À medida que o tempo passa e recordo os dias que partilhamos, o coração ainda se aperta com a saudade e a dor da tua ausência. É difícil expressar em palavras a profundidade do amor que sempre senti por ti, uma ligação que transcendeu a simples relação entre pai e filha para se tornar algo sagrado, um laço de alma que o tempo e a distância não conseguem quebrar.
Lembro-me tão claramente dos momentos em que a tua presença enchia a nossa casa de alegria e vitalidade. Eras o pilar que sustentava a nossa família, o farol que nos guiava nos momentos mais sombrios.
A tua energia contagiante e o teu sorriso generoso eram a luz que iluminava os nossos dias, mesmo quando enfrentávamos tempos difíceis. Não importava o quão desafiadoras as circunstâncias se tornassem, a tua presença era o nosso conforto, a tua sabedoria a nossa bússola.
Para mim, a tua companhia era um tesouro que eu valorizava acima de tudo. Nunca me passou pela cabeça que a velhice pudesse ser uma barreira entre nós. Pelo contrário, abracei cada momento ao teu lado como uma dádiva preciosa, uma oportunidade de retribuir o amor incondicional que sempre me ofereceste.
Nos últimos anos, quando a idade trouxe consigo os seus desafios e limitações, eu não vi um fardo. Vi um pai querido que precisava do mesmo cuidado e ternura que me dedicaste durante toda a vida.
Fiz o que podia para tornar cada dia mais confortável, para partilhar contigo as pequenas alegrias que a vida ainda tinha para te e nos oferecer.
Lembras-te dos nossos passeios juntos? Para mim, esses momentos foram verdadeiros presentes. Levar-te comigo para explorar novos lugares, ver-te desfrutar de um café num local especial, ou simplesmente sentar-me ao teu lado enquanto partilhávamos memórias e risos - esses são tesouros que guardo no mais profundo do meu ser.
Nunca me importei com os olhares alheios ou os desafios logísticos que surgiam. A tua felicidade era o meu propósito, e nada me dava mais alegria do que ver-te sorrir.
Cada viagem que planeávamos, cada café que partilhávamos, eram um lembrete do amor e da cumplicidade que nos uniam, uma celebração da tua vida e do vínculo especial que partilhávamos.
Foi difícil ver-te envelhecer, pai. Ver-te enfrentar as dificuldades físicas e emocionais que o tempo trouxe consigo partia-me o coração. Mas nunca te vi como um estorvo. Cada vez que te ajudava a comer, a vestir-te ou a deslocar-te, via isso como um privilégio. Era uma honra retribuir, de alguma forma, todo o amor e dedicação que sempre me deste.
A tua partida deixou um vazio imenso na minha vida. A dor da tua ausência é algo que carrego todos os dias. Pergunto-me se poderia ter feito mais, se poderia ter sido melhor, se poderia ter-te protegido da crueldade e indiferença que encontraste no hospital. A incerteza e a tristeza continuam a pesar-me no coração.
Mas, pai, quero que saibas que tudo o que fiz e continuo a fazer é em homenagem ao teu espírito e ao amor que partilhámos. Lutarei sempre por um mundo onde o respeito pelos mais velhos seja uma prioridade, onde ninguém seja tratado com indiferença ou desdém.
A tua vida foi um testemunho do poder do amor e da resiliência humana. Mesmo nos momentos mais sombrios, a tua força silenciosa e a tua determinação inspiraram-me a nunca desistir. Continuarei a honrar o teu legado, pai, procurando a bondade e a compaixão no mundo que nos rodeia.
Sei que estás em paz agora, longe das lutas e sofrimentos que enfrentaste. Mas a tua presença continua a guiar-me, a iluminar o caminho à minha frente. Que a tua memória seja uma bênção e um lembrete constante do poder do amor e da dedicação.
À medida que recordo os momentos finais ao teu lado no hospital, sinto-me consumida por uma angústia profunda, um remorso que se entranha nos recantos mais sombrios do meu coração. Ver-te naquelas condições, lutando pela vida face à frieza e à indiferença do sistema hospitalar, foi como ser atravessada por uma lâmina afiada, uma traição dolorosa das expectativas de cuidado e compaixão que deveriam ter-te sido oferecidas.
Lembro-me das tuas lágrimas, da tua voz fraca implorando por um alívio que tardava em chegar. Cada pedido de ajuda era um eco lancinante da tua dor, um grito de aflição que ecoava na minha alma. Eu, que sempre te dei o mundo, senti-me subitamente enredada numa teia de impotência, incapaz de te oferecer mais do que conforto superficial diante da tua agonia.
Tive de procurar terapia para enfrentar a tormenta emocional que se seguiu à tua ida, uma tempestade de culpa e desespero diante do que presenciei e daquilo que, talvez, pudesse ter feito diferente. Não me mentalizei a tempo da gravidade da situação e, quando finalmente despertei para a realidade, parecia que o tempo já se escoara além do alcance das minhas mãos.
O que poderia ter feito? Essa é uma pergunta que martela incessantemente na minha mente.
Deveria ter feito mais ruído, chamado a polícia, exigido uma atenção e cuidado mais adequados para ti. Ter-te em casa, longe da indiferença dos corredores hospitalares, talvez pudesse ter sido uma opção desde o princípio. Porque é que essas ideias não me ocorreram antes? Esta é uma dúvida que me consome, consome, consome.
As imagens da tua agonia, das tuas mãos trémulas procurando em vão por consolo, continuam a assombrar-me. Sinto-me como se tivesse falhado em proteger-te, como se tivesse ficado paralisada diante da tua necessidade. A sensação de impotência é avassaladora.
Peço tantas vezes o teu perdão, como se pudesses ouvir-me além das barreiras que se ergueram entre nós. A culpa e a dor seguem-me como sombras persistentes, lembrando-me da tua partida num dia que, para sempre, será marcado pela tua ausência física e pela memória das tuas últimas horas de sofrimento.
Pensar que foste sepultado no dia dos meus anos é um fardo que carrego silenciosamente. A dor dessa data é indescritível, misturando-se com as imagens dolorosas da tua luta no hospital, uma dualidade de emoções que me consome.
Esta dor, pai, é diferente daquela que associamos à partida inevitável. É a dor da injustiça, da tortura imposta pelas circunstâncias, da impotência diante da negligência. É uma ferida que parece não cicatrizar, mesmo com o passar do tempo.
