vítimas de maus-tratos no seio familiar pois pode pôr em risco a sua própria segurança.
O doente internado tem direito a conhecer a informação registada no seu processo clínico.
O acesso ao processo clínico só pode ser feito através de um médico, podendo ser o próprio médico assistente ou outro indicado pelo doente, se o primeiro se negar ou o doente o determinar.
Este facto (não homogéneo nos países da Europa onde existem casos em que é possível o acesso directo aos dados) pretende facilitar a interpretação dos dados e evitar eventuais choques emocionais.
O doente internado tem direito a que todo o acto diagnóstico ou terapêutico seja efectuado só na presença dos profissionais indispensáveis à sua execução, salvo se pedir a presença de outros elementos, podendo requerer a de um familiar (excluindo, por exemplo os actos cirúrgicos que não o permitam).
Nos actos cirúrgicos a crianças, deverá ser permitida a presença de um elemento securizante (habitualmente um dos pais), na indução anestésica, de modo a minimizar as repercussões psico-emocionais.
A vida privada do doente não pode ser objecto de intromissão, salvo em caso de necessidade para efeitos de diagnóstico ou tratamento e tendo o doente expressado o seu consentimento. No que respeita às crianças a vida privada pode ter de ser investigada, por vezes sem a concordância dos pais se tal for necessário para a terapêutica ou bem-estar da criança.
Nas enfermarias o banho dos doentes deve ser realizado tendo em conta o pudor do doente. Devem ser utilizados cortinas ou biombos com esse fim.
O respeito pela intimidade do doente deve ser preservado durante os cuidados de higiene, as consultas, as visitas médicas, o ensino, os tratamentos pré e pós operatórios, radiografias, o transporte em maca e em todos os momentos do seu internamento.
Embora as urgências não constituam, necessariamente, um internamento, recomenda-se que a privacidade e o respeito pelo pudor sejam garantidos nestas situações, apesar da oportunidade e rapidez da intervenção o poderem fazer esquecer.
O doente internado ou o seu representante legítimo pode apresentar sugestões ou reclamações sobre a qualidade dos cuidados e do atendimento bem como das instalações.
As reclamações podem ser feitas no livro de reclamações existente nos serviços, no gabinete do utente e ainda por via postal, fax ou correio electrónico.
Para conhecer o grau de satisfação e tomar medidas de melhoria, o estabelecimento dispõe de um gabinete do utente, de livros de reclamações e de questionários de satisfação.
A resposta às reclamações deverá ser dada em tempo útil, informando do seguimento dado.
Este direito estende-se à possibilidade legal de o doente, através de meios jurídicos, pedir a reparação dos danos eventualmente sofridos.
O doente deve fazer valer os direitos constantes neste documento, que emana da legislação em vigor.
O doente internado tem direito à visita dos seus familiares e amigos quando o desejar e os horários o permitam, sempre que não exista contra-indicação.
As instituições e os profissionais devem facilitar e mesmo incentivar o apoio afectivo que podem dar “entes significativos” para o doente.
As situações familiares mais complicadas onde existem conflitos entre os diferentes familiares e / ou amigos têm que ser ponderadas discreta e subtilmente pelos profissionais.
Os doentes que não têm visitas e se sentem isolados devem ter um maior apoio quer do pessoal de saúde, quer do pessoal voluntário devidamente preparado e enquadrado.
O doente internado que se mostre incapaz de compreender ou de se fazer compreender tem direito ao acompanhamento da pessoa que habitualmente lhe presta cuidados e para a qual deve haver condições mínimas.
Em outras situações que se justifiquem o doente internado tem também direito ao acompanhamento em permanência:
Os horários para as visitas deverão ter em conta não só as necessidades dos serviços, mas também e, sobretudo as necessidades dos doentes e a disponibilidade da população.
O doente internado pode, a qualquer momento, deixar o estabelecimento, salvo nas excepções previstas na lei, depois de ter sido informado dos eventuais riscos que corre.
Este exercício de liberdade individual requer, no entanto, algumas formalidades, e para além do doente ter sido informado dos riscos decorrentes da sua decisão, ele terá de assinar um termo de responsabilidade pela sua alta.