Ao longo dos anos, creio que o que fiz por ti correspondeu - e talvez até tenha excedido - todas as tuas expectativas. Abri mão da minha vida, colocando-te acima de tudo, pois sabia que tinhas perdido a tua esposa e três dos teus filhos, um deles o mais novo, apenas seis meses após a partida da tua amada companheira. Testemunhava a tua degradação, o peso dos anos a marcar-te, mas nunca te vi como uma carga. Enquanto alguns familiares pareciam empurrar-te para um canto, enquanto a tua memória se esbatia lentamente, eu erguia-te nos meus braços como um orgulho intocável.
Contratei cuidadoras, cuidei da tua alimentação, dialoguei com os médicos, providenciei roupa e todos os aparatos necessários para a tua velhice, desde a cadeira de rodas ao andarilho, passando pelo cadeirão ortopédico, a cama hospitalar e a bengala, entre tantos outros cuidados. Passeava contigo para todo o lado, levando-te comigo. Visitaste hotéis, restaurantes, cafés, bares; nada era feito sem ti, quase como se te carregasse no peito.
Da mesma forma que cuidei de ti, zelei pela mãe. Vivemos momentos e passeios inesquecíveis, com Fátima a destacar-se como o nosso refúgio. Após a partida da minha mãe e dos meus três irmãos, senti-me como se me tivessem confiado um bebé para cuidar, e eu cuidei, cuidei tanto que sei que nunca te sentiste só ou desamparado.
Mesmo com a tua degradação física, continuei a ser parte da tua vida. Levava-te para minha casa, o lugar onde mais gostavas de estar. Nada te faltava. Um sorriso teu bastava para me completar de felicidade. Passávamos semanas em hotéis durante as férias, e lá estavas tu, com a tua energia contagiante, sempre a incentivar-me a sair, a ir ao café que tanto apreciavas, ao restaurante. Percorremos quilómetros e quilómetros, visitámos lugares como Curia, Mealhada, Buçaco, Viana do Castelo, Aveiro, Barra de Aveiro, Ílhavo, Arouca ou Fátima. Surgia sempre um café especial, que escolhias, como aquele último cafezinho no centro comercial 8.ª Avenida, em São João da Madeira. Por vezes, fazia mais de 20 quilómetros por dia só para te levar ao café que tanto gostavas.
Procurei não atender à tua idade, integrei-te na minha vida, procurei estar o máximo de tempo possível contigo. Em todas as minhas férias, eras a minha prioridade até à exaustão. Não havia expectativa de retorno - pagava hotéis, restaurantes, cafés, gasolina; só queria ver-te feliz. E foi isso que mais me realizou durante o tempo todo.
Levei-te inúmeras vezes ao teu lugar preferido, Fátima. Visitávamos o santuário e na capelinha rezavas o terço, momento sagrado em que ninguém te podia perturbar. Os teus olhos brilhavam de felicidade.
Quando conduzia, adoravas ir ao meu lado. Eras audaz, determinado, e fazias questão de me acompanhar.
Foram inúmeras as nossas voltas. Nunca a cadeira de rodas, o andarilho ou a cueca-fralda foram um empecilho. Era um prazer estar ao teu lado. Eras tão vaidoso. Sempre com roupa nova e a ostentar os teus bonés. Ah, os teus bonés! Tinhas dezenas deles, cada um mais colorido e diferente que o outro.
Por vezes, vinham até mim felicitar-me por estar contigo e isso sempre me encheu de orgulho. O teu otimismo, a tua alegria, a tua companhia, a tua disposição, a tua inteligência com resposta sempre pronta são um legado que jamais me abandonará.
Guardo-te no meu coração com um amor eterno e uma saudade profunda,
Obrigada Pai
Emília Brandão
No entardecer de uma vida, quando os anos já não se medem em primaveras, mas sim em memórias entrelaçadas com dores e afetos, Agostinho Brandão enfrentava os dias com um fôlego entrecortado pela idade. Aos 96 anos, a fragilidade do corpo era um peso que ele carregava com a paciência de quem atravessou décadas de altos e baixos.
Dependente para o dia a dia da sua vida e submisso a um andarilho que se tornara a sua extensão no mundo, Agostinho Brandão habitava uma casa modesta, onde os sinais do tempo se acumulavam tanto nos móveis gastos quanto nos cantos repletos de lembranças.
Ali, por entre as sombras e a luz ténue, ele encontrava o refúgio de um conforto precário, mas alimentado pelo amor incondicional da filha que dedicou a sua vida a cuidar dele, oferecendo o máximo conforto que podia pagar.
Pequenas economias e contribuições mantinham as cuidadoras que o assistiam. Vanda, Maria e Helena, unidas na missão de assegurar-lhe companhia e alento nos dias finais. Agostinho Brandão, vivia sozinho, mas nunca estava sozinho. Era um testemunho silencioso de uma geração que lutou contra as adversidades com resignação e coragem.
No entanto, naquele fatídico dia 26 de fevereiro, tudo mudou. Uma súbita falta de ar perturbou a serenidade da noite. Agostinho Brandão, lúcido e determinado, sabia o que significava. “Não quero ir para o hospital, é lá que vou morrer”, pressagiou, tentando deter o destino que se insinuava à sua frente. Mas a realidade, implacável, não lhe deu escolha.
Contra a sua vontade e premonição, Agostinho Brandão foi levado para o hospital. O tempo desfez-se em horas de angústia para a sua família. As notícias só chegaram ao anoitecer, empurrando-os para um limbo de espera e incerteza. Os hospitais, sobrecarregados e escassos em recursos, tornaram-se um labirinto de desespero.
Enquanto Agostinho Brandão agonizava, numa maca desconhecida, a família enfrentava a ansiedade de uma espera sem fim. Os pedidos desesperados por acompanhamento foram negados. Ouviram que ele precisava de ficar internado. No dia seguinte, a transferência para o 5º piso da medicina interna selou o seu destino de sofrimento.
Os dias que se seguiram ao difícil 26 de Fevereiro ficaram marcados por uma penumbra crescente na vida de Agostinho Brandão. Amarrado à cama, as suas mãos, outrora marcadas pelo trabalho árduo e pelo carinho dedicado à esposa e filhos, agora eram testemunhas mudas de uma crueldade inominável.
As luvas, mal ajustadas, presas por tiras ásperas às grades da cama, feriam a sua pele delicada a cada movimento involuntário. Os braços escancarados, um para cada lado, como se estivesse pregado e uma Cruz. As marcas vermelhas das tiras impregnavam-se nos pulsos, inflamando a pele e potenciando-lhe a dor.
As mãos, antes ágeis a contar histórias e a acariciar rostos queridos, estavam agora inchadas como bolas, presas numa posição dolorosa que o faziam sentir como se estivesse crucificado.
Agostinho Brandão era forçado a permanecer imóvel por dias intermináveis. O peso dos dias arrastava-se sobre ele, enquanto a sua carne se tornava num testemunho silencioso das negligências e da desumanidade do ambiente hospitalar sobrecarregado. Cicatrizes físicas e emocionais mesclavam-se na sua pele e na sua alma.
A cada nova pessoa que passava diante de si, os seus olhos, ainda lúcidos apesar da dor, procuravam consolo naqueles rostos, nas vozes que lhe chegavam, tentando dissipar o presente desolador.
Os médicos, impelidos pela falta de recursos e pela urgência dos casos, apenas passavam brevemente pela sua cama, olhando-o como mais um número nas estatísticas da enfermaria.
Os pedidos por mais e melhor assistência eram em vão, perdidos nos corredores frios e impessoais do hospital.
Agostinho Brandão, aos 96 anos, preso não apenas pelas amarras físicas, mas também por um sistema que o negligenciava, mantinha-se forte na sua determinação silenciosa. Cada respiração era uma batalha, cada momento de lucidez uma resistência contra a indiferença que o cercava.
Enquanto os dias se arrastavam, o anoitecer de sua vida avançava para uma noite sem estrelas, onde somente o amor inquebrável dos seus filhos se mantinha como uma luz frágil, porém constante, na escuridão daquele hospital impessoal.
“Desamarrarem-me, por favor, pelo menos uma mãozinha para eu comer”, implorava ele, tentando romper o silêncio da indiferença. Os seus apelos ecoavam sem resposta, perdidos nas entranhas impessoais de uma máquina hospitalar impiedosa. A ferida que surgiu no fundo das suas costas, ignorada, era um grito mudo pela dignidade roubada.
Os dias que se seguiram foram como um contínuo pesadelo para Agostinho Brandão. Imóvel, indefeso, fisicamente incapaz, inseguro, arrancado de sua casa apesar de modesta, com o conforto necessário, estava agora amarrado à cama, enfrentava não apenas a debilidade do corpo, mas também a indiferença dolorosa daqueles que deveriam cuidar dele.
Foi-lhe tirado o direito à liberdade mínima das suas necessidades fisiológicas. Roubaram a sua liberdade de decisão, de ação de movimentos, ainda que para as suas necessidades fisiológicas básicas, como usar as mãos para tirar a expectoracão, foi privado de comer pelas suas próprias mãos, “pelo menos uma mãozinha que já bastava”, dizia ele, foi privado de dizer se consentia ou não, foi privado de escolher o tratamento, foi privado de ter um lenço na mão, foi ignorado nos seus pedidos para o desamarrarem e para o virarem para o lado direito, lado que costumava dormir, privado de ter o direito ao acompanhamento, que poderia pôr fim a tanta dor, humilhado, deitado na mesma posição todos os dias de internamento, forçado, foi privado de ter contato com os seus familiares mais queridos.
Agredido na sua liberdade, privacidade, dignidade, houve agressão física e psicológica. Tortura física e psicológica. Uso excessivo da força para com um velhinho em fim de vida. Foi preciso tanta violência para derrubar um simples velhinho de 96 anos, em fim de vida, com os problemas inerentes à idade, estava assim a preparar-se para a sua travessia final que o esperava, e que devia ser de serenidade, paz, respeito, cuidado, amor, pelo contrário o Agostinho Brandão, estava encurralado, impotente, atropelado, desamparado, roubaram-lhe a voz, roubaram-lhe os direitos, roubaram a dignidade, forçaram o seu fim.
A dificuldade crónica em expulsar a sua expetoração, que se tornara parte intrínseca da sua rotina, agora transformara-se em algo mais angustiante.
Agostinho Brandão, desesperado, implorava por um simples lenço para limpar a sua boca, para evitar sufocar com a própria saliva e expetoração que se acumulava, implorava que o virassem, implorava que o desamarrassem, mas os seus pedidos entrecortados por uma voz fraca e trémula, eram ignorados, desprezados, ecoados apenas pelo silêncio gélido do hospital.
As lágrimas escorriam pelo seu rosto enrugado enquanto ele se sentia cada vez mais encurralado, completamente desamparado diante da crueldade e da insensibilidade que o cercavam. Sentia-se amputado, incapaz de exercer qualquer controle sobre a sua própria condição.
A intervenção da equipa médica, forçando um tubo na sua garganta frágil, sem consentimento, contra a vontade, sem medir as consequências, sem ver se ao fazer isso, iria piorar o estado débil, resultou não só em dentes partidos, mas também em ferimentos dolorosos na boca e garganta. No lugar dos fluidos saudáveis encontrava-se agora sangue no frasco pendurado na parede atrás daquela cama. A voz que antes carregava histórias e afetos transformou-se num sussurro rouco, abafado, triste, desolador.
Entre suspiros ofegantes, Agostinho Brandão questionava a razão daquela crueldade, implorando por compaixão, lembrando-se até das punições dos tempos da ditadura mais propriamente o Salazar e dizia “nem no tempo de Salazar se via isto”, mas a compaixão nunca chegava, dizia ainda “nem a um animal se fazia”. A sensação de ter sido abandonado à própria sorte, ferido e desrespeitado, pesava como uma sentença injusta sobre os seus ombros delicados.
As filhas, confrontadas com a impotência diante da brutalidade, não se renderam. Reclamações foram feitas, mas a resposta permaneceu o mesmo não impiedoso que vigorara até então. Em retaliação, as visitas foram limitadas, fragmentando ainda mais a frágil teia de afeto que os ligava.
A filha, que aguardava ansiosamente pelo momento de levá-lo de volta ao refúgio familiar, mantinha as insistências. Os preparativos para o retorno do seu pai ao lar, onde o amor dos filhos aguardava recebê-lo com conforto e dignidade, foram subitamente eclipsados por uma terrível realidade.
No instante em que ela se aproximou da cama do pai, esperando ansiosamente despertá-lo com a notícia libertadora de voltar a casa, um cenário sombrio revelou-se diante de seus olhos. Julgou-o morto. Felizmente não era verdade, mas pouco mais, tinha noção que o pai, Agostinho Brandão, não passaria daquele dia, e apressou-se a levá-lo para casa, para que ele tivesse o seu fim com os seus familiares e na sua modesta casinha que ele tanto idealizou, mas o Agostinho Brandão nem mais um som ecoou.
No fim, quando finalmente voltou para casa, passado umas horas e num silêncio absoluto, já não era mais o mesmo. Agostinho Brandão partiu como uma sombra do homem que um dia fora. A morte não veio como um alívio, mas como o epílogo de uma tortura desumana.