Qualquer indivíduo com transtornos mentais, internado com o seu consentimento, tem os mesmos direitos ao exercício das liberdades individuais que os outros doentes, considerando-se, no entanto, as eventuais condicionantes resultantes da sua doença.
Os detidos hospitalizados têm os mesmos direitos que os outros doentes internados, nos limites consagrados na legislação.
Direcção de Serviços de Prestação de Cuidados de Saúde
Decreto-Lei n.º 18/2023
de 3 de março
Sumário: Regulamenta o regime de antecipação da idade de pensão de velhice por deficiência. A Lei n.º 5/2022, de 7 de janeiro, criou o regime de antecipação de pensão de velhice por deficiência, para as pessoas com idade igual ou superior a 60 anos que tenham tido, pelo menos, 15 anos de carreira contributiva constituída com situação de deficiência e grau de incapacidade igual ou superior a 80 %.
Este regime visa a proteção social mais favorável das pessoas com deficiência que constituíram a totalidade ou uma parte significativa da sua carreira contributiva através do exercício de atividade profissional enquanto detinham um elevado grau de incapacidade.
O acesso antecipado à pensão de velhice visa atender às situações em que a manutenção da atividade profissional pode ter impacto negativo nas condições de saúde das pessoas com deficiência, não compensando, de um ponto de vista subjetivo, os benefícios sociais, económicos e de formação de direitos contributivos decorrentes da manutenção no mercado de trabalho.
Pelo presente decreto-lei, o Governo procede à regulamentação do regime de antecipação da idade de pensão de velhice por deficiência, estabelecendo os respetivos termos e condições de acesso.
Para concretização deste regime, torna-se ainda necessário prever que o presente regime beneficia da totalização de períodos contributivos, com outros regimes de proteção social, alte- rando o Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, na sua redação atual, e o Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio, na sua redação atual, que aprova o regime de proteção nas eventualidades invalidez e velhice dos beneficiários do regime geral de segurança social.
Assim:
Nos termos do artigo 4.º da Lei n.º 5/2022, de 7 de janeiro, e da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
Artigo 2.º
Âmbito pessoal
São abrangidos pelo presente decreto-lei os beneficiários do regime geral de segurança social e os subscritores e ex-subscritores do regime de proteção social convergente.
Artigo 3.º
Condições de antecipação da idade de acesso a pensão de velhice por deficiência
Artigo 4.º
Certificação da condição de deficiência
Artigo 5.º
Valor da pensão
À pensão atribuída ao abrigo do presente decreto-lei não se aplica a redução por aplicação de penalizações por antecipação da idade, nem a aplicação do fator de sustentabilidade.
Artigo 6.º
Proibição de acumulação
Artigo 7.º
Entidades competentes
Artigo 8.º
Financiamento
No quadro do regime geral de segurança social, o financiamento da pensão atribuída ao abrigo do presente decreto-lei é integralmente assegurado pelo Orçamento do Estado até que o pensionista atinja a idade normal de acesso à pensão de velhice em vigor, nos termos do n.º 3 do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio, na sua redação atual.
Artigo 9.º
Início da pensão
Artigo 10.º
Alteração ao Estatuto da Aposentação
O artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, na redação atual, passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 40.º
[...]
1 — [...]:
2 — [...].
3 — [...].»
Artigo 11.º
Alteração ao Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio
O artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio, na redação atual, passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 11.º
[...]
1 — [...]:
2 — [...].»
Artigo 12.º
Entrada em vigor e produção de efeitos
O presente decreto-lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos desde 1 de janeiro de 2023.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 2 de fevereiro de 2023. — António Luís San- tos da Costa — Fernando Medina Maciel Almeida Correia — Ana Manuel Jerónimo Lopes Correia Mendes Godinho.
Promulgado em 24 de fevereiro de 2023. Publique-se.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Referendado em 27 de fevereiro de 2023.
O Primeiro-Ministro, António Luís Santos da Costa.
116222407
Fonte:"https://files.dre.pt/1s/2023/03/04500/0004000043.pdf"
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