As lágrimas dos filhos, testemunhas silenciosas da dor e da indignação, ecoavam num mundo que parecia ter esquecido a compaixão. Os últimos suspiros de Agostinho Brandão foram marcados por uma violência disfarçada de cuidado, uma tragédia que não se apaga com o tempo.
O legado de Agostinho Brandão não deveria ser este. A sua vida merecia um fim digno, envolto no calor da compaixão e do respeito pelos seus anos de labuta. Em vez disso, o que resta são lembranças amargas de um adeus marcado pela dor e pela injustiça.
No silêncio que se seguiu, as vozes dos que partiram ressoam como uma chamada de humanidade. Que este relato não seja apenas uma narrativa, mas um alerta para a necessidade de reformar um sistema que esqueceu o verdadeiro significado do cuidado.
A casa onde Agostinho Brandão viveu continua a guardar os ecos de sua presença. Nas sombras das paredes gastas, nas fotografias amareladas sobre a parede, o seu espírito permanece como um farol que ilumina o caminho de quem ousa lutar por um mundo onde o respeito pela dignidade humana seja mais do que uma promessa vazia.
E assim, num mundo onde a esperança foi ofuscada pela frieza da burocracia e da indiferença, Agostinho Brandão despediu-se. Não como um homem, mas como um símbolo de uma falha humana que jamais deveria ter existido.
Mas a história de Agostinho Brandão não termina aqui. A sua partida deixou marcas profundas em alguns filhos principalmente em uma filha, que agora busca respostas na justiça, de forma a perceber os direitos que foram roubados ao pai, embora já não sirva para ele, mas servirá para tantos outros velhinhos, que se encontram na mesma situação e não tem voz. É hora de transformar a dor em ação, levantar a voz em nome de todos aqueles que já não podem falar.
A tragédia de Agostinho Brandão ressoou além das paredes da sua casa modesta. Espalhou-se como um eco nas mentes e corações de todos aqueles que ouviram a sua história. Porque a injustiça não pode ser silenciada. E o amor e cuidado pelos mais velhos não podem ser negligenciados em prol da eficiência burocrática.
Enquanto as estações continuam a mudar e o tempo segue o seu curso implacável, o legado de Agostinho Brandão persiste como um lembrete poderoso. Um lembrete de que cada vida merece ser honrada e respeitada, independentemente da idade ou circunstância. É um apelo à empatia, à compaixão e à responsabilidade coletiva.
Que o sofrimento de Agostinho Brandão seja o catalisador para uma transformação duradoura. Que sua história seja um farol que guie os passos daqueles que têm o poder de mudar o sistema. Que sua memória inspire ações concretas em prol de um mundo onde ninguém seja deixado para trás, onde nenhuma voz seja ignorada.
E assim, enquanto o sol se põe sobre os horizontes da vida, Agostinho Brandão permanece como um símbolo de resistência e esperança. A sua jornada não foi em vão, pois, no seu último suspiro, ele lembrou-nos da urgência de transformar a compaixão em ação e de garantir que cada ser humano seja tratado com dignidade até ao fim dos seus dias.
Naquele pequeno palheirinho, próximo do mar, viviam nos meses de verão Agostinho Brandão e Alice Silva. Ao longo de seis décadas de casamento, viram mais do que a maioria poderia imaginar.
Agostinho Brandão era um homem de mãos calejadas, sempre com o cheiro da fábrica nas roupas, ainda que nevasse, os pés nus sem meias e a tenacidade no rosto. Trabalhava incansavelmente, muitas vezes em dois empregos simultâneos com turnos opostos, ele era o exemplo claro da dureza da vida em Esmoriz. Alice Silva, a sua esposa, era, por outro lado, a força do lar. Fazia milagres com os poucos recursos que tinham para alimentar e educar os seus oito filhos.
Agostinho Brandão e Alice Silva não chegavam a discutir a quem incumbia o quê nas tarefas, mas o Agostinho era pau para toda a colher, trabalhava em fábricas, fazia as compras, ia muitas vezes com os filhos ao medico, tratava da tasquinha que tiveram e dos fornecedores, sem que se ausentasse do local de trabalho, parecia duplicar-se ou triplicar-se, por isso, uma força da natureza – uma mão era sempre uma mão de que o outro necessitava.
O palheirinho da Praia de Esmoriz, erguido com muito esforço ao longo dos anos foi alterado por paredes de tijolos e cimento, inacabado, era muito modesto. Cada tábua e prego contavam histórias de sacrifício e determinação, muitas tábuas foram pregadas pelas mãos de Agostinho, não era da arte, mas tinha mãos que faziam milagres, ainda hoje as janelas e portas, feitas de tábuas pelas mãos do Agostinho, sobrevivem e resistiram todo este tempo, já com bicho da madeira e a desfazerem-se, mas lá vai mais uma lata de tinta e cobre estas falhas e mata o bicho. Havia dias difíceis, mas também risos e canções ao entardecer, quando o sol se punha no horizonte. Não foi sempre fácil, mas valeu sempre a pena.
Valeu a pena ver Agostinho Brandão e Alice Silva juntos naquele palheirinho, valeu a pena vê-los ao pôr do sol juntos ao mar, valeu a pena acordar com o cheiro a maresia, valeu a pena o pouco descanso bem merecido do Agostinho Brandão, que parecia uma formiga com toda a sua força a arrastar, carregava comida, para a família, para que não passasse fome.
Os anos foram passando, os filhos cresceram e saíram em busca dos seus próprios caminhos. Agostinho Brandão e Alice Silva viram a sua família expandir-se com a chegada de onze netos, que traziam vida e alegria àquela casa, alguns deles tiveram pouco contato com a casinha de tijolos e cimento inacabada, que outrora fora um simples palheirinho na praia. Agora, continuava a ser um palheiro na praia, mas recheado de tudo o que de imaterial era relevante.
Não foram poupados dos reveses da vida para o casal, mas em especial para o Agostinho Brandão, que antes de casar com a Alice Silva tinha perdido ainda na sua juventude, com vinte e poucos anos a sua primeira esposa Ana Rosa e com ela um filho no seu ventre, depois de mais de 60 anos de casados perde a sua Alice Silva, a quem ele tanto amava, a sua companhia, o amor da sua vida.
Mas a sua infelicidade não se ficou por aqui, a sua estrutura de vida que o Agostinho criou, ruiu, porque logo a seguir e de forma repentina e inesperada três dos seus filhos partiram antes dele, inclusive o seu mais novo, uma dor que o Agostinho carregou no peito como um peso eterno.
Agostinho continuou sózinho, com uma coragem indescritível, otimista, ainda sem perceber onde ia buscar as forças, caminhou, seguiu inabalável o trajeto da sua velhice, e os anos foram passando, o Agostinho mantinha-se sempre bem disposto, a sua saúde a degradar-se, sendo parte do processo de envelhecer, os restantes filhos cada vez mais ocupados e distantes, restou-lhe o aprender a viver novamente, enfrentava outra fase, a da velhice, é uma fase de sabedoria, teria sido a sabedoria, teria sido as lições mais cruéis da vida, que lhe ensinaram e que o fez manter-se firme, de cabeça erguida até ao seu fim.
Agostinho Brandão, incansável, trabalhou até tardiamente. A sua rotina era uma constante luta pela sobrevivência, mas nunca reclamou. Alice Silva, com a sua doçura e sabedoria, era a âncora que o mantinha ligado à terra.
Quando Alice partiu, deixou para trás uma vida de trabalho árduo, mas também um legado de amor e dedicação. Agostinho Brandão, mesmo com o coração pesado, encontrou consolo nos anos de lembranças partilhadas. Aquela casinha, agora um santuário de memórias, testemunhou uma história de vida que nenhum dinheiro poderia comprar. Era o ninho de uma família que, apesar de todas as dificuldades, soube encontrar a felicidade em cada pequeno momento. Cada brisa daquela praia e cada metro daquela casa contam a história de um mar de gente – a da minha família.
No entardecer da vida, quando os anos bordam histórias na tapeçaria da alma, os idosos erguem-se como guardiães da sabedoria ancestral. São eles os depositários das eras passadas, os navegadores das tempestades do tempo. No entanto, nesta era de velocidade e superficialidade, as suas vozes são abafadas pelo estrondo do esquecimento.
Cada ruga nos seus rostos conta uma narrativa de lutas travadas e triunfos alcançados. As suas mãos, outrora ágeis e fortes, agora tremem sob o peso das memórias. E é nessa fragilidade que reside a força incomparável daqueles que sobreviveram às tempestades da existência.
Contudo, em vez de honrar estes pilares da experiência, a sociedade relega-os à solidão, como se a sua presença fosse uma inconveniência pronta a ser ignorada. As suas casas, outrora repletas de vida e calor humano, transformam-se em cavernas vazias, ecoando apenas o silêncio ensurdecedor da indiferença.
É um cenário desolador, onde a luz da compaixão se apaga perante as sombras da negligência. Os idosos são tratados como páginas desbotadas de um livro esquecido, relegados a um canto escuro da memória coletiva. Páginas desbotadas de um livro antigo, cujas palavras já não despertam interesse nem curiosidade.
Os seus feitos, as suas conquistas, os seus sacrifícios, tudo se dissolve na bruma do esquecimento, enquanto a sociedade avança, obcecada pelo novo e pelo efémero.
É como se o tecido da sociedade, uma vez vibrante e colorido, agora se desbotasse lentamente em tons de cinza e monotonia.
Os idosos, outrora pilares de força e sabedoria, tornam-se figuras esquecidas, perdidas nas dobras do tempo.
As suas vozes, antes tão respeitadas e ouvidas, são agora abafadas pelo clamor incessante do mundo moderno, relegando as suas histórias e ensinamentos a um silêncio ensurdecedor.
Esses idosos, com as suas rugas marcadas pelo tempo e as suas mãos trémulas que um dia ergueram impérios, são agora relegados a um canto escuro da memória coletiva.
Ali, eles definham lentamente, à medida que o mundo ao seu redor se move freneticamente, indiferente ao seu sofrimento silencioso.
É uma tragédia silenciosa que se desenrola diante de nossos olhos, uma perda irreparável de uma riqueza inestimável. Pois, ao ignorarmos os idosos, estamos negligenciando não apenas o passado, mas também o presente e o futuro. Estamos a cortar as raízes que nos sustentam, enquanto nos lançamos imprudentemente em direção ao desconhecido.
É hora de despertar dessa letargia coletiva, de abrir os olhos para a verdadeira essência da humanidade. Pois, enquanto continuarmos a ignorar os idosos, continuaremos a privar-nos de uma fonte inesgotável de sabedoria, amor e compaixão.
E o que resta a estes sábios guardiães do passado? Solidão. Um abismo profundo onde os dias se arrastam lentamente, como se o relógio, cansado de marcar o tempo, tivesse desistido de contar as suas histórias.
Enquanto isso, o mundo moderno segue em frente, indiferente ao eco dos suspiros solitários que ressoam nas paredes das suas casas.
As desculpas que vamos ouvindo são muitas, mas nenhuma delas pode justificar o abandono daqueles que um dia nos guiaram com a sua luz. As palavras dos outros chegam como bombas:
"Se os meus irmãos não fazem, porque hei de eu fazer?"
"Mas hoje não é a minha vez de ficar com ele, por isso não fico, ele fica bem sozinho."
"Não o vou levar para minha casa, mesmo que seja para almoçar e voltar."
"Vai almoçar a minha casa e vai-se embora, depois deixo-o ficar, não posso perder a tarde disponível que tenho."
"Não vou sair do meu conforto para ir para uma casa sem conforto e fria, os meus irmãos que vão e que fiquem."
“Levá-los a batizados, comunhões, ou casamentos, nem pensar, eles já não têm boas maneiras...”
Os dias do Natal, da Páscoa, do Dia do Pai, o dia de tantos aniversários surgem, mas o telefone não toca, o bater à porta não se ouve, a presença não existe.
"Mas ele não queria dar-me o dinheiro, ele deu mais uns cêntimos a X e não a Y, mas eu não tenho tempo, mas ele deu as coisas para guardar a e não aos outros, mas, mas, mas...".
Mas. Mas. Mas.
É preciso coragem para enfrentar esta realidade, para erguer o véu da ignorância e enxergar a humanidade sofrida que se esconde por trás das rugas e dos tremores.
É preciso coragem para estender a mão e oferecer conforto aos que tanto deram e agora têm pouco a receber.
No entanto, é uma verdade dolorosa que devemos encarar: um dia, inevitavelmente, encontrar-nos-emos na condição de idosos esquecidos, abandonados à própria sorte pela indiferença de uma sociedade que parece ter perdido o rumo da empatia e da solidariedade.
É crucial que reflitamos sobre o presente, aprendendo com as lacunas e falhas da atualidade, para que no futuro não nos tornemos os protagonistas desta triste narrativa de isolamento e abandono.
É essencial que ajamos agora, antes que o tempo se nos escape das mãos, para construir uma teia mais densa e resiliente de amor e compaixão.
Devemos aspirar a uma sinfonia temporal onde os acordes do cuidado e do respeito ressoem de maneira harmoniosa, especialmente em relação aos idosos, que merecem ser honrados como os sábios mestres que verdadeiramente são.
Eles representam os guardiães da sabedoria acumulada ao longo de décadas, oferecendo orientação e conforto mesmo diante dos desafios mais árduos da existência.
Assim, ao reconhecermos a importância vital dessa preservação dos laços intergeracionais, estamos a plantar as sementes de uma sociedade mais justa e solidária, onde a experiência e o conhecimento dos mais velhos são valorizados e celebrados.
A fé sempre foi o alicerce da minha família, enraizada tão profundamente que, mesmo diante das adversidades mais cruéis, permanecia inabalável, intocável. Recordo-me dos meus pais, Agostinho Brandão e Alice Silva, como verdadeiros pilares dessa fé, cuja devoção os conduzia à igreja todos os domingos, independentemente dos desafios que a vida lhes impusesse.
Na nossa pequena comunidade em Esmoriz, a presença deles na Missa era notável. A capela da Penha testemunhava a sua devoção, com cada domingo marcado pela sua participação fervorosa. Lembro-me de ir à Missa à capela da Penha com o meu pai, lembro-me de ir à Missa à igreja matriz com a minha mãe. Lembro-me das manhãs de Natal, o lindo presépio radiante na capela da Penha, e dos rituais familiares que nos uniam em oração.
Apesar das limitações, nunca faltavam à Missa, e educaram-nos nesse caminho, incutiram-nos a responsabilidade de marcarmos presença na Eucaristia. E mesmo nas férias de verão, a rotina não se quebrava; a Missa continuava na capela da praia, era um dever, um ponto de encontro com o divino, mesmo à beira-mar.
Além de assistirmos à Missa, foi-nos incutido rezar/orar, dizer orações a Deus e muitas vezes rezar o terço, por vezes fazíamos reunidos, o que nem sempre era possível estarmos todos juntos, mas se possível os meus pais tentavam unirmos.
Sabendo que os meus pais eram analfabéticos, tínhamos uma Bíblia, mas não a sabiam ler, ainda assim, as orações eram ditas eloquentemente, como se fossem grandes mestres, algo inexplicável.
O sacramento da confissão a que os meus pais foram dedicados, era para eles imperioso, que nos educaram nesse sacramento, principalmente na altura da quaresma, não podíamos faltar.
Também tínhamos a grande vantagem de termos muitos horários de Celebrações Eucarísticas como escolha ao fim de semana, tínhamos cinco horários diferentes ao domingo, uma possibilidade ao sábado e tínhamos ainda a Missa diária, sem que houvesse folgas e apesar de haver muitos horários, a igreja estava sempre cheia, por vezes superlotada.
Com o avançar da idade e com as debilidades naturais do corpo, continuavam, agora tentavam ter boleia nos carros dos filhos e aproveitar aquele filho que fosse à Missa par os levar, antes faziam o percurso a pé e a distância ainda era considerável.
Mais tarde e dada a total incapacidade, a Missa era presente através da rádio ou da televisão.
Mas a sua fé não se limitava às quatro paredes da igreja e da capela.
A devoção a Deus e a Nossa Senhora de Fátima era tão profunda que os levava a percorrer duzentos quilómetros a pé, ano após ano, numa peregrinação que se tornou sagrada para eles. Com o avançar da idade, já não era tão fácil fazer o percurso, ainda assim esse compromisso persistiu, agora de carro, e eu, como sua filha, assumi o papel de guiá-los pelos caminhos que tantas vezes percorreram juntos, fazíamos o percurso onde eles caminharam e pernoitaram e eles mostravam esses locais com tanto orgulho. Em dois mil e catorze depois da partida da minha mãe, continuei com essa tarefa, desta vez com o meu pai e foram tantas vezes, que já perdi a conta.
Ver a fé inabalável dos meus pais, especialmente a devoção ao terço diário, era uma experiência única, principalmente o meu pai, que se “colava” à televisão, para ver e ouvir o terço no Santuário de Fátima, bem como a Missa aos domingos.
Além disso, o meu pai comungava quase sempre semanalmente em casa, não era simplesmente receber a Hóstia consagrada, muito menos mastigar um pedacinho de pão. Ele, com os seus 96 anos tinha perfeita noção que era muito mais, era algo de muito profundo, era sim o Nosso Senhor que ele recebia.
Não se tratava de um ato qualquer; era algo que o transformava, era uma participação na divindade de nosso Senhor Jesus Cristo.
Era mais do que um ritual; era uma comunhão com o divino, uma expressão de amor e confiança que transcendia todas as palavras.
Mesmo nas nossas viagens, onde os horários podiam ser caóticos, a oração do terço às 18h30 era um compromisso inegociável, um momento de conexão com o sagrado que não podia ser negligenciado, muitas vezes improvisado, através do telemóvel para ver a imagem do santuário e assistir ao terço.
E ao longo dos anos, o nosso pároco, Fernando Campos, foi mais do que um líder espiritual; era um contador de histórias, um comunicador nato e apaixonado cujas palavras encantavam e tocavam os corações e as almas de todos os fiéis, que ao ouvir a homilia queriam que esta se prolongasse à medida que saboreavam a beleza das mensagens que o Sr. Padre transmitia.
Com o passar do tempo, compreendi que a fé que os meus pais me transmitiram era uma herança; mais que herança era um legado de amor, devoção e compromisso com algo maior do que nós mesmos.
Seguir os seus passos na fé é um desafio que assumo com humildade, sabendo que jamais poderei igualar a sua devoção inabalável. Mas é essa mesma fé que me inspira a continuar, a procurar a presença do divino em cada momento da minha vida, assim como eles fizeram tão admiravelmente.
Na jornada da vida, a fé dos meus pais era como uma luz radiante, iluminando os caminhos mais sombrios e guiando-nos através das tempestades. Era uma fé que transcendia as palavras, manifestando-se em cada gesto de amor, em cada ato de bondade. Era uma fé que se expressava não apenas nos momentos de alegria, mas também nas horas de dor e sofrimento, mostrando-nos que mesmo nos momentos mais difíceis, nunca estávamos sozinhos.
Lembro-me das vezes em que os via rezar o terço em família, unidos em espírito e propósito, encontrando conforto e força nas palavras das orações.
Era um momento de comunhão, onde as preocupações do mundo pareciam desaparecer diante da presença do divino. E mesmo quando a idade avançava e as limitações físicas se tornavam mais presentes, a sua fé permanecia inabalável, como uma rocha firme no meio do tumulto das marés, mesmo nos últimos dias do meu pai, atendendo ao mau tratamento que lhe foi incutido, ainda assim, permaneceu, forte, seguro na sua fé.
Era essa fé que os impulsionava a enfrentar os desafios da vida com coragem e determinação, sabendo que, independentemente do que o futuro reservasse, estavam sempre nas mãos de Deus. Era essa fé que os levava a percorrer os caminhos árduos até Fátima, em uma peregrinação de devoção e gratidão. Era essa fé que os inspirava a procurar sempre o bem, a espalhar amor e compaixão por onde quer que fossem.
Hoje, olho para trás e vejo o legado de fé que meus pais deixaram para trás. É um legado de esperança, de confiança e de amor incondicional. É um legado que eu carrego comigo em cada passo da minha jornada, lembrando-me sempre das lições que eles me ensinaram e do exemplo que me deram. E mesmo que jamais possa igualar a profundidade da sua devoção, sei que enquanto caminhar com fé, estarei a seguir os seus passos e a honrar o seu legado.
No enredo do tempo, onde os fios da vida se entrelaçam em teias complexas, emerge a história singela, mas profundamente enriquecedora, dos meus pais.
Desprovidos de riquezas materiais, encontraram na força do amor e na resiliência o alicerce para enfrentar os desafios e dedicar-se incansavelmente à família.
Com origens modestas, os meus pais enfrentaram as adversidades desde cedo. O meu pai, jovem e já marcado pela dor da perda precoce da esposa Ana Rosa e do filho que levou com ela no ventre, que jamais conheceu, persistiu na procura por um novo horizonte de esperança. Foi assim que conheceu a minha mãe, Alice Silva, uma alma igualmente simples e lutadora.
Viveram em casas pequeninas, quase como quartos, arrendadas, até construírem a sua pequena casa na localidade de Esmoriz, com muito sacrifício.
Juntos, ergueram o seu lar sobre os alicerces da labuta árdua e da determinação. Apesar das suas limitações financeiras, criaram os seus oito filhos, enfrentando as vicissitudes com coragem e determinação.
A nossa jornada foi marcada pela escassez, mas também pela ternura e solidariedade.
Cada conquista, por mais modesta que fosse, era celebrada com gratidão. Os luxos não existiam, as guloseimas era a regueifa branca e o queijo, era um privilégio semanal, trazidos pelo meu pai, após longas pedaladas de bicicleta, de Cortegaça a Espinho, que depois do seu horário de trabalho às 3 horas da tarde, fazia semanalmente esse percurso. Esperávamos sempre muito ansiosos pelo queijo e regueifa branca à segunda-feira. Nunca um pedacinho de queijo e uma pequena porção de regueifa ( uma regueifa para 8 pessoas) me soube tão bem.
Ao jantar quando podíamos estar todos ou quase todos juntos, fazíamos as refeições no chão, fazíamos uma roda, porque não tínhamos mesa, refeições simples, partilhávamos não apenas o alimento, mas também a união familiar. Por vezes, ao jantar, tínhamos que repartir uma sardinha pelos outros, uma travessa de esmalte repleta de batatas e couves, eram suficientes para saciar a fome e nutrir a alma.
Os meus pais trabalhavam incansavelmente, ele como o garante da família, ela cuidando do lar e do pequenino, mas recheadinho quintal, devido à persistência de minha mãe de ter a horta com pequenas coisas necessárias à nossa subsistência e as couves nunca faltavam. Com o tempo, as suas economias foram crescendo, fruto de sacrifícios e renúncias.
No entanto, o destino reservava desafios amargos, como a partida da minha mãe no ano de dois mil e catorze, deixando o meu pai desamparado. O dinheiro economizado tornou-se objeto de disputa entre os filhos, revelando facetas sombrias do afeto fraternal.
No meio das divergências, surge uma reflexão sobre o verdadeiro significado da riqueza. O amor, a compaixão, o perdão e a sabedoria, valores que transcendem o mundo material, são os verdadeiros pilares da felicidade.
Os valores humanos não se compram!!!
Neste intricado emaranhado de emoções e desafios, uma pergunta ecoa: será que, no final das contas, somos verdadeiramente felizes? A resposta talvez resida na compreensão de que a verdadeira riqueza reside não nos cofres, mas nos laços de amor e na harmonia familiar.
Além disso, recordo os dias de diversão simples, mesmo em tempos difíceis. As tardes de domingo eram preenchidas com jogos improvisados no quintal e no pátio, jogar às malhas, a bicicleta de pau, apreciada por tantos, feita pelas mãos do grande sábio, Agostinho Brandão ou idas à praia de Esmoriz, no verão, onde nos juntávamos no palheirinho, armávamos a tenda na areia, junto ao mar, para proteger do sol, construíamos castelos de areia e brincávamos junto ao mar.
Cada gesto, por mais simples que fosse, era carregado de significado. A brisa do mar, o calor do sol e o sorriso nos rostos cansados dos meus pais são tesouros que guardo com carinho na memória.
Mesmo nos momentos mais difíceis, nunca nos faltou o essencial: o amor incondicional e a presença da família. Esta é a verdadeira riqueza que os meus pais me legaram, uma herança muito mais valiosa do que qualquer fortuna material.
Desde criança, sempre soube que os meus pais eram diferentes, não sabiam ler nem escrever.
Eles, que nunca tiveram a oportunidade de aprender a ler ou escrever, ensinaram-me lições que nunca encontrei em nenhum livro.
O meu pai, com orgulho e esforço, aprendeu a juntar as letras e assinar o seu nome, sem nunca ter ido à escola, um gesto simples que para ele era um marco de conquista.
Apesar do analfabetismo, criaram os filhos, sempre sustentados pela fé e pelo trabalho árduo.
Começaram com um negócio de venda de louça e, mais tarde, abriram uma tasquinha. Administravam tudo com uma noção incrível de números e dinheiro, desafiando qualquer lógica que dissesse que a educação formal era essencial para o sucesso.
O meu pai tinha um dom raro, uma espécie de fotocopiadora nos olhos.
Observava e aprendia a fazer de tudo um pouco. Trabalhava com cordas de sisal, mas as suas habilidades não se limitavam a isso. Construiu portas com tábuas e pregos, preparava areia com cimento para assentar tijolos, pintava as paredes, e tantas outras coisas que fazia. Fez até uma bicicleta de madeira, algo que me parecia impossível.
Recordo-me com carinho dos bancos e cadeiras que ele fez, peças que ainda temos em casa, testemunhas da sua criatividade e habilidade.
Ofereceu-me um compasso em criança, para eu levar para a escola, feito com uma lata de atum, um objeto simples que guardo religiosamente até hoje, símbolo do amor e dedicação que ele colocava em cada pequena coisa.
A minha mãe, por sua vez, transformava a cozinha num lugar mágico.
Fazia pão num forno a lenha que era um verdadeiro estrondo, na época da Páscoa fazia regueifa doce no forno, e nós brincávamos com a massa doce e fazíamos pequenos objetos com a massa da regueifa, ficávamos à espera que ficasse pronto para comermos com manteiga, ainda quente. As suas comidas eram um banquete para a alma: tripalhada, rojões, arroz de forno e um assado. Ah! o assado que era simplesmente divinal.
Nenhum restaurante conseguiu jamais replicar o sabor do seu assado, que guardo ainda na memória, uma delícia que fazia qualquer um comer e chorar por mais.
Mas o mais incrível de tudo era como, sendo analfabetos, conseguiram construir tanto.
Não apenas uma casa ou negócios, mas uma família. Ensinavam os filhos mais velhos, transmitindo-lhes os valores de trabalho árduo e perseverança.
A minha mãe e o meu pai, com as mãos calejadas e o coração cheio de sonhos, mostraram-me que a verdadeira educação não está apenas nos livros, mas na vida, no exemplo diário, no amor e na dedicação.
A história deles é um testemunho da força do espírito humano, uma prova de que, mesmo sem saber ler ou escrever, é possível construir um legado que nem o tempo consegue apagar.
As saudades invadem-me todos os dias, mas no dia em que regressei a casa de férias, senti-as de forma ainda mais intensa. A casa, outrora repleta de vida e alegria, parecia agora vazia, um eco do que foi.
A tua presença iluminava cada canto, trazia temas de conversa, sorrisos e gargalhadas. Mas, agora, só o silêncio e as sombras das memórias permanecem.
Ao entrar no quarto, vi a cama onde costumavas dormir, ainda com o teu cheiro, a tua marca. A tua cadeira favorita na sala, o teu prato preferido na cozinha, os teus talheres – tudo estava no seu lugar, como se à espera do teu regresso.
Fiz uma pequena arrumação e encontrei os teus chinelos, já velhos e gastos. Não tive coragem de os deitar fora. Lembrei-me de como tinha colocado elásticos atrás dos chinelos para não te fugirem dos pés. Lá estavam eles, guardando a tua essência.
Ainda não consigo visitar todos os lugares que frequentávamos juntos. Cada um desses locais convoca-me uma avalanche de recordações. São bonitas, sim, mas também dolorosas. A nossa rotina, os caminhos que trilhávamos, os sorrisos partilhados, a tua companhia constante – tudo isso agora se transformou em dor, uma dor de ausência que me consome inteira.
As tuas músicas favoritas, aquelas que ouvíamos juntos no carro, tornaram-se insuportáveis de escutar. Cada nota, cada melodia, ao invés de me trazer conforto, carregam uma dor que rói, uma dor que não é física mas que me queima por dentro. Olho para os lugares que eram teus e vejo-os vazios.
A tua fotografia, que tento manter por perto, é uma tentativa inútil de preencher o vazio que deixaste.
A tua ausência é palpável. As pequenas coisas, os detalhes do dia-a-dia, lembram-me constantemente de ti. O teu sorriso, a tua voz, os teus conselhos – tudo isso está gravado na minha memória, mas não é suficiente para apaziguar a saudade que sinto. É uma saudade que nunca sai, não desaparece, que se entranha em cada momento, em cada pensamento.
Fui ver-te ao cemitério onde estás sepultado. Falei contigo, como costumava fazer. Contei-te sobre a minha vida, as minhas angústias, as minhas saudades. Será que me ouviste? Quero acreditar que sim, que de alguma forma estás presente, a ouvir-me, a dar-me força. Mas a dor da tua ausência torna esta crença difícil de sustentar.
Cada visita ao cemitério é um misto de dor e alívio. Magoa ver o teu nome gravado na lápide, uma confirmação cruel da tua partida. Mas ao mesmo tempo, falar contigo, mesmo ali, traz-me algum conforto. É como se, por breves momentos, pudesse sentir a tua presença novamente.
As saudades são um fardo pesado. Carrego-as comigo todos os dias, tentando encontrar uma maneira de continuar sem ti. Tento focar-me nas lembranças felizes, nas lições que me ensinaste, no amor que partilhámos. Mas a tua ausência é uma ferida aberta, uma dor constante que não dá tréguas.
Ainda não consigo ir aos nossos lugares. Os cafés onde partilhávamos conversas intermináveis, os parques onde passeávamos, os caminhos que percorremos juntos – todos eles estão impregnados de ti. Cada um desses lugares é um testemunho do tempo que passámos juntos, agora envoltos numa saudade que dói.
A tua fotografia, colocada em lugares estratégicos da casa, é uma tentativa de manter-te presente. Olho para ela e sinto uma mistura de emoções – amor, saudade, tristeza. Tento encontrar consolo na tua imagem, mas a realidade da tua ausência é esmagadora. Nada pode substituir a tua presença física, o teu toque, a tua voz.
A vida continua, dizem. Mas, para mim, a vida sem ti é apenas uma sucessão de dias vazios. Tento encontrar sentido, propósito, mas a tua ausência lança uma sombra sobre tudo. Cada dia é uma batalha para encontrar um novo normal, um modo de viver sem ti.
As saudades são como um mar revolto, ora calmo, ora agitado. Há momentos em que consigo lembrar-me de ti com um sorriso, outras vezes, a dor é tão intensa que parece que vou afundar. Tento nadar, manter-me à tona, mas as ondas da saudade são implacáveis. Cada lembrança é uma onda que me atinge, lembrando-me da tua ausência.
Pergunto-me frequentemente se esta dor algum dia irá diminuir. Dizem que o tempo cura todas as feridas, mas esta parece resistir a qualquer tentativa de cura. A saudade não é algo que se possa simplesmente apagar ou esquecer. É uma marca profunda, gravada no meu ser, uma parte de mim.
Por fim, aceito que a saudade faz parte do amor que sinto por ti. A tua ausência é dolorosa, mas é também uma prova do quanto significaste para mim. Cada lágrima, cada suspiro, cada lembrança é um tributo ao amor de pai e filha que partilhámos. E, assim, com saudades, mas também com amor, sigo em frente, carregando-te sempre no meu coração.
